Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

Oficinas Clínicas sobre o Cuidado: Narrando Casos e (Re)Construindo Sentidos para o Trabalho em Saúde

Concepção Pedagógica

A proposta deste curso se insere nas atividades do Grupo de Pesquisa (ENSP/CNPq) Subjetividade, Gestão e Cuidado em Saúde, que se dedica à análise dos processos intersubjetivos e inconscientes no âmbito das organizações de saúde, destacando-se a problemática do trabalho em saúde e da produção do cuidado; e dos processos de gestão e mudança organizacional.
O grupo tem como principais referenciais teóricos a psicossociologia francesa, a psicanálise, a psicodinâmica do trabalho e, mais recentemente, a micropolítica. As pesquisas e atividades de formação desenvolvidas buscam articular três eixos de pensamento: (1) a abordagem da psicossociologia francesa sobre as organizações e a sociedade contemporânea; (2) a abordagem psicanalítica sobre os processos intersubjetivos e grupais; e (3) a psicodinâmica do trabalho, que focaliza as relações entre prazer e sofrimento no trabalho. Neste caminho, temos explorado as mediações entre as realidades psíquicas, intersubjetivas, grupais e sociais, nas organizações de saúde. Para fazer face à complexidade dos problemas relacionados à gestão dos serviços públicos de saúde e à qualidade do cuidado, os pesquisadores, num diálogo com os autores do campo da Saúde Coletiva, têm estudado a característica grupal/intersubjetiva e inconsciente dos processos organizacionais, que apresenta um impacto importante na dinâmica dos serviços de saúde e em sua qualidade.
O grupo tem produzido conhecimento e vem acumulando experiência em docência sobre os seguintes temas: a) as implicações dos padrões de sociabilidade e modalidades de subjetivação contemporâneos sobre as organizações de saúde, seus processos de gestão e de produção do cuidado; b) a dimensão intersubjetiva, imaginária e inconsciente das organizações; c) a característica intersubjetiva do trabalho em saúde e suas consequências sobre a cooperação, o trabalho em equipe e a produção do cuidado/o papel dos sujeitos e da intersubjetividade nas práticas de cuidado; d) o modo como usuários dos serviços de saúde utilizam, experimentam e avaliam as formas de tratamento que lhes são disponibilizadas, e) as relações entre biopolítica e medicalização do cuidado em saúde na contemporaneidade; f) os processos grupais como instância de análise e intervenção nas organizações a partir da abordagem clínica psicossociológica.
Considerando assim este marco teórico-conceitual que vimos construindo, ao formularmos a proposta deste curso, partimos do pressuposto de que o processo de aprendizagem não compreende apenas uma dimensão cognitiva e consciente, mas também uma elaboração psíquica, apoiada nas vivências subjetivas associadas ao trabalho realizado pelos profissionais de saúde e, igualmente, às suas implicações, como sujeitos, com este trabalho, com as organizações/serviços de saúde onde o exercem, e com demais sujeitos (usuários e outros trabalhadores de saúde) junto aos quais (e para os quais) os o exercem.
Carvalho (s.d.), ao criticar o uso indiscriminado do conceito de formação e sua identificação imediata à transmissão de informações, ao desenvolvimento de competências ou à difusão de conhecimentos, considera que toda formação, embora implique alguma aprendizagem com ela não se confunde.
A aprendizagem indica simplesmente que alguém veio a saber algo que não sabia: uma informação, um conceito, uma capacidade. Mas não implica que esse "algo novo" que se aprendeu nos transformou em um novo "alguém". E essa é uma característica forte do conceito de formação: uma aprendizagem só é formativa na medida em que opera transformações na constituição daquele que aprende. (Carvalho, s.d.)
Segundo o autor, a aprendizagem só é formativa se tiver capacidade de deixar traços ou de "afetar" os sujeitos. "Nem tudo o que aprendemos -ou vivemos- deixa traços que nos formam como sujeitos. As notícias dos telejornais, o trânsito de todas as manhãs, as informações sobre o uso de um novo aparelho, (...) tudo isso pode ser vivido ou aprendido sem deixar traços, sem nos afetar. Uma experiência torna-se formativa por seu caráter afetivo; (...). (Carvalho, s.d.)"
Eugène Enriquez (1994), autor cuja obra é uma de nossas principais referências para a compreensão da abordagem da psicossociologia francesa, apresenta uma perspectiva ainda mais radical da formação, nos provocando com a ideia de que é preciso abandonar definitivamente o termo "formação" (pelo menos para os objetivos aos quais nos propomos com este curso): Trata-se de uma experiência, de um processo, de um trabalho de mudança, não de uma formação (a rigor, pode-se falar de uma de-formação e de trans-formação). O objetivo não é o de formar indivíduos para serem ou fazerem alguma coisa. É o de permitir que pessoas situadas sexualmente, profissionalmente e socialmente se mexam, isto é, que elas possam pensar de forma diferente a respeito de questões novas, com outros tipos de relação com o outro e tendo um acesso menos temeroso com seus desejos e interditos. (Enriquez, 1994:209, grifo do autor).
Associada a esta compreensão está a ideia de que as instituições (não apenas os profissionais) fazem parte do campo de análise (e de formação). Como observa Enriquez (1994), os participantes de uma experiência de "formação" existem na situação, em suas diferentes dimensões: culturais, políticas, organizacionais. "Vivem em organizações específicas, tendo um passado, projetos sociais, tomando certos caminhos e não outros. Não são pessoas ou seres desencarnados; por isso é essencial que se trabalhe suas relações concretas com as respectivas vidas e com os outros, com as instituições que lhes falam e que eles fazem falar. (Enriquez, 1994:210)".
Assim, tratar da formação de profissionais de saúde, especialmente para profissionais que têm experiência e inserção na realidade do Sistema Único de Saúde (SUS), impõe o reconhecimento, por um lado, dos desafios que advêm do contexto dos SUS ? perante os quais as teorias organizacionais e tecnologias do campo do planejamento e da gestão não são suficientes e, por outro, do debate que vem ocorrendo no campo da educação em saúde, que igualmente questiona a potência das estratégias tradicionais de formação para produzir mudanças substantivas nas práticas de saúde e na qualidade do cuidado.
Este debate traz à tona, inicialmente, a limitação de perspectivas de formação que se encontram baseadas exclusivamente na transmissão de informações e conhecimentos, apartadas da realidade cotidiana dos sujeitos. Seu caráter prescritivo baseia-se numa compreensão do aluno como ser passivo. Há um reconhecimento, no campo da saúde pública, que esse tipo de abordagem, que por si só, não teria potência para levar a mudanças nas práticas (Heckert, 2007; Ceccim, 2005).
Inúmeros autores vêm tratando da questão da formação em saúde, tanto no âmbito da educação formal de profissionais quanto no âmbito da educação permanente, ressaltando, acima de tudo, a necessidade de porosidade à realidade vivenciada pelos profissionais e de dispositivos coletivos que favoreçam a implicação, a mudança organizacional, o pensamento crítico e a experimentação (Ceccim, 2005; Heckert, 2007; Merhy, 2005). Parte dessas experiências filia-se, do ponto de vista teórico-conceitual, à pedagogia de Paulo Freire, particularmente sua noção de aprendizagem significativa, ao movimento institucionista, especialmente à produção de René Lourau e George Lapassade, e ainda às concepções da filosofia da diferença apoiadas em Gilles Deleuze e Felix Guatarri (Ceccim, 2005; Heckert, 2007; Merhy, 2005; Heckert & Neves, 2007).
Buscando enfrentar os desafios para concretização do SUS, essas novas perspectivas de formação propõem-se a compreender o cotidiano dos serviços de saúde em suas relações com os modos de fazer a atenção, a gestão e a prática dos sujeitos nela implicados (Heckert & Neves, 2007; Ceccim, 2005). No âmbito da saúde pública, as críticas aos processos tradicionais de formação têm favorecido experiências de formação centradas nos grupos como dispositivo central (Benevides, 2001; Furlan & Amaral, 2008; Cunha & Dantas, 2008).
Em nossa linha de pesquisa, valorizamos, a partir das abordagens já mencionadas, que compartilham uma perspectiva clínica, a análise e a intervenção no nível micro e na dinâmica do cotidiano dos serviços de saúde, de seus grupos e sujeitos, nos vínculos afetivos, imaginários e simbólicos que estabelecem entre si, com seu trabalho e com a organização, bem como a intervenção na dinâmica prazer-sofrimento no trabalho e nos sentidos ali produzidos.
Nessa perspectiva teórico-metodológica, o presente curso se justifica pelo reconhecimento de que o acesso à subjetividade não é uma exigência apenas pessoal, "privada" dos sujeitos, mas se coloca como uma exigência social (Giust-Desprairies, 2001), uma exigência relevante para a formação de gestores e trabalhadores de saúde, em geral, e uma condição para o melhor exercício dessas funções. Do mesmo modo, a também se justifica pela compreensão de que a mudança (especificamente a mudança organizacional), antes de ser um acontecimento material é um processo psíquico (Lévy, 1994), isto é, pressupõe um trabalho de elaboração.
Assim, o curso que ora propomos pretende se constituir, simultaneamente, como um espaço de atualização/discussão teórica de conteúdos relativos ao cuidado em saúde e uma experiência favorecedora da elaboração, pelos profissionais-alunos, dos sentidos de sua prática e de sua implicação como sujeitos na conformação da realidade dos serviços de saúde onde se inserem e na relação com os usuários e com a equipe. Para tanto, a partir de uma abordagem clínica, utilizaremos o dispositivo grupal e o recurso à construção de narrativas, de modo a valorizar a palavra dos profissionais, sua experiência, favorecendo a elaboração e o trânsito entre o que é preconizado pelas teorias do campo do cuidado em saúde e o que esses profissionais efetivamente vivem em seus serviços.

Escolas de Governo em Saúde - Pós Graduação Lato--ensu

Endereço para envio da documentação/Outras informações: Serviço de Gestão Acadêmica - SECA (horário de atendimento ao público: 8h às 16h)

Rua Leopoldo Bulhões, 1480 - Sala 307 - 21041-210 - Manguinhos - Rio de Janeiro - RJ
Ligação Gratuita: 0800-230085 - Tel.: (21) 2598-2557/2558 - Fax: (21) 2598-2727 - Email: seca@ensp.fiocruz.br