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Família atingida pela Covid-19 compartilha a angústia de viver a pandemia

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Publicado em:17/08/2020

A reportagem da Radis destaca a vida da família de Edimere Amaral, gerente administrativa que atua no Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc-SN). Há pelo menos 26 anos na Fiocruz, ela conhece de perto o be-a-bá da saúde pública, por isso, temia pelo que poderia acontecer quando os primeiros casos de Covid fossem detectados no Brasil. Mere chegou a ficar internada por cinco dias com cerca de 50% do pulmão comprometido. Leia a matéria completa de Ana Cláudia Peres!


"O guarda-roupa está intocado e a vida, pelo avesso. Edimere Amaral ainda não consegue olhar os vestidos da mãe e só aos poucos vem aprendendo a caminhar em um mundo sem ela — dona Iraildes, “o centro de tudo”, como diz à Radis. Ia fazer 88 anos no final de maio. Era uma pessoa extremamente ativa. Cuidava caprichosamente da casa e de uma irmã que morava com ela. Os dois filhos, hoje adultos e casados, sempre puderam lhe pedir ajuda. Meio-dia em ponto, de segunda a sexta-feira, posicionava-se em frente ao portão até Clara chegar da escola — avó e neta passavam boa parte da tarde juntas. “Eu tenho 48 anos e ainda me balizava pelas orientações de minha mãe. Ela era o meu braço direito”, conta, emocionada, a filha Edimere, ou Mere, como é conhecida pelos amigos.


Entre o momento que dona Iraildes Alves do Amaral deu entrada no hospital com sintomas de covid-19 e a hora do óbito, passaram-se pouco mais de 24 horas. Tudo aconteceu entre 3 e 4 de maio, de repente. Ela tinha pressão alta devidamente medicada; diabetes controlada com alimentação. “Só ia a médicos para consultas de rotina”, destaca Mere, que durante a pandemia, exercendo o trabalho remoto, mudara-se de vez para a casa da mãe com quem pretendia cumprir a quarentena em São João de Meriti, região metropolitana do Rio de Janeiro. Dona Iraildes andou abatida naquela semana, mas diariamente a filha lhe aferia a pressão. Nada parecia alterado. Em um sábado à noite, a senhora forte que nunca se queixava de nada e “sempre detestou hospitais” reclamou de dores de cabeça e no estômago. Dormiu mal, com enjoos. Acordou tossindo. No domingo à tarde, deram entrada no hospital.


Antes mesmo do resultado da tomografia, o médico constatou estar diante de um caso de suspeita de covid que necessitava de internação imediata. A filha ainda relutou em deixar a mãe. Apesar de ser uma pessoa muito ativa e independente em casa, Dona Iraildes havia perdido a visão de um olho, depois de uma cirurgia malsucedida de catarata, realizada ainda em 2001. “Quando estava fora de casa, precisava de ajuda para fazer algumas coisas e eu tinha medo que ela nem conseguisse pedir socorro ou mesmo chamar uma enfermeira”, lembra a filha. “Ela não gostava de incomodar”. Por conta do alto grau de contágio, Mere sabia que a mãe precisava ficar sem acompanhante. “Mas foi desesperador deixá-la”.


Às 11h30 da manhã de segunda-feira, dia que sua mãe morreu, Mere telefonou para o hospital em busca de notícias. Não obteve qualquer informação — o horário para isso era às 16h. Completamente no escuro, sem saber o real estado de saúde de dona Iraildes, a filha chegou a registrar uma reclamação na ouvidoria do hospital. Além disso, insistiu tanto ao telefone com a atendente, que conseguiu que levassem o aparelho até o leito da mãe. “Ela gemia de dor e só queria saber quando eu falaria com o médico para lhe tirar dali”. Mere respondeu com um: “Eu te amo, mãe”. Às 16h30, foi informada do óbito.


Mere, a filha, é gerente administrativa e atua no Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc). Há pelo menos 26 anos na Fiocruz, conhece de perto o bê-a-bá da saúde pública. Desde que um vírus desconhecido pela ciência começou a causar grave infecção pulmonar matando milhares na cidade de Wuhan, na China, a partir de dezembro, alastrando-se rapidamente pelo globo e deixando países como Itália e França em polvorosa, ela temia pelo que poderia acontecer quando os primeiros casos fossem detectados no Brasil. “Isso estava em nossas pautas. Era uma preocupação diária. Me perguntava como nosso país responderia a uma pandemia como essa”. Nem nos piores pesadelos, no entanto, imaginou que sua vida pudesse ser afetada tão diretamente. Vinham cumprindo rigorosamente o isolamento social, mas na roleta russa da covid-19, aconteceu com a sua família. “O Brasil e o mundo estão vivenciando uma catástrofe. E minha família foi atingida em cheio”. Ela perdeu ainda um meio-sobrinho — o filho da esposa de seu irmão tinha apenas 21 anos. Além disso, o irmão de Mere e ela própria testaram positivo para o vírus.


Dois dias depois da morte da mãe, foi a vez de Mere começar a sentir um cansaço excessivo, dor no peito e nas costas. Tudo isso ela creditava ao processo de luto e à tristeza dos últimos dias “Fiquei muito abatida e, como estava traumatizada com hospital, comecei a me tratar em casa mesmo”. Tomou antibiótico por cinco dias, mas sentia falta de ar até para pronunciar algumas palavras. Diante de um exame de sangue que apontou alterações e uma tomografia indicando cerca de 50% do pulmão comprometido, ela precisou ceder. Ficou um dia na emergência, outros três no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) e mais um na unidade semi-intensiva, antes de ter alta.

Mais do que números


No início de junho, autoridades sanitárias, pesquisadores e entidades ligadas à saúde criticaram abertamente o Ministério da Saúde pelo atraso na divulgação dos números e pela omissão nos dados oficiais do novo coronavírus no Brasil. O choque entre as informações do Ministério e aquelas divulgados pelas secretarias estaduais acabou gerando a criação de um consórcio de veículos de imprensa — iniciativa que veio se somar a outras que já fazem contagens independentes, a exemplo do MonitoraCovid19, da Fiocruz — cujo objetivo é informar de maneira mais transparente sobre a evolução da pandemia no país. Segundo o consórcio, o Brasil atingiu mais de um milhão de casos e 50 mil mortos por covid-19 antes que acabasse o mês (21/6).


Dona Iraildes é mais do que um número. Nas lembranças da filha, aparece dançando ao som dos “Bandolins”, de Oswaldo Montenegro, ou assistindo a “O segredo da libélula”, que ela via quantas vezes o filme passasse na TV. Ainda agora, enquanto Mere atende à ligação de Radis, sentada na cama da mãe, ela se ressente daqueles que fazem pouco caso da pandemia. Quando escuta alguém minimizar a gravidade do que está acontecendo no Brasil, diz que isso lhe dói “como um punhal”. “Acho um desrespeito. Você não precisa passar por esse sofrimento para sentir a dor do outro”, reflete.


Para seguir as recomendações sanitárias para este momento de pandemia, a família optou por não fazer velório. Foram reunidos apenas os familiares mais próximos, não mais do que seis pessoas — entre elas, a pequena Clara, de 9 anos —, para o adeus com o caixão fechado, antes do sepultamento. Mere, que já havia perdido o pai depois de um período internado em um hospital como consequência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC), diz que é muito difícil assimilar uma perda neste contexto de pandemia. “A gente não está vivendo uma situação natural. Foi como um susto. Morreu. A minha mãe foi vítima de uma tragédia”, conta. “Fico me perguntando se poderia ter feito algo diferente”.


Curada da covid e depois de 15 dias cumprindo isolamento radical, Mere voltou à casa da mãe, onde ajuda nos cuidados com uma tia e segue se refazendo. Logo no início, a fim de se sentir menos sozinha, ligava a câmera do whatsApp até adormecer sob a companhia do marido noutro ponto da cidade. “Nossa mãe foi ceifada de nossas vidas de forma inesperada. Nem ela nem qualquer pessoa merecia isso”, constata, enquanto se fortalece com o apoio de amigos — que neste momento ainda não podem estar perto fisicamente — e se prepara para o que chama de “segunda fase” de sua vida."

 

 


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Fonte: Radis
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