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Artigo aborda decretação de lockdown pela via judicial

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Publicado em:19/06/2020

Artigo aborda decretação de lockdown pela via judicial“Percebe-se que o Judiciário, no Brasil recente, tem exibido, em determinadas situações, uma posição claramente ativista, postura que ultrapassa as linhas próprias das competências desenhadas na Constituição Federal para os entes federativos. A decretação de lockdown pela via judicial retira a responsabilidade do Poder Executivo na condução das políticas públicas de enfrentamento à pandemia. O órgão que deveria ser a última instância tornou-se o agente determinante da ação política.” A questão é tratada em artigo publicado no Cadernos de Saúde Pública.


De acordo com o artigo, o sistema federalista adotado na Constituição Federal de 1988 estabelece que a União, os estados e os municípios têm competência comum para cuidar da saúde, e competência concorrente para legislar sobre o tema. Tal repartição de competência é baseada, especialmente, no modelo de descentralização das ações e serviços públicos de saúde e nas disparidades regionais presentes no território brasileiro. No enfrentamento à Covid-19, essa heterogeneidade foi intensificada, possibilitando que as Unidades Federativas adotassem diferentes medidas restritivas de direitos e liberdades públicas, a depender do avanço da doença na respectiva área geográfica.
As autoras, Sandra Mara Campos Alves, Edith Maria Barbosa Ramos e Maria Célia Delduque, dizem que o espectro da autonomia desses entes foi recentemente reafirmado e verticalizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.341/2020, reforçando o papel das autoridades sanitárias e gestores públicos locais na adoção de providências normativas e administrativas contra a Covid-19.

Segundo o artigo, desde a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional pelo Ministério da Saúde, intensa produção normativa vem sendo realizada pelos Poderes Executivo e Legislativo federais versando não apenas sobre saúde, mas alcançando temas econômicos e tributários, de seguridade social, prestação de serviços, e direitos e garantias individuais, dentre outros, assim como, estados e municípios também contribuem com a constituição de um novo arcabouço jurídico.


Nesse contexto, conforme o artigo, é que se observa a primeira decretação de lockdown no Brasil, nos municípios de São Luís, São José de Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa, todos localizados no Estado do Maranhão, por força de decisão judicial anunciada em 30 de abril de 2020, em sede de ação judicial interposta pelo Ministério Público local, que apontou como fundamentos: ocupação total dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) dedicados exclusivamente à Covid-19 da rede pública estadual; falta de transparência destas mesmas informações nas redes públicas das cidades citadas; previsão no Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde do lockdown como medida não farmacológica e a necessidade de assegurar a saúde coletiva conforme determinação legal. Para as autoras, trata-se de medida extrema de isolamento social e que deve ser aplicada quando medidas outras não podem ser implantadas ou mostraram-se insuficientes para contenção da doença, podendo levar ao colapso do sistema de saúde.


A decisão, inédita no país, pontua o artigo, determina que o governo do Estado do Maranhão aplique o lockdown, por meio da adoção de decreto em que constem as seguintes medidas: suspensão de atividades não essenciais para manutenção da vida e da saúde; limitação de reuniões em espaços públicos; vedação da circulação livre de veículos particulares, identificando expressamente as exceções; regulamentação do funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais; adoção de medidas de orientação e sanção administrativas, fiscalização efetiva e responsabilização administrativa, penal e civil, quando couber e; demonstração da estruturação adequada dos serviços de atenção à saúde para atendimento da Covid-19. Aos municípios referidos, foi ordenado que se abstenham de legislar de forma contrária à medida extrema de isolamento estabelecida pelo Governo Estadual.


O artigo considera que, embora se reconheça a urgência sanitária desencadeada pela pandemia da Covid-19, deve-se ressaltar que as políticas sanitárias são de responsabilidades do Poder Executivo, tendo em vista que as ações em saúde dependem de um feixe de informações que envolvem diferentes áreas do conhecimento e da realidade sociocultural da região a ser afetada pelo efeito das decisões tomadas.


Diante disso, afirmam as autoras, o Poder Executivo, como fonte de legitimidade popular, submetido à responsabilidade política e administrativa em razão de suas ações, representa o mais adequado locus de atuação em políticas sanitárias, tendo em vista que as consequências de suas opções estão submetidas a constante fiscalização da oposição, do Poder Legislativo, do Tribunal de Contas, do Ministério Público, dos cidadãos e, em última instância, do próprio Poder Judiciário.


O artigo alerta que a medida adotada pelo Poder Judiciário maranhense de primeiro grau abre caminho para a discussão acerca do ativo papel desempenhado pelo Poder Judiciário na última década, na vida institucional brasileira. Verifica-se a centralidade do Poder Judiciário, seja do STF, seja dos diferentes órgãos do Judiciário em suas mais diversas instâncias e especialidades.

Contudo, esse fenômeno não é peculiaridade do Estado brasileiro, destacam as autoras. “Com o fim da Segunda Guerra Mundial, verificou-se na maior parte dos países ocidentais um avanço do Poder Judiciário sobre o espaço da política majoritária, realizada pelos Poderes Legislativo e Executivo, tendo por combustível o voto popular.” O caso brasileiro é especial pela extensão e pelo volume, ressalta o artigo. “Circunstâncias diversas, associadas à Constituição Federal, à realidade política e, nestes últimos meses ao enfrentamento da pandemia de Covid-19, alçaram o Poder Judiciário às manchetes de jornais, além de espaço em programas de rádio e televisão e nas redes sociais.”


Segundo o artigo, esses casos ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, e conduzem a uma transferência de poder político para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. “Portanto, é fundamental diferenciar, nessa perspectiva, a judicialização do ativismo judicial. A judicialização, no contexto brasileiro, é uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Já o ativismo judicial é a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição Federal, expandindo o seu sentido e alcance.”


O artigo afirma que a decisão concessiva da tutela de urgência que decretou lockdown no Maranhão foi tomada, tendo como fundamentos, o reconhecimento constitucional da saúde como um direito fundamental social e que impõe ao poder público o dever de desempenhar ações que proporcionem a efetividade de tal direito; o lockdown como medida recomendada quando o distanciamento social não se mostre eficaz; e o não reconhecimento do caráter absoluto dos direitos e garantias individuais. E ainda: “Impôs, aos entes demandados, uma série de obrigações que não se sabia se seriam possíveis de serem organizadas e suportadas, naquele curto espaço de tempo, pelos agentes políticos responsáveis. A implantação de medidas de bloqueio total exige articulação com outras áreas do governo, como a segurança pública, proteção social, comunicação etc., de modo a projetar um conjunto de medidas capazes de conferir uma retaguarda adequada de apoio econômico e social à população submetida.”


Sem medo de exagerar, dizem as autoras, percebe-se que o Judiciário, no Brasil recente, tem exibido, em determinadas situações, uma posição claramente ativista, postura que tem provocado situações inusitadas e complexas e que ultrapassam as linhas próprias das competências desenhadas na Constituição Federal para os entes federativos. “De forma mais grave, a decretação de lockdown pela via judicial retira a responsabilidade do Poder Executivo na condução das políticas públicas de enfrentamento à pandemia, e permite que ações arbitrárias e desarrazoadas possam ser efetivadas sem que haja o crivo dos órgãos fiscalizadores, tendo em vista que o órgão que deveria ser a última instância tornou-se o agente determinante da ação política.”


Elas concluem: “não se trata, portanto, de fechar-se hermeticamente evitando a comunicação entre os sistemas da política e da justiça, especialmente por se tratar de emergência sanitária, e sim de preservar a autonomia constitucional dos entes da federação e a observância da repartição de Poderes.”


Foto: Agência Brasil



 


Fonte: Artigo CSP
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