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O coronavírus e o extermínio dos trabalhadores

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Publicado em:14/04/2020
O coronavírus e o extermínio dos trabalhadoresEspecialista em Saúde do Trabalhador, Políticas de Saúde e Direitos Humanos, o pesquisador Luiz Carlos Fadel, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), escreveu artigo sobre os impactos da pandemia do Novo Coronavírus na vida dos trabalhadores do país. No texto, Fadel, detalha como medidas do governo podem minar a classe trabalhadora e aponta saídas para evitar “o extermínio dos trabalhadores”.
 
Confira.
 
 
 
O coronavírus e o extermínio dos trabalhadores 
 
O Brasil, no mundo global, ainda é um país aprendiz. Mas, quando se trata de olhar para dentro de si, o Brasil é professor. Há dois anos, desde a Reforma Trabalhista, o Brasil deu uma aula ao mundo de como exterminar trabalhadores. 
 
Retirou direitos dos mais variados, cirurgicamente planejados para destruir os trabalhadores: suas organizações sindicais, suas possibilidades de recorrerem à Justiça, sua capacidade de falar, seu direito humano de dizer NÃO. Aqui iniciava o extermínio... ...ainda não havia coronavírus e o extermínio já vinha a galope para se tornar doença crônica como convém aos que planejam 20 ou, vá lá que seja, 10 anos de autoritarismo econômico para garantir banho de champagne Veuve Clicquot nas piscinas ‘populares’ dos resort da Flórida ou, sabe-se lá, do Banwa Private Island. 
 
Depois, extermínio crônico economicamente calculado em andamento, surgiu o Covid-19. Ora, por se tratar de uma ameaça de extermínio mais agudo, entidades sombrias (Posto Ipiranga e tal) entraram em pânico. Entidades sombrias pensam de formas sombrias “isso é uma gripezinha”, “brasileiro nada no esgoto e não pega nada” e a mais sombria de todas as sombrias manifestações: “a vida não pode se sobrepor à economia.” 
 
Consumada a invasão do Covid-19 no território brasileiro, a economia dos Chicago’s Boys, filhotes de Pinochet, e que hoje não seriam bem recebidos no Chile, resolveram fazer um pit-stop estratégico. Repentinamente viraram cidadãos de bem: R$ 600,00 para trabalhadores informais por 3 meses, 2 salários mínimos (no máximo) para trabalhadores de pequenas e médias empresas por 2 meses. A pátria exulta. Exulta enquanto não souber quem vai pagar essa conta. A pátria deve achar que são aqueles lá dos resorts e das champagnes, o Itaú, o Bradesco, o Santander, os caras da Hawan, do Madero, da Polishop, da Riachuelo, Coco Bambu, ‘essas coisinhas’... ou os 58 maiores bilionários do Brasil que, sozinhos, têm uma ‘mixaria’ de 180 bilhões de dólares. Se a gente usar a aritmética isso aí chega a 1 trilhão de reais. É isso mesmo? 58 bilionários brasileiros com um trilhão de reais?? 
 
Não, não são eles que vão pagar essa conta. Pausa para meditação. 
 
Quem vai pagar, além dos servidores públicos ‘pé de chinelo’, dos mesmos informais agora socorridos e dos mesmos pequenos e médios empresários agora socorridos? Ora, os que já pagam com a fome, a miséria, o desalento e a vida sem perspectiva de morarem com dignidade, trabalharem com dignidade, criarem seus filhos e netos com dignidade, serem tratados como humanos. Não há nenhuma possibilidade de discutir a questão dos trabalhadores, agora não mais questão e, sim, a situação dos trabalhadores, sem discutir a perversidade pandêmica de colocar a questão econômica à frente dos trabalhadores. Nem é preciso recorrer ao conflito capital-trabalho. Para muitos essa relação é ultrapassada. Há uma certa razão nisso. O conflito agora é desigualdade-morticínio. Com a pandemia, não é possível ficarmos vendo a preocupação das autoridades do Brasil com os turistas do cruzeiro de 11 dias, a 60 mil reais per capita, se vão desembarcar e aonde, enquanto o presidente da república rosna a favor da Bolsa de São Paulo, mesmo sem citar a Bolsa de São Paulo. 
 
O Brasil tem duas saídas para evitar o extermínio dos trabalhadores 
 
A primeira é óbvia, aproveitando que estamos no período do imposto de renda. Por exemplo, quem ganha até 5 mil reais por mês: isento. Quem ganha de 5 mil a 20 mil, por mês, paga lá algo que não seja extorsivo, como costuma ser. Os economistas (desde que não sejam da Escola de Chicago) sabem calcular razoavelmente. Quem ganha de 20 mil a 100 mil reais por mês, o que, de per si, já é uma aberração, que os economistas calculem uma escala progressiva até chegar a um meio termo que não tenha cheiro desagradável. 
 
Quem ganha de 100 mil reais a um milhão de reais por mês, nem precisa explicar o que fazer. Agora, quem ganha mais de um milhão de reais por mês, que tal ser taxado em 70, 80 ou 90% para combater não o coronavírus, que vai passar, mas a miséria crescente. Vejam a curiosidade: se um abastado ganha um milhão por mês e se for taxado em 90%, vai sobrar apenas 100 mil reais por mês, que tal? 100 mil reais por mês? É isso mesmo? Depois de ser taxado em 90% do que ganha, ainda sobra 100 mil reais por mês? Escárnio é a palavra mais suave que nos (s)ocorre. 
 
Essa história de que as mudanças no Imposto de Renda têm que ser feitas um ano antes, aprovada pelo Congresso etc... é conversa p’ra boi dormir. 
 
Os exterminadores de trabalhadores sabem muito bem, quando é de seu interesse, driblar os prazos para emendar A Constituição Federal no que não seja cláusula pétrea. E ao que nos consta, a acumulação pornográfica de riqueza não é cláusula pétrea constitucional. 
 
A segunda saída vai pelas outras questões do conflito desigualdade-morticínio (antigo conflito capital-trabalho). A lavagem cerebral que tem sido perpetrada nos últimos anos de que os trabalhadores devem buscar seus caminhos de realização financeira, capitalização, independência, autonomia é o maior embuste da história humana moderna. Baseado no self-made-man americano, trabalhadores do mundo inteiro estão entrando no que se chama, no Brasil, de conto-do-vigário. Basta uma “gripezinha”, segundo a fala do ‘mito’, para
demonstrar o embuste. Um parêntesis. Em tempos de coronavírus e Google: mito significa absurdo, aparência, fábula, fantasia e, para concluir “algo ou alguém cuja existência não é real ou não pode ser comprovada.” 
 
O Brasil, hoje, é um pobre país rico. Seus trabalhadores perderam o sentido de trabalho protegido, amparado pelo Estado. Afinal, é para isso que serve o Estado (palavra pensada com esse sentido há 400 anos). No mínimo, diante da pandemia do coronavírus, estamos atrasados há pelo menos 400 anos. 
 
O que fazer com os (ninguém sabe direito) 46, 52 milhões de trabalhadores precarizados, autônomos, biscateiros, camelôs, domésticas sem vínculo, diaristas, prestadores de serviço e, principalmente, micro empreendedores individuais? Pior, o que fazer com os milhões (esses, então, ninguém sabe precisar) de desempregados desalentados, idosos sem assistência, crianças com deficiência, moradores de rua, refugiados escondidos, desabrigados de crimes ambientais? E tantos outros? 
 
Os economistas de Chicago et caterva terão uma solução rápida: extermínio. Como dizem (meio envergonhadamente) a frase ouvida várias vezes: “A vida não pode se sobrepor à economia, porque a economia também é vida.” Hipocrisia se fosse negociada na Bolsa, enriqueceria seus acionistas na pandemia. Todavia, como está lá sem ser (ainda) uma ação nominativa, apenas uma ação preferencial, a hipocrisia é uma blue ship não assumida. Por ora, a depender do futuro da pandemia, a hipocrisia que aposta no contrato futuro pode ser uma opção preferencial a curto prazo. Sua margem de garantia é respaldada pelo Ibovespa e o índice Dow Jones. Sua margem de garantia é assegurada pelo extermínio dos trabalhadores. 
 
O que fazer? A resposta é óbvia. Opor-se de forma veemente, articulada, consistente e combativa à reforma trabalhista; reforma previdenciária; reforma errática do Estado; concentração acelerada da renda; desoneração de bancos e do sistema agroexportador; desativação de órgãos fiscalizadores; depauperação de órgãos de ensino e pesquisa; privatização da saúde; renúncia fiscal de setores que põem em risco a construção de um Estado democrático de direito: saúde privada, educação privada, igreja privatizada, transferência hereditária de riqueza (herança) e ao corporativismo de castas civis e militares. 
 
As medidas emergenciais todos sabemos: fim do teto de gastos; renda mínima (salário mínimo, claro) para todos os trabalhadores nas condições conhecidas de precariedade, cobrança emergencial dos devedores abastados de impostos aos entes federativos, contratação emergencial de servidores públicos para todos os setores considerados estratégicos, agilização do imposto de renda progressivo sobre os ricos (como já foi assinalado), taxação ostensiva sobre bens supérfluos, tais como número de imóveis, sítios e fazendas de tamanhos inconcebíveis, haras, automóveis de luxo, iates, aviões particulares, imóveis em outros países com sonegação comprovada, viajantes semanais e mensais para Dubai, Miami, Roma, Paris etc., fazedores de selfies para seus facebook de colunáveis. A ostentação da riqueza num país de miseráveis é crime. E se ainda não é, que passe a ser. 
 
Se, enfim, o coronavírus não nos salvar, pois os inimigos da vida humana e dos pobres e miseráveis são poderosos e ricos, nessa altura do campeonato só nos resta apelar para Adam Smith com sua amalucada teoria da mão invisível do mercado. Ele, um liberal, digamos “bem intencionado”, que, inocentemente, criou a matriz disso que está aí: o neoliberalismo que chafurda o esgoto, ao menos tentava evitar o que ostentamos no título “o extermínio dos trabalhadores”. 
 
De sua “sabedoria” primitiva sobressaía uma coisa: trabalhadores devem ser tratados com humanidade e devem ter sua dignidade garantida, pelo menos na sobrevivência. Hoje isso não conta para quem acha que “a vida não pode se sobrepor à economia, porque a economia também é vida.” 
 
Que o coronavírus exerça sua contradição: impeça que os trabalhadores sejam exterminados, mudando a concepção de um modelo econômico global genocida. 
 
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos 


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