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Entrevista: 'Eu sou uma enlameada da periferia desta cidade', destacou a aluna da ENSP, Miriam Amaral

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Publicado em:03/04/2019
 
Na última década, o Brasil ampliou o acesso das camadas mais pobres à universidade, o que redundou na democratização do conhecimento e protagonismo de lideranças como Marielle Franco, que não só adentrou o ensino superior, como também continuou sua formação, tornando-se mestre. Na sequência, esse quadro trouxe ao país teóricos mais contundentes que articularam o cabedal teórico à força do lugar de fala.   
  
Agora, nesta "nova era", em que o debate sobre a universidade para todos ou para uma elite volta à pauta – aparentemente, parecia ter sido superado –, faz-se necessário e urgente dar visibilidade às classes que alguns desejam ver de novo excluídas da Academia. A fim de discorrer sobre esse tema, o Informe ENSP conversou com a aluna do Curso de Especialização em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/ENSP/Fiocruz), Miriam Amaral. 
 
 
Informe ENSP:  Conte um pouco do seu histórico, as dificuldades da entrada na Academia, como sentiu-se e foi recebida.
 
Entrevista: 'Eu sou uma enlameada da periferia desta cidade', destacou a aluna da ENSP, Miriam AmaralMiriam Amaral Queiroz: Sou mais conhecida como Miriam Seso, porque sou formada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Nasci no Chapéu Mangueira, sou a caçula de seis filhos. Nossa casa se incendiou quando minha mãe estava no quinto mês de gestação, e moramos em casas de parentes, no morro, por um ano, quando a Igreja Batista do Leme construiu uma casa simples em São Gonçalo, em um terreno cedido por um de nossos tios, onde moramos por mais de quarenta anos. 
 
Vim de uma família com uma matrona muito aguerrida e dedicada; meu pai, embora tenha nos coberto de amor, não provia o feijão necessário. Era minha mãe e minha irmã, Ivonete, quem arcavam com as despesas da casa. Estudei em escola pública e, quando minha irmã mais velha, que também cursou escola pública, trabalhava no Hemorio, ela pôde viabilizar o pagamento do meu pré-vestibular e, desse modo, consegui ingressar na UFF. A universidade, embora seja um espaço público, não é gratuita e mantém uma estrutura muito elitizada. Para começar, o curso era integral, o que me impedia de trabalhar para complementar qualquer renda em casa e na vida acadêmica. Um período de muitas batalhas e dificuldades, não tinha sequer sapatos adequados para ir estudar. 
 
A universidade foi marcada por muitas greves nos anos 1990; então, o bandejão ficava fechado, e eu ficava sem o que comer na hora do almoço. Como estava com o dinheiro contado, tinha que voltar para casa. Até que eu consegui pleitear uma vaga na CEF (Casa do Estudante Fluminense), onde passei a contar com uma estrutura alimentar mais garantida. A vida só melhorou quando cheguei ao 3º período, porque já poderíamos nos inscrever em bolsas de pesquisa e recebi uma bolsa para estudantes em situação de vulnerabilidade econômica social.
 
Por meio das orientações de amigos dos movimentos sociais e da Unegro, investi em concursos públicos com intuito de fugir do racismo institucional. Após a conclusão da faculdade, no final do curso, casei, tive uma filha maravilhosa, a Manuela Queiroz, me separei e ingressei no movimento sindical.
 
Sou servidora do município de Armação dos Búzios e do município de Macaé. Sempre estive ligada à luta pelos direitos dos servidores; depois, entrei em contato com o Cesteh/ ENSP/Fiocruz e, hoje, ingressei na pós-graduação. A entrada no Cesteh foi muito bacana, porque a instituição considerou as experiências, as vivências e os currículos que tivessem intimidade com a saúde do trabalhador. Mas, via de regra, a Academia não se comporta assim: tem uma linguagem específica para um público específico, que não corresponde à linguagem dos movimentos sociais e da periferia. Essa releitura do processo seletivo do próprio Cesteh facilitou o diálogo entre o movimento social e a Academia, um processo que considero de suma importância.
 
Informe ENSP: Como a ENSP poderia fazer para diminuir a distância entre a instituição e os movimentos sociais?  
 
Miriam Amaral: Equidade e cotas para os movimentos sociais, por exemplo, cotas para os sindicatos em curso de saúde do trabalhador.
 
Informe ENSP: Como os movimentos sociais podem contribuir com a Academia?
 
Miriam Amaral: Penso que é uma via de mão dupla por meio da troca de conhecimentos e saberes, além da vivência do movimento social.
 
Informe ENSP:  Em que medida a troca de saberes entre Academia e movimentos sociais pode ser importante para as mudanças desejadas estruturalmente no país?
 
Miriam Amaral: A produção coletiva do conhecimento é algo extremamente revolucionário. Os movimentos sociais são organismos vivos, estão na base da sociedade, e a Academia contém um formato que qualifica os movimentos sociais. Não que eles, por si sós, não tenham qualidade, mas a Academia tem um formato que dialoga com o mundo, e essa troca de saberes pode e deve ser traduzida em políticas públicas direconada a todos, que sejam políticas emancipadoras da humanidade.
 
A maior riqueza dos movimentos sociais é a voz do indivíduo, a verdade da periferia, de um sujeito que é dono da sua história. Políticas públicas, sem a voz dos periféricos, produz um efeito de apagamento desses sujeitos. Desde que os invasores chegaram, há uma elite racista excludente, escravista, racista e homofóbica que se apropria da riqueza socialmente produzida, e isso gera sequelas. Penso que a gente precisa se debruçar sobre a História e aprender com ela. Gosto de citar Clóvis Moura, quando ele fala do Quilombo dos Palmares, o maior quilombo do Brasil, que se organizava com uma base na produtividade coletiva da terra, na policultura, direcionando toda essa produção para todos os seus membros de forma igualitária, e o resultado disso era que “enquanto a fome grassava na Colônia, havia fartura em Palmares” (Moura, 2014). Acho que Clóvis Moura nos dá uma lição muito importante nesse momento: a ausência de distribuição das nossas riquezas socialmente produzidas nos coloca neste quadro que a gente se encontra hoje. A fome, por exemplo, não é uma questão de produção de alimentos, e sim de logística e distribuição. Um grupo pequeno de poderosos do mundo decide quem come e quem morre de fome. Os movimentos sociais são importantes porque denunciam a miséria, a ausência de qualidade no processo educacional, o sexismo e a homofobia, entre tantas outras fobias.
 
Essa troca de conhecimentos entre Academia e movimentos sociais possibilita o desenvolvimento de políticas públicas que abarquem tais demandas. Precisamos da Academia, mas também dos movimentos sociais nas ruas, nos Parlamentos, disputando o espaço do Parlamento com a burguesia, ou seja, ocupar os espaços de diálogo e produção de conhecimento. 
 

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