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Entrevista: Pesquisadoras da ENSP falam sobre melhoria do cuidado obstétrico em maternidades públicas

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Publicado em:24/07/2018
Um grupo de pesquisadoras do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da ENSP/Fiocruz se debruçou, durante três anos, na condução de um projeto voltado para a melhoria do cuidado obstétrico em maternidades públicas de uma grande cidade brasileira. 
 
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a morte materna é qualquer morte que ocorra durante a gestação, parto ou até 42 dias após o parto. Cerca de 92% dessas mortes são por causas evitáveis e ocorrem, principalmente, por hipertensão, hemorragia ou infecções.
O trabalho que advém da experiência do grupo na organização e melhoria da qualidade do cuidado de saúde propôs uma intervenção multifacetada nas unidades de saúde, tendo em vista o enfrentamento dos problemas na atenção ao parto e a busca por garantir a segurança da paciente - em um dos momentos mais especiais de sua vida - e do seu bebê. Condição essencial ao desenvolvimento desse tipo de trabalho é a parceria, inserção e adesão dos profissionais e organização de saúde, sem a qual esse tipo de abordagem não evolui de fato. 
 
A intervenção lançou mão de um conjunto de materiais de sensibilização, lembretes e instrumentos voltados para classificação do risco das pacientes no seu acolhimento e evolução, incremento do uso de boas práticas no cuidado às síndromes hipertensivas e à hemorragia, melhoria da comunicação entre profissionais sobre casos críticos ou que demandam atenção especial e incentivo ao cuidado centrado na pessoa.
 
Lições aprendidas são apresentadas no artigo Cuidado obstétrico: desafios para a melhoria da qualidade, de autoria das pesquisadoras Margareth Crisóstomo Portela, Lenice Gnocchi da Costa Reis, Mônica Martins, Juliana Loureiro da Silva de Queiroz Rodrigues, Sheyla Maria Lemos Lima, publicado na seção ‘Perspectivas’, do periódico Cadernos de Saúde Pública
 
Em entrevista ao Informe ENSP, as pesquisadoras Margareth Portela, Lenice Reis e Mônica Martins detalharam as principais intervenções realizadas nas quatro maternidades e relataram os problemas de comunicação e disputa dentro das próprias equipes de saúde. Confira a entrevista abaixo e leia o artigo na íntegra aqui.
 
Informe ENSP: Em 2014, os resultados da Pesquisa Nascer no Brasil indicaram elevado porcentual de cesarianas no país, além de um modelo de parto vaginal com excesso de intervenções. Apesar dos grandes avanços na área, agora, vocês trazem um novo olhar sobre o modelo de atenção ao parto. Como surgiu a ideia de desenvolver um projeto de intervenção em maternidades públicas?
 
Margareth Portela: O projeto nasceu do interesse de trabalhar a melhoria da qualidade do cuidado obstétrico. Nosso percurso como pesquisadoras do Daps/ENSP/Fiocruz sempre esteve centrado na avaliação e melhoria da qualidade dos serviços de saúde. Temos nos dedicado a propostas de intervenção voltadas para melhorias do cuidado, realizadas de uma forma mais sistematizada, científica, pensando no seu funcionamento de modo racional e nas principais estratégias para colocá-las em prática.
 
Inicialmente, o que mais nos chamava a atenção era a grande porcentagem de cesarianas, que passavam de 90% nas maternidades privadas do país. No entanto, quando sentamos com os dirigentes para definir as estratégias de trabalho em conjunto objetivando essa redução, observamos que, na verdade, esse não era o principal tema a ser tratado naquele contexto, principalmente porque já havia iniciativas em curso para lidar com essa dificuldade. 

Entrevista: Pesquisadoras da ENSP falam sobre melhoria do cuidado obstétrico em maternidades públicas

A mortalidade materna foi apontada como o maior problema pelas equipes, e direcionamos o trabalho para as duas principais razões: hipertensão e hemorragia. Trabalhar essas duas questões, por si só, já contempla um grande pacote de ações, além de o próprio município possuir grupos de trabalho direcionados para tal propósito.
 
Lenice Reis: Os estudos sobre a taxa de cesariana já estão colocados, e nosso interesse é discutir os motivos de estar dessa forma e como poderíamos melhorar esse cuidado, ou seja, como ir adiante. O projeto é voltado para mudança, para subsidiar melhorias; por isso a ideia da intervenção. Isso nos fez buscar conhecer o contexto daqueles locais onde a ação seria desenvolvida e adaptar as iniciativas a cada realidade.
 
Informe ENSP: Quais aspectos envolvem uma intervenção dessa forma?
 
Margareth Portela: A implementação da intervenção previu a sensibilização de lideranças, a realização de treinamentos e a distribuição de materiais facilitadores da realização de boas práticas. O projeto envolveu também um diagnóstico da situação. Entrevistamos os profissionais das maternidades, as pacientes a respeito de suas expectativas em relação ao cuidado no parto e identificamos uma série de situações que nem todos reconheciam como problema. 
 
Lenice Reis: Dentro de uma intervenção multifacetada, trabalhamos muito além dos aspectos técnicos envolvidos. Para além da qualificação técnica dos profissionais, é importante desenvolver a capacidade de comunicação e de organização das equipes, a capacidade de atuação em equipe multiprofissional, sem perder de vista que há disputas e tensões, ou seja, há muita coisa além dos aspectos técnicos. 
 
Informe ENSP: Como os gestores receberam a iniciativa? 
 
Margareth Portela: Fomos muito parceiros durante todo o processo, condição sine qua non. Havia um grupo de pesquisadores, mas as direções das quatro maternidades estiveram sempre conosco. Lidamos com dois modelos de gestão no município, com maternidades de grande experiência, mas sempre com a preocupação de melhorar a qualidade. Todos comprometidos com a causa do parto de boa qualidade.
 
Informe ENSP: Qual cenário o resultado das entrevistas apresentou para vocês?
 
Margareth Portela: Ouvimos, nas entrevistas, algo muito problemático sobre a classificação de risco. Há uma classificação de risco quando a mulher chega na maternidade, mas o parto é algo que pode surpreender. A mulher pode evoluir de modo aparentemente bom, mas, de repente, pode requerer uma atenção mais especial.
Há clara disputa de poder e tensão corporativa. Parece haver, em muitos casos, uma desconfiança mútua entre médicos e enfermeiras, o que dificulta ações oportunas em situações nas quais o parto, inicialmente avaliado como de baixo risco, evolui para um quadro de maior risco, e a intervenção médica se faz necessária. Médicos alegam ser chamados tardiamente e, com frequência, apontam a responsabilidade civil que sobre eles recai. Enfermeiras, por sua vez, queixam-se da demora dos médicos quando chamados. A paciente percebe esse tipo de falha, e isso gera insegurança. 
 
Informe ENSP: Quais foram as medidas de intervenção propostas pela equipe? 
 
Margareth Portela: É importante frisar que os relatos das entrevistas foram discutidos em cada unidade e serviram de âncora para o delineamento da intervenção. Assim, precisávamos intervir na classificação de risco. Já existem muitos instrumentos e experiências sobre esse aspecto, mas produzimos materiais de sensibilização e os disponibilizamos em locais estratégicos, deixando claro que a classificação de risco deve ser algo dinâmico, monitorado constantemente.
Desdobramento desse passo inicial foi a organização e disseminação de protocolos para hemorragia e hipertensão, para o que diversos materiais foram produzidos – lembretes, folders, cartazes. Esses foram apresentados às unidades e inseridos em uma estratégia de treinamento com simulação de situações reais.
 
Lenice Reis: Além disso, propusemos o uso do partograma. É um instrumento simples, preconizado como boa prática, mas nem sempre utilizado. Foram produzidos quadros brancos, com desenho do gráfico de evolução do trabalho de parto para ficar ao lado do leito da paciente. Essa é uma ferramenta fundamental de comunicação. Quem chegar verá como o parto está evoluindo, quando foi o último exame, quem fez, como estavam os batimentos cardíacos do bebê. 
 
Informe ENSP: E sobre a experiência da mulher no parto?
 
Margareth Portela: Esse foi o tema do estudo de mestrado da Juliana Rodrigues e trouxe elementos sobre o quão distante ainda estamos da provisão de um cuidado centrado na paciente. As puérperas percebem inconsistências nas informações transmitidas por diferentes membros da equipe de saúde, o que explicita as falhas de comunicação e redunda em insegurança. Mesmo o direito ao acompanhante na maternidade ainda é comprometido em algumas situações, em especial pela inadequação de espaço físico. As mulheres também revelaram o quanto o manejo da dor é um elemento importante para uma boa experiência no parto. Reconheceram que é importante ter acesso a alternativas não farmacológicas, mas, também, colocaram a necessidade de maior disponibilização de agentes anestésicos e anestesiologistas.
Outro material bem interessante foi um cartaz com orientações para os profissionais sobre como é importante tornar o cuidado pessoal, com coisas simples tais como se apresentar, perguntar o nome da paciente. É preciso melhorar a experiência da mulher, informá-la sobre o que está sendo feito, qual é sua situação, detalhar os passos seguintes. Essas medidas são fundamentais.
 
Informe ENSP: Qual avaliação vocês fazem do trabalho desenvolvido nas maternidades?
 
Mônica Martins: Alguns temas precisam ser continuamente debatidos para que sejam desenhadas as intervenções capazes de modificar o cenário atual. Papéis atribuídos a lideranças e a profissionais de saúde envolvidos na prestação do cuidado no pré-natal, parto e puerpério necessitam ser mais claramente definidos, não se perdendo de vista a necessidade de facilitar a coordenação e continuidade do cuidado, de forma individualizada e atenta ao nível de risco observado. 
O investimento no trabalho em equipe multiprofissional é fundamental. Em médio e longo prazos, cabem mudanças na formação universitária que propiciem o trabalho multiprofissional, com ênfase em habilidades técnicas, mas também relacionais/sociais. Em curto prazo, devem ser realizados treinamentos regulares centrados na melhoria da comunicação nas equipes e simulações realísticas de situações clínicas críticas. Adicionalmente, a promoção de comunicação mais estruturada que, de fato, facilite a detecção de problemas e a aplicação de intervenções oportunas é um aspecto importante a ser perseguido.
 
Margareth Portela: Mostramos que existem tecnologias, pois experimentamos com eles; desejamos, porém, que caminhem com suas próprias pernas. O modelo não está definitivamente assimilado, há muitas dificuldades ainda, mas são necessárias mudanças que garantam a prestação de um cuidado obstétrico seguro, centrado na paciente, efetivo e equânime no contexto de uma metrópole brasileira. 
Sem dúvida nenhuma, foi um trabalho muito gratificante para todas nós, pudemos observar resultados direto no cuidado. Claro que há necessidade de retreinamento sempre, como em outros países, uma vez que intervenções de melhoria da qualidade têm sempre o risco de perderem seu efeito ao longo do tempo;  portanto, as boas práticas precisam ser continuamente reforçadas. 

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