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Cuidado em domicílio: ACS são legítimos mobilizadores sociais, mas não é o suficiente para garantir seu reconhecimento

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Publicado em:24/07/2017

*Por Ana Cláudia Peres

Cuidado em domicílio: ACS são legítimos mobilizadores sociais, mas não é o suficiente para garantir seu reconhecimentoEra uma visita domiciliar de rotina. Mas a agente comunitária de saúde Haíla Rangel Pimenta percebeu que o gatinho ao pé da mesa tinha uma grande ferida no olho esquerdo. Durante o café, ela também notou uma lesão no braço da dona da casa, algo como um pequeno furúnculo - pelo menos foi assim que a senhora tentou desconversar naquele dia. Háila não se convenceu e marcou uma consulta da moradora com a médica do Posto de Saúde da Família Maria Cristina, em Mesquita, município da Baixada Fluminense, onde atua desde 2010. O atendimento revelou esporotricose - micose que pode afetar homens e animais, especialmente os felinos. "Voltei à comunidade com o enfermeiro, conversei com o restante da equipe, fizemos pesquisas. No dia seguinte, estávamos com uma palestra pronta. Depois, saímos colando cartazes alertando sobre os cuidados e acabamos descobrindo inúmeros outros casos na região", lembra Háila. A agilidade da agente comunitária de saúde aliada ao senso coletivo fizeram com que a doença fosse tratada e logo debelada do território. Se quando prestou o concurso Hayla não sabia exatamente o que fazia um ACS (sigla pela qual a categoria é conhecida dentro e fora do Sistema Único de Saúde), hoje ela não tem dúvidas. "Não somos atores coadjuvantes da saúde pública, somos fundamentais. Durante as visitas domiciliares, atuamos para garantir todo o cuidado e a atenção que a nossa comunidade merece. Nosso trabalho preventivo vale muito”, afirma, defendendo que a melhor coisa da vida é ser agente comunitária de saúde. "Vivo por minha comunidade e é para ela que eu quero todas as melhorias".

Oficialmente implantado em 1991 e inicialmente conhecido como Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), o trabalho do ACS funciona hoje como uma espécie de espinha dorsal da Estratégia de Saúde da Família (ESF), a despeito dos constrangimentos e ameaças que a categoria sofre repetidamente (ver matéria na página 14). No documento que apresenta a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), publicado pelo Ministério da Saúde em 2012, está escrito com todas as letras: as atribuições do ACS vão desde trabalhar com adscrição de famílias em base geográfica definida, cadastrar todas as pessoas de sua microárea e manter os cadastros atualizados, até orientar as famílias quanto à utilização dos serviços de saúde disponíveis e acompanhar, por meio de visita domiciliar, todas as famílias e indivíduos sob sua responsabilidade, além de desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção das doenças e agravos e de vigilância à saúde, com ações educativas individuais. Ao lado do médico, do enfermeiro e do técnico de enfermagem, o ACS integra a equipe mínima da Saúde da Família.

Na prática, como descreveu a pernambucana Tereza Ramos, líder comunitária e uma referência histórica entre os ACS, o agente comunitário de saúde é, antes de tudo, alguém que se identifica em todos os sentidos com a sua própria comunidade, principalmente na cultura, na linguagem e nos costumes. “Precisa gostar do trabalho. Gostar principalmente de aprender e repassar as informações, entender que ninguém nasce com o destino de morrer ainda criança”, disse em uma entrevista que se tornou célebre ao Jornal dos Agentes de Saúde do Brasil, ainda em 2013. Tereza, que morreu em 2016, foi presidente da Confederação dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) por três mandatos e é um dos principais nomes na luta dos ACS pela regulamentação dos direitos da profissão.

Parte da família

De Nova Iguaçu, Ailana Scandian gosta de pensar que já era agente de saúde antes mesmo de prestar concurso para o município, em 2008. Quando o cólera ameaçou voltar ao Rio de Janeiro no início dos anos 2000, ela, de bom grado, foi de porta em porta conversar sobre higiene e distribuir orientações. Formada em Ciências Contábeis, decidiu trocar os números pelas histórias de vida das pessoas com quem convive desde criança no bairro de Cerâmica. “Isso era algo que já gostava de fazer. Agora, durmo e acordo pensando na comunidade. Nós somos ACS 24 horas por dia; ‘366’ dias ao ano. Não temos folga”, conta, exagerando de propósito na matemática, a fim de demonstrar que, para fazer a ponte entre a comunidade e a equipe de saúde, a dedicação extrapola as 40 horas semanais de trabalho.

De acordo com a normatização da profissão, o ACS deve residir na área da comunidade em que atua. “Estou cuidando de pessoas que me viram criança. As casas que hoje visito são casas que eu costumava frequentar na infância onde brincava com os filhos dessas pessoas. Também tô perdendo gente de quem gosto muito, infelizmente”, comenta Ailana que hoje integra a Associação de Agentes Comunitários de Saúde da Baixada Fluminense (AACS-Baixada). “Quando um ACS é recebido por uma família, é como se passasse a fazer parte dela. Tudo o que acontece ali nos afeta profundamente”, diz. A agente comunitária acredita que o grande diferencial do seu trabalho é a visita domiciliar e critica uma certa burocratização que, segundo ela, vem ocorrendo na profissão. “A gente tem visto muito ACS dentro da unidade, fazendo trabalho administrativo, digitando coisas, atrás de um balcão, agendando consulta, agora até com blusinhas de ‘Posso Ajudar’”, diz. “Quando isso acontece, cuidar das famílias fica em segundo plano”.

É por isso que, quando fala sobre os agentes comunitários de saúde, a pesquisadora e professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Márcia Valéria Morosini, não consegue apenas tirar uma fotografia do momento atual. Ela faz questão de se referir a uma categoria profissional e a um trabalhador egresso dos movimentos populares que tem uma história anterior às discussões sobre saúde da família e que precede até mesmo a criação do SUS. “A gente está falando de uma história de trabalho que vem dos movimentos populares de saúde, da luta pela democratização, pela Reforma Sanitária”, recorda a pesquisadora. “Os sujeitos que se tornaram agentes comunitários de saúde são homens e mulheres que trouxeram para dentro do SUS essa história que começa na sociedade civil organizada”.

Ao mesmo tempo, lembra Márcia, ele se torna um trabalhador, e não um voluntário, a partir do SUS e de sua inclusão na ESF. “Esses trabalhadores são chamados a ser mediadores do território para os serviços de saúde, a ser intérpretes para as equipes que não compreendem aquele território”, diz. Para ela, a profissão se institucionaliza a partir de uma política pública que avança nos direitos da classe trabalhadora e de uma estratégia que amplia o acesso e o direito à saúde, mas o faz dentro dos limites do contexto neoliberal dos anos 1990. Nesse percurso, o agente comunitário de saúde vai se profissionalizando. “Ele quer uma lei que diga que ele é ACS; que fale sobre os seus vínculos”, acrescenta a pesquisadora, remetendo à origem da Lei 10.507, de julho de 2002, que cria a profissão de Agente Comunitário de Saúde.

Ana Cristina Freitas trabalha como ACS há mais tempo do que a promulgação da Lei: 16 anos. Fez o concurso para o município de São Gonçalo (RJ) e, aprovada, aprendeu na prática como fortalecer a integração entre os serviços e a comunidade; descobriu tudo sobre prevenção de doenças e promoção de saúde; e, durante as visitas domiciliares e nas ações individuais e coletivas, percebeu que saúde diz respeito à moradia, educação, condições de trabalho, alimentação ou mesmo ao modo como cada pessoa se diverte. “Só é possível conhecer a realidade de uma família quando entramos na casa dela. E é isso que o ACS faz. Entramos na casa das pessoas”, resume Tininha, como é conhecida. “Isso não é tão simples. Mas aos poucos as pessoas vão abrindo as portas e a gente vai percebendo suas necessidades. Não é só o fato de a pessoa estar com uma doença em si. Saúde é muito maior do que isso”.

A ACS acha gratificante o carinho que recebe dos moradores e ainda se emociona ao falar do trabalho no território. Como no dia em que, durante uma “VD” — como a visita domiciliar é conhecida entre os agentes — conseguiu convencer um morador a cuidar de um problema na perna que por pouco não se transformou em um dano irreversível. “Ele tinha uma ferida enorme em uma das varizes e dizia que não cuidaria mais porque já tinha perdido a esperança de ficar bom”, conta. “Tive dificuldades em convencê-lo mas acessamos a enfermeira e, a partir dali, eu fiquei monitorando. Em seis meses a gente conseguiu fechar aquela ferida. E ele nos agradeceu para sempre”.

Balde de gelo

Nem sempre é assim. Ano passado, Háila leu algo que a incomodou. Foi mesmo uma das piores coisas que podia ter visto sobre a profissão que abraça com afinco desde que começou a atuar na Estratégia de Saúde da Família. No Facebook, viu o comentário de uma médica: “Por que defender uma categoria que não tem nem formação?” “Aquilo foi como se jogassem um balde de gelo, que é pior que o de água fria”, diz à Radis. “Podemos não ter uma formação clássica mas temos formação de vida e experiência. Quando entramos na casa de alguém, a gente observa, conversa, dialoga. Estamos atentos ao colesterol do hipertenso; à glicose do diabético. A gente olha se o esgoto tá correndo, se a caixa d’água tá tampada”.

Tininha concorda: “A gente sabe se eles bebem água filtrada ou não, porque a gente bebe água na casa deles. A gente sabe o que eles comem no dia a dia porque a gente almoça com eles, toma café com eles”. Para Ailana, esse tipo de cerceamento ao trabalho do ACS só tem uma explicação. “Nós somos as famílias, somos o ouvido do povo e a voz do povo. E nós somos o olho do SUS dentro do município. Isso talvez incomode muita gente”. Mas as três ACS ouvidas nesta reportagem consideram a formação profissional de extrema importância. Este ano, Háila, Tininha e Ailana são alunas do curso técnico de agente comunitário de saúde oferecido pela EPSJV/Fiocruz, com aulas duas vezes por semana em tempo integral, totalizando no final mais de 1.300 horas em sala de aula.

A formação ainda é o calcanhar de Aquiles da categoria. Desde 2004, está publicado o referencial curricular para o curso técnico de ACS, mas até agora não foi aprovado na Comissão Intergestores Tripartite o financiamento do Ministério da Saúde e a oferta universal dessa formação. Para a pesquisadora Márcia Valéria, esse é um direito que não deveria ser negligenciado. “Existia um mito de que, para poder ser bom mediador e representar bem a comunidade, o ACS tinha que viver vida igual aqueles que ele atende”, explica. “Era como se, ao se formar em técnico, ele perdesse a capacidade de ouvir, de escutar e de se identificar com aquele território. Mas esse argumento é no mínimo curioso. Ora, em toda profissão, quanto mais qualificado, melhor é o profissional”.

Mobilizador social

Márcia acrescenta que o instrumental teórico e grande eixo articulador da formação curricular do ACS é a educação popular em saúde. Na opinião da pesquisadora, enfermeiros, médicos e outros profissionais podem e devem fazer educação em saúde. “Mas quem exerce de fato a educação popular em saúde com tudo o que isso significa em termos de intervenção cultural e trabalho político é o ACS”. A pesquisadora chama atenção ainda para o fato de que, nos primeiros documentos, textos legislativos, portarias e normatizações da categoria, era possível ler referências ao papel do ACS como mobilizador social visando a garantia das políticas públicas no território e a conquista de direitos. “Isso foi se perdendo. Desapareceu inclusive dos textos de revisão das PNABs de 2006 e 2012”, lamenta. “Isso não é à toa. Trata-se de uma perspectiva de saúde que ganhou, em detrimento de outra que estava ali mais no início”.

Vinte e cinco anos depois do surgimento oficial dos ACS, há 240 mil agentes distribuídos em todo o território nacional. Mudaram as comunidades e transformou-se também o perfil dos profissionais. Se no início ele é voltado para as zonas rurais e redutos de difícil acesso, agora os agentes estão no meio urbano, nas grandes metrópoles, atuando principalmente nas favelas. “Ele vai encontrar realidades distintas e deve enfrentá-las. Vai se reinventar enquanto profissão mas continua exercendo um papel fortíssimo nos territórios”, atesta Márcia, para quem o trabalho do ACS passa por mudanças assim como o do médico ou do enfermeiro, a depender do local onde esteja atuando, se no asfalto ou no morro, numa comunidade quilombola ou numa comunidade indígena. “Em uma sociedade dinâmica como a nossa, qualquer trabalho precisa se modificar”, diz. “Agora, nenhum de nós se modifica completamente. Há sempre uma base que permanece. Essa base é dada pela formação técnica”.

*Ana Cláudia Peres é jornalista da Revista Radis


Fonte: Revista Radis
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