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Entrevista: O Brasil realmente sabe como está o avanço do HIV no país?

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Publicado em:09/12/2016
*Por Vilma Reis

Todo ano, veículos de comunicação do mundo inteiro se agendam para pontuar o 1º de dezembro como Dia Mundial de Luta contra a Aids e estabelecer um entrelaçamento de comunicação, promovendo a troca de informações e experiências sobre o tema. Porém, uma semana depois da efeméride, muito pouco ficou na agenda dos brasileiros, o assunto já sumiu das redes sociais e mesmo quando esteve presente mostrava-se permeado de lacunas. Em seu site, a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) publicou dados alarmantes sobre o avanço do HIV e da Aids no Brasil - o país conta mais de 40% de novas infecções na América Latina entre 2010 e 2015 - e que constam no Relatório sobre Prevenção 2016, do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e Aids (Unaids). Para a Abia, o que acontece no cenário brasileiro fortalece o argumento de que as respostas biomédicas não substituem as respostas sociais. O Brasil abriu mão de construir uma resposta à epidemia utilizando a experiência dos movimentos sociais.

Leia aqui a matéria publicada no Portal ENSP em alusão ao Dia Mundial de Luta Contra Aids.

Na publicação, pesquisadores e ativistas convidados, como Sônia Corrêa, Alexandre Grangeiro, Mario Scheffer, Veriano Terto Jr., dentre outros, oferecem um panorama crítico do país à luz da atual conjuntura política e econômica. Na análise crítica sobre a assistência, feita pelos especialistas Maria Inês Baptistela Nemes e Mario Scheffer, no artigo Desafios da assistência às pessoas que vivem com HIV e Aids no Brasil, os autores reconhecem que é necessária a recuperação de uma vigorosa resposta assistencial para o país retomar o caminho outrora reconhecido como bem-sucedido. “As maiores perdas no contínuo do cuidado após o diagnóstico ocorrem nas etapas de retenção e de tratamento, ambas responsabilidade principal dos serviços de assistência.”, resumem Maria Inês Baptistela Nemes e Mario Scheffer.

Para reforçar a iniciativa da Abia em oferecer uma leitura crítica sobre o retrocesso brasileiro, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) ouviu a pesquisadora do Departamento de Ciência Sociais da ENSP, Monica Malta, que também integra a Comissão de Epidemiologia da Abrasco. Confira a entrevista abaixo.

Abrasco: Por que o Brasil, um país em desenvolvimento que organizou um programa reconhecido internacionalmente, hoje aparece entre os países onde a prevalência do HIV/ Aids vem aumentando? Que fatores levam a infecção pelo HIV crescer entre os jovens, em especial entre jovens gays?

Entrevista: O Brasil realmente sabe como está o avanço do HIV no país?Monica Malta:
Em 2016, comemoramos 20 anos da Lei 9.313, de 13 de outubro de 1996, que assegurou acesso universal e gratuito aos antirretrovirais (ARV). Na época, o Brasil foi considerado um modelo internacional a ser seguido. No entanto, o país, atualmente, enfrenta uma enorme crise política, descrita por inúmeros analistas como a mais grave turbulência experimentada pelo país no período pós-democratização - que culminou com o impeachment da presidente eleita Dilma Roussef.

Diversas decisões tomadas nos últimos anos pelo governo federal e posições defendidas pelo novo ministro da Saúde demonstram uma postura bastante diversa da adotada pelo Brasil ao longo da elaboração da tão aclamada resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids. Nas últimas décadas, observa-se uma transformação na sociedade e na política brasileiras que resultaram em uma expansão de visões conservadoras e moralistas em relação à sexualidade, gênero, educação, família.

Essas tendências regressivas têm influenciado a adoção de políticas de gênero e sexualidade mais conservadoras, no mesmo ritmo de crescimento do poder político de forças conservadoras e religiosas dogmáticas. O Brasil possui historicamente uma epidemia de HIV/Aids concentrada em populações-chave (profissional do sexo, homossexuais, transexuais), cujos direitos humanos, acesso a políticas de prevenção, qualidade de assistência e existência (ou não) de ações afirmativas tentem a ser impactados de forma negativa por esses grupos mais conservadores.

Este aspecto, ao meu ver, responde por uma parcela do problema que hoje observamos na epidemia de HIV/Aids. Estudos recentes identificam prevalência de 40% ou mais entre mulheres transexuais, prevalências altas têm também sido identificadas entre outros grupos mais vulneráveis, como profissionais do sexo e jovens homossexuais masculinos. Essa dinâmica tem impactado negativamente as políticas públicas de vários campos moralmente sensíveis, como saúde e direitos reprodutivos, HIV e Aids e educação em sexualidade. Em 2011, a Presidência da República suspendeu a distribuição na rede pública de educação de um kit educativo sobre diversidade sexual, diante da pressão de grupos extremamente conservadores. No início de 2012, o spot da campanha de prevenção do HIV para o carnaval voltado para os jovens homossexuais masculinos também foi censurado pelo então ministro da Saúde.

Em junho de 2013, uma campanha de prevenção do HIV entre mulheres profissionais do sexo, que havia sido elaborada com ampla participação dessas mulheres para abordar questões relevantes, culturalmente adequadas e construídas coletivamente, foi também censurada. Esses são exemplos pontuais que demonstram como a pressão de legisladores conservadores, pertencentes à base política no governo da época, tem influenciado negativamente a adoção de intervenções e campanhas mais atuais, adequadas e de vanguarda. Um país não pode manter-se na vanguarda da resposta ao HIV/Aids ou de qualquer questão que envolva sexualidade e gênero sem estar aberto ao diálogo e construção de ações feitas por e para grupos mais vulneráveis. Para além dessa abertura, o apoio político e institucional é fundamental para que iniciativas elaboradas em conjunto sejam efetivamente implementadas e apoiadas pelo governo federal nos serviços públicos de saúde, escolas e na mídia.

Abrasco: Quais as principais tendências epidemiológicas e das atividades relacionadas à epidemia?

Monica Malta:
Alguns importantes marcadores epidemiológicos ressaltam uma estabilização da epidemia em patamares elevados: 41,1 mil casos de Aids nos últimos cinco anos; 20,7 casos/100 mil hab nos últimos 10 anos; coeficiente de mortalidade: 5,9 óbitos/100 mil hab (2006) versus 5,6 óbitos/100 mil hab (2015). Outros dados apontam para uma reemergência da epidemia em grupos específicos: a epidemia se mantém concentrada em grupos mais vulneráveis, com importante acréscimo entre a população de homossexuais masculinos (35,3% em 2006 para 45,4% em 2015), com incidência seis vezes maior entre aqueles nascidos em 1990 quando comparados com seus pares, nascidos em 1970.

Diferenças regionais importantes precisam ser lembradas, salientando a epidemia da região sul, na qual observa-se aproximadamente 30 casos/100 mil hab nos últimos 10 anos (versus 20,7/100 mil habitantes na média nacional dos últimos 10 anos). Porto Alegre apresentou taxa de 74,0 casos/100 mil habitantes em 2015, valor correspondente ao dobro da taxa do Rio Grande do Sul e a quase quatro vezes a taxa do Brasil. Diversos aspectos podem levar a uma reemergência e recrudescimento da epidemia no Brasil, entre eles: diagnóstico tardio; grande contingente de pessoas que desconhecem seu status sorológicos; taxas de prevalência do HIV acima dos 5% em regiões com alto grau de urbanização; altas prevalências entre populações específicas; perda de seguimento clínico de importante percentual dos pacientes em HAART; e uma mortalidade por Aids elevada e persistente.

Abrasco: Que elementos deveria conter a urgente retomada de uma agenda de pesquisa em HIV/AIDS?

Monica Malta: Contínuo financiamento de Pesquisas voltadas para populações chave, aos moldes das atuais pesquisas RDS com profissionais do sexo, homossexuais masculinos e mulheres transexuais e travestis; elaboração de editais que permitam o estabelecimento de coortes, objetivando estudar de forma mais aprofundada aspectos comportamentais, sociais, estruturais que permeiam as respostas individuais e coletivas frente a epidemia de HIV/Aids; estabelecimento de linhas de pesquisa voltadas para estudos que possibilitem a melhor compreensão de aspectos comportamentais, sociais e estruturais de grupos mais vulneráveis, objetivando a elaboração, implementação e posterior avaliação de intervenções voltadas para prevenção do HIV/Aids ou acolhimento e retenção de pacientes em tratamento.

Abrasco: Como recuperar perspectivas mais amplas de prevenção, que englobem aspectos culturais, sociais e especificidades dos diversos grupos acessados?

Monica Malta: É importante incorporar estratégias cientificamente embasadas, mas que estejam pautadas por aspectos relacionados aos direitos humanos, perspectiva de gênero, respeito às características sociais, culturais e estruturais de cada grupo acessado. Este mosaico de ações deve ser elaborado por meio de uma parceria e diálogo constante entre sociedade civil, academia, gestores, profissionais de saúde e grupos mais afetados.

Abrasco: Uma das alternativas para ampliar a assistência ao tratamento para HIV/Aids defendida pelo Ministério da Saúde foi a recomendação de alocar o cuidado e o tratamento de pessoas com HIV nos serviços de Atenção Primária. Quais os pontos positivos e negativos dessa estratégia?

Monica Malta: A Atenção Primária costuma apresentar carência de equipes multiprofissionais, vínculos precários de contratação, alta rotatividade de profissionais e infraestrutura muitas vezes inadequada. A grande maioria dos médicos não possui formação nem experiência no atendimento de pessoas vivendo com HIV/Aids, manejo dos diferentes esquemas terapêuticos e intercorrências. Pessoas vivendo com HIV/Aids em tratamento contínuo apresentam necessidades diferenciadas relacionadas ao uso prolongado de ARV, aliado aos agravos relacionados com o envelhecimento desses pacientes, como a maior prevalência de neoplasias e doenças cardiovasculares, de tratamento e manejo mais complexos do que na população em geral.

Por fim, questões relativas ao estigma podem influenciar menor aderência de pessoas vivendo com HIV/Aids a serviços que estão localizados na mesma comunidade em que moram, serviços frequentados por familiares e vizinhos em busca de tratamento para diabetes e hipertensão.

Abrasco: Qual o possível impacto de uma crescente privatização da saúde (OSs, “planos acessíveis”) na atenção a pessoas vivendo com HIV/Aids?

Monica Malta: Apostar no caminho da ampliação do acesso aos planos e seguros é investir na diferenciação do acesso ao tratamento, qualquer que seja esse tratamento em saúde, a partir da renda, ou seja, de aprofundar as desigualdades e iniquidades. Cabe a nós, pesquisadores, sanitaristas, gestores e profissionais de saúde implicados com a temática, demonstrarmos a importância de manter a oferta gratuita e universal de serviços de qualidade, fortalecendo o SUS, a defesa dos direitos humanos e a manutenção de um dos importantes direitos sociais e de cidadania conquistados em 1988, a manutenção da saúde como direito de todos os brasileiros e dever do Estado. 

*Vilma Reis é jornalista a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Com informações de Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). 

Fonte: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
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1 comentários
ALDO PACHECO FERREIRA
13/12/2016 11:18
Excelente pesquisa Mônica. Parabéns