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Pesquisador da ENSP detido durante manifestação descreve regime de terror

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Publicado em:22/11/2013

* André Antunes e Cátia Guimarães

Ele foi um dos presos políticos da atual democracia brasileira. Participando de uma manifestação organizada pelos professores municipais e estaduais do Rio de Janeiro, que estavam em greve, Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), foi detido junto a dezenas de outras pessoas, no dia 15 de outubro. Acusado sem provas e sem direito à informação ou à presença de advogados, foi encaminhado para a delegacia e, na sequência, para dois presídios, incluindo Bangu 9. Segundo ele, circulou pelos "porões da democracia brasileira".

Desde o início de junho, Paulo Bruno vinha filmando as manifestações que tomaram as ruas do Rio de Janeiro como parte do seu trabalho de pesquisa. Levou algum tempo para que conseguisse falar sobre o assunto, mas, nesta entrevista - concedida aos jornalistas da Revista Poli - ele narra as humilhações e violências sofridas pelos presos políticos, descreve a rotina de violação de direitos do sistema carcerário brasileiro, destaca a solidariedade dos presos comuns e chama a atenção para a fragilidade das lutas políticas diante do terror que o Estado - representado, no caso, pelo governo estadual - pode provocar. Como, na prisão, não tiveram acesso sequer a papel e caneta, os detalhes que se seguem ficaram registrados, até então, apenas na memória do entrevistado.

Você está sendo acusado de quais crimes?

Pesquisador da ENSP detido durante manifestação descreve regime de terrorPaulo Bruno: Dano ao patrimônio, roubo, incêndio e organização criminosa. Eu fui preso por volta de 22h30 do dia 15/10 e, no entanto, no documento que assinei no IML constava como se eu tivesse quebrado alguma coisa, por volta das 18h, nas proximidades da rua Evaristo da Veiga. Não há nada quebrado lá. Além disso, nesse horário estava a caminho da Avenida Presidente Vargas, depois de embarcar num trem do metrô na estação de Del Castilho, acompanhado de duas pessoas com as quais trabalho.

Vocês sabiam que estavam sendo presos, para onde estavam indo e por quê?

Paulo Bruno: Não. Estava na escadaria da Câmara dos Vereadores, e o policial só me puxou. Eu tropecei na alça da mochila e minhas moedas se espalharam. Reclamei disso e, autorizado a recolhê-las, pude me recompor. No ônibus, outro policial mais novo, com pouco menos de 30 anos, talvez, ficou perto da porta e mandou entrar. Nisso foram entrando pessoas. Na Evaristo da Veiga, próximo à avenida Rio Branco, alguns manifestantes ainda tentaram impedir que o ônibus saísse, e os policiais que estavam em frente ao Municipal jogaram bomba de efeito moral para dispersá-los. O ônibus foi embora com uma escolta, vinham dois de moto — de negro também, acho que eram do choque —, com a arma apontada para a gente, dizendo para fechar a janela, xingando. Tentamos abrir a janela e um deles dizia: ‘fecha a janela, senão jogo gás de pimenta em vocês’. Aí fechamos a janela. Até então o pessoal estava revoltado, ninguém tinha noção do que iria acontecer. Eu falava para ter calma, era o mais velho. A gente tinha que estar sempre calado, e em nenhum momento falaram para onde iríamos. Na delegacia, permanecemos a maior parte do tempo no ônibus. Ficamos lá de molho até as 12h30 do outro dia. Soubemos que duas pessoas que estavam na 25ª [DP], se não me engano, ficaram em condições bem piores, num lugar alagado, com um banheiro. No nosso caso, ficamos em lugares da delegacia, sentados ou de pé, e depois retornamos para o ônibus. Recebemos orientação dos advogados que chegaram à 37ª DP, algum tempo depois, de só depormos em juízo. Passamos uma procuração para os advogados do DDH [Instituto de Defesa dos Direitos Humanos] e não depusemos.

Como foi a transferência para o presídio?

Paulo Bruno: Pouco antes de 12h30 os carros começaram a se movimentar. Vimos chegar aquele furgão usado pelo batalhão de choque, começaram a deslocar os carros em frente à delegacia, a gente previu que fosse acontecer alguma coisa. Imaginamos que iríamos ser transferidos, mas não sabíamos para onde, porque não falaram. Alguns PMs começaram a ser mais irônicos e mais agressivos com palavras. Quando alguém pedia alguma coisa, respondiam de forma irônica. Sempre de forma intimidatória. Até que, meio-dia e pouco — imagino que o horário era esse, porque também não tínhamos relógio —, colocaram a gente na traseira desse furgão, que era dividido no meio, com dois bancos laterais. Ia uma pessoa em pé e outra sentada, algemadas. Eu não tinha noção de que algema era objeto de tortura. Para mim, era só para segurar a mão do preso. Mas, conforme você vai mexendo, ela vai apertando. Então, assim que o carro saiu, a algema encaixou no osso do meu pulso, causando uma sensação muito ruim, eu tentei mexer e percebi que ela apertou. Fomos para o IML [Instituto Médico Legal]. Nessa hora eu já não aguentava mais, pedi para tirarem e acabaram abrindo [a algema] lá. Mas isso nem contou lá no exame de corpo delito, porque é uma coisa muito rápida, os caras não querem muita conversa. O tratamento que a gente recebeu em todo momento, a não ser em poucas ocasiões, no interior da 37ª DP, era como se fôssemos criminosos. Dali saímos também sem que falassem nada. Nos algemaram de novo, colocaram no furgão e fomos para São Gonçalo, para o presídio Patrícia Accioly, no bairro Guaxindiba. Nas transferências, você é sempre humilhado, chamavam a gente de ‘black bosta’, criminosos, assassinos, vagabundos, vândalos etc. Na saída da 37ª, dois policiais nos chamaram de criminosos, falando que seríamos estuprados no presídio. Diziam que iríamos pagar por termos nos metido com policial, que tínhamos matado o amigo deles, incendiado o carro [da polícia]. Tentavam nos filmar com seus celulares. Quando chegou lá, em Guaxindiba, novamente um cardápio de ofensas e atos para nos amedrontar. Você entra, tira a roupa, fica de cócoras, levanta a sola do pé, mão, tudo para ver se está com algum objeto, e depois te encaminham nu para receber calção e camiseta. Para lá a gente foi com a roupa do corpo.

Na delegacia da Ilha do Governador, deixamos as coisas com os advogados, porque tinham avisado que iríamos perder tudo no presídio. Primeiro ficamos acocorados num corredor dos presos de alta periculosidade (segundo eles próprios). A primeira pergunta de um desses presos foi se a gente tinha dinheiro. Todo mundo de mão para trás e cabeça para baixo, em pé ou sentado. Não demos ouvido. Começaram a perguntar o que a gente fez, mas ninguém respondeu. Por fim, ele perguntou se a gente estava em manifestação. O preso da frente falou 'esse Cabral é um filho da puta, tem que sair!' e o da cela de trás concordou: 'É isso mesmo!'.

Dali fomos para uma cela num corredor e ficamos só nós, os presos políticos. Eram celas para seis pessoas, com três beliches de cimento. No canto, o banheiro, com um buraco no chão - um vaso sanitário, chamado de 'boi' na linguagem da cadeia - e um chuveiro no alto, sem registro. A gente descobriu que a água era aberta duas vezes ao dia. Foi ato contínuo entrarmos na cela e todo mundo se apresentar. As pessoas não se conheciam. A sensação de solidariedade coletiva minimizava a apreensão causada nos deslocamentos [DP-IML-presídio]. Entrar na cela naquela circunstância era como 'chegar em casa': enfim, apesar da falta de banho, teríamos a possibilidade de deitar e descansar.

Como foi a rotina dentro do presídio?

Paulo Bruno: Inicialmente fomos informados sobre como funciona o sistema. Rasparam a nossa cabeça também antes de entrarmos na cela. Recebemos sabonete, escova de dente e creme dental. Toalha não! Os presos mais antigos e com bom comportamento fazem o serviço de cortar o cabelo, dar informes sobre o funcionamento, servir as refeições. Eram feitos três 'conferes' ao dia: gritavam no corredor (Confere!), ou tocavam na grade e você teria que se posicionar (erguido, mãos para trás e olhar para o chão) para eles contarem. Tinha pão e café pela manhã, almoço, jantar e um copo de uma bebida que parecia guaravita. A gente foi se acostumando com a rotina. No primeiro dia, não chegou água. Chegamos ao presídio quatro horas da tarde talvez, estando desde o dia 15 sem tomar banho - já era dia 16, anoitecendo. Falaram que abririam a água por dez minutos. Nesse dia abriram a água devia ser 3h da manhã. Tinha muito mosquito nesse presídio. Já trabalhei na Amazônia, andei em várias aldeias, mas nunca vi coisa igual. Não dava para dormir. Eles deram um cobertor e a esperança era que o cobertor ajudasse. No meu caso, era velho e furado, então não adiantava porque os mosquitos entravam. Essa primeira noite foi sofrida. A gente meio que fica na expectativa de sair, mas já estava conversando e encarando a possibilidade de ficar mais tempo. As longas conversas entre o grupo que dividia a cela e a comunicação com outros presos políticos de outras celas serviram para nos mantermos num estado emocional equilibrado. Na segunda noite nesse presídio já havíamos aprendido a fazer incensos com papel higiênico, o que afastava os mosquitos, mas deixava a cela esfumaçada.

Vocês receberam a visita de alguém?

Paulo Bruno: Primeiro, recebi visita dos advogados da Asfoc [Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz], Jorge da Hora e Fábio. Eles falaram da mobilização que era prevista para acontecer na Fiocruz e perguntaram sobre o meu estado. Receber notícias de fora do presídio causou um sentimento desconhecido. Não tinha a menor ideia do que poderia estar acontecendo do lado de fora. Era como se estivesse também com o pensamento aprisionado, apesar de consciente do que acontecia. Depois, na tarde do dia 17, chegaram os advogados do DDH e uma advogada ligada a uma ONG que trabalha com direitos humanos em presídios. O trabalho dela consiste em visitar todos os presídios do sistema do Rio de Janeiro e ver as condições dos presos. Acho que tinha alguém da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia [Legislativa]. Um pouco depois chegou o [deputado estadual] Marcelo Freixo. Fizemos duas reuniões num refeitório, onde tivemos a primeira oportunidade de ver o conjunto dos presos. Dos 19 que éramos quando chegamos à 37ª delegacia, ali já éramos 62. Todo mundo se cumprimentava, apertando a mão. Recebemos uma carta de pessoas de fora. Foi um momento de muita emoção e houve um agradecimento a elas. Aquilo foi muito bom porque a gente estava isolado. É outro universo: no presídio você não tem essa dimensão do que acontece do lado de fora. É outro mundo. Tínhamos consciência de que éramos presos políticos. Foi nosso primeiro contato coletivo com o mundo. O Marcelo Freixo me pareceu muito abatido, falando que a situação era grave, que ele nunca tinha presenciado uma situação como essa no Rio de Janeiro. Comentou que se falava em colocar as forças de segurança nacional na rua e que o Beltrame chegou a aventar isso. E a imprensa estava jogando pesado na nossa criminalização.

E a transferência para Bangu 9?

Paulo Bruno: Na madrugada do dia 17 para o 18, umas 3h30 da manhã, fomos acordados pelos caras batendo [na grade]. 'Sai, sai. Deixa tudo!', gritavam. E os meus óculos ficaram na cela. Foi o momento de maior tensão: escuro, aqueles caras enormes todos de preto, gritando muito. A sensação, pelo tratamento, era de que iriam executar a gente. Colocaram a gente num pátio externo, sempre gritando, humilhando, xingando. Eu não fui agredido, mas uma parte do grupo foi agredida com palmatória. Eles queriam que o pessoal dissesse por que o estuprador da Rocinha estava com a orelha cortada e o rosto queimado. Tinha três presos comuns com a gente, um deles era esse estuprador e alguém queimou o cara, só que ele não dividiu cela com a gente em nenhum momento. Mas os caras queriam que a gente dissesse quem foi. Isso eu ouvi do lado de fora de um portão grande de ferro. Fui colocado para fora com outro grupo, de cabeça baixa. Chovera e o chão estava molhado e todos nós estávamos descalços (desde são Gonçalo até a libertação permanecemos nesse estado).

Começamos a ouvir interrogatório e, em seguida, batidas e as pessoas gritando. Depois soubemos que era a palmatória de madeira. Isso durou alguns minutos. Fomos colocados num ônibus todo escuro. Dessa vez, sentamos quase todos. Um dos presos políticos estava por desmaiar e outros se esforçavam para mantê-lo acordado. Não era possível ver os rostos mesmo dos que estavam mais próximos de nós. Havia pouca circulação de ar. O Freixo havia dito que possivelmente iríamos para um presídio próximo para aguardar uma solução na justiça. Seria um presídio em São Gonçalo, que ele disse que era mais tranquilo, que estava disposto a aceitar o grupo, tinha espaço. Como eles tiraram a gente de madrugada, só podíamos imaginar para onde estávamos indo, porque estava escuro e, sem relógio nem nada, você perde a noção de espaço e tempo. Só sentíamos o balanço do ônibus, só sabíamos que estávamos em rua esburacada. Depois de algum tempo, pela batida e por alguma luz que entrava, nos demos conta de que estávamos cruzando a ponte Rio-Niterói. Mas, adiante alguém exclamou: 'Deodoro!'. Pouco depois chegamos ao Complexo Penitenciário Gericinó, mais especificamente, no presídio Bangu 9, e foi novamente aquela coisa de os caras nos tratarem mal. A fala e a atitude de um policial ficou impregnada na minha memória: 'Só tem vocês dois de pretos aqui?'. Em seguida segurou a cabeça de um deles e bateu algumas vezes contra a parede. Teve outro preso político que pedia insistentemente para ir ao banheiro, que não aguentava mais. Estava muito próximo de mim. Gemia... Eu sussurrava para ele: respira fundo. Os caras apenas ironizavam e procuravam humilhá-lo. Mesmo depois de uns cinco pedidos desesperados, o rapaz não teve autorização e evacuou nas calças. Depois disso ordenaram que lavassem o chão.

Fomos para a cela. Quando a gente passa pela triagem, perguntam qual a nossa facção e são apresentadas as seguintes opções num formulário: Comando Vermelho, Amigo dos Amigos, Povo de Israel, milícia ou neutro. Nos identificamos como neutros e ficamos numa galeria juntos com o Povo de Israel, que são os presos que se converteram. O melhor de Bangu é que tinha uma torneira com água 24 horas; no outro não tivemos nem água para beber até a primeira abertura do chuveiro; para banho, muito menos. Se quiséssemos beber aquela água imunda, pelo menos havia água, não iríamos morrer de sede. Mas a cela era mais estreita, escura, úmida e quase não tinha espaço para circular. Parece que circulou a informação de que haveria visita do pessoal dos direitos humanos. Aí deram um jeito de transferir a gente para outra cela no final do corredor, onde entrava luz no final da tarde, tinha sol, foi um alento. Além de um pardal que entrava e saía da cela através da grade no alto da parede (no final da tarde ele se alojou num buraco no teto da cela). Dessa cela ouvíamos cantos de outros pássaros. Recebemos somente um lençol branco e limpo que, pelo fato de ser bem largo, dava para cobrir a espuma sobre a qual deitava e, ao mesmo tempo, servir de coberta. As poucas horas que restavam da madrugada permitiram um breve cochilo. No dia 18, acordei com a sensação de que sairia: lavei minha camiseta no banho com caneco e sabonete. Eu pretendia sair limpinho do presídio, estava imundo. Nessa passagem por Bangu, os presos receberam a gente bem. Eles falavam que a gente representava os parentes deles do lado de fora, que a luta era por eles também. Foram acolhedores e respeitosos conosco.

Quando você soube que seria solto?

Paulo Bruno: Durante reunião com o pessoal dos direitos humanos, que aconteceu justamente no corredor, diante da cela onde eu e mais cinco presos estávamos, deram a informação de que tinha saído um habeas corpus. E que a partir desse habeas corpus, em meu nome, a juíza estendeu o benefício para os outros. Dali, voltamos para a cela. O habeas corpus só chegou ao presídio no final da tarde. Nesse meio tempo, chegaram advogadas do DDH, a Luiza Maranhão e mais duas que conheciam pessoas comuns a mim e a outros dois presos. A gente foi conversar com as advogadas e, na volta, foi interessante porque um preso parou a gente para conversar no corredor, onde havia outros dois presos soltos. Esse preso falou: 'Pára que aqui é tranquilo, pode parar'. Parei. 'Aperta minha mão aí'. Apertei. Tinha outros três na grade festejando a gente e que também queriam apertar as nossas mãos. Eu saí, o Deo [professor da rede municipal do Rio, companheiro de cela] veio mais atrás, parou um pouco e conversou com eles. Eles falaram: 'Ah, você é professor?A gente é aluno do crime, a gente veio agradecer vocês'. Surpreendeu a gente: por incrível que pareça, tivemos a solidariedade de quem – os policiais falaram – iria nos maltratar. Enfim, foi o ultimo dia lá, saímos à noite. Durante a oração que é feita sempre às 18h, segundo comunicara o preso que servia as refeições, momento em que os presos leem trechos da Bíblia, discursam, cantam — as falas e canções pareciam ter sido construídas no próprio espaço carcerário, pois falavam muito da situação dos presos —, um dos carcereiros fez uma chamada no início do corredor, o que interrompeu a oração e criou um estado de suspense. Chamaram os nomes dos nove primeiros libertos. A nossa saída pela galeria foi algo comovente! Braços eram estendidos para fora das celas para nos cumprimentar. Olhos brilhantes nos acompanhavam enquanto aguardavam cumprimentos. Ouvia-se um grito: Liberdade! Esperamos quase duas horas fora da cela. Depois saberíamos que foi feito de tudo para que ficássemos mais tempo presos, apesar de os advogados da Asfoc já terem obtido dois habeas corpus antes daquele que definiu a saída do nosso grupo, detido na 37ª DP.

Dá para descrever os momentos de pavor?

Paulo Bruno: Tem um pavor que é para disciplinar o corpo e, no nosso caso, intimidar. A todo momento falavam que, como era a primeira vez, a gente estava sendo tratado como homem, e que da próxima seríamos tratados de forma diferente. Falavam para que tomássemos cuidado para não voltar para lá. E funciona: nessa noite mesmo tive um sonho com um monte de policial de fuzil atirando nas pessoas aleatoriamente. Isso num nível psicológico. [Mas teve] o físico também, eles bateram em algumas pessoas. Imagino que elas estejam mais frágeis do que eu. Tem essa coisa de incutir o medo. É uma espécie de pedagogia do terror, de você ser educado para não se manifestar, não questionar. Tanto que os últimos atos estiveram meio vazios, as pessoas estão recuando porque foi feita uma coisa exemplar. Isso me faz pensar que essa estrutura de terror não se extingue com mudança de governo, eleições, ela está muito bem estruturada como sistema de tortura... Aparentemente é um sistema legal, no entanto, é uma estrutura em que você entra e é engolido. Quando vem pressão de fora, é diferente. Fora isso, é o sistema de terror. É impossível ressocializar (como sugere o calção que recebemos, com a sigla SEAP e a palavra ressocialização) em tais condições.

Você diz que existe uma pedagogia do terror que funciona. Como é voltar a uma manifestação agora?

Paulo Bruno: Eu soube de pessoas que não pretendem voltar a manifestações por enquanto. Para mim foi difícil. Nos arredores da Cinelândia, uns dias depois da minha libertação, quando vi o carro e um micro-ônibus da polícia, foi uma sensação muito estranha. Eu fui para casa. A sensação é de que iria repetir tudo que eu falei anteriormente, uma coisa incontrolável, não de ser preso, mas de sentir tudo o que eu senti, de escuridão, de ser puxado para o escuro. De ter sido sequestrado. Mudou também o meu olhar com relação aos policiais. Eu tinha a expectativa de que pudessem se portar como trabalhadores, servidores públicos. Agora eu até entendo a situação de precariedade, que os caras têm que fazer isso para sobreviver, a questão da hierarquia militar etc., mas os possíveis resquícios de solidariedade diminuíram muito. Com a forma como muitos deles tratam as pessoas, não dá para perceber qualquer sinal de compaixão.

Qual a sua avaliação com relação ao sistema judiciário e carcerário brasileiro, considerando a situação daqueles que passaram por essa experiência?

Paulo Bruno: Se você está na mão do Estado, está refém do Estado. Estamos em situação de fragilidade. Hoje, os grupos mais conservadores estão unidos em torno de um projeto que, a pretexto de viabilizar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, visa frear manifestações para assegurar o uso da máquina e dos recursos públicos para garantir os grandes investimentos, o lucro, a expropriação de terras. Não temos certeza se, quando formos a julgamento, podemos ganhar. Essa sociedade democrática que a gente vive é para quem não está dentro desse sistema prisional, só serve para quem nunca passou por lá. Depois que você cai ali, vê que é tudo muito frágil. No escravismo brasileiro, até o século 19, os escravos que cometiam os 'crimes' de fuga das fazendas ou atentado ao 'seu senhor', por exemplo, eram marcados/queimados com a letra 'F'. Algo aparentemente superado historicamente se repete com a 'marca' que a 'passagem' pelo 'sistema' deixa em nós. Qualquer um pode ser pinçado, cair ali e pronto! O objetivo dos grupos que controlam as estruturas de poder do Estado é ter você na mão e prorrogar esse processo por anos. Qualquer um de nós, se voltar, com certeza, terá outro tratamento. Eles nos avisaram! Há os que ainda acreditam na possibilidade da luta, garantida nos 'direitos constituídos'. Penso que não tem mais direito constituído... Se por um lado a solidariedade, presente entre companheiros da Fiocruz e de Manguinhos, em especial, foi extremamente importante para mim, por outro, é surpreendente o silêncio por parte de algumas entidades de classe e parte do meio acadêmico com relação a esse estado de coisas, onde cresce a opressão contra a expressão popular nas ruas, o que coloca o Estado Democrático de Direito como privilégio para poucas pessoas. Também é desprezível o reacionarismo expresso em artigos e ações de intelectuais que, outrora, eram consideradas referências importantes para a crítica ao autoritarismo.

Ainda tem gente presa...

Paulo Bruno: Tem o Jair e o Rafael, um morador de rua. Ambos negros. Segundo as notícias que circulam na internet, o Rafael foi preso num prédio abandonado na Lapa, onde ele estava morando. Foi no dia 20 de junho, aquele em que a polícia saiu jogando bomba de gás para todo lado. Ele estava caminhando para o lugar onde iria dormir com uma garrafa plástica de detergente e uma de água sanitária, e alegaram que ele estava com material inflamável, com líquidos para produzir incêndio. Foi preso. O cara é morador de rua, está há cinco meses preso, e esteve, durante algum tempo, sem defesa. Já o Jair parece que foi preso por desacato, e, pelo fato de ter passagem anterior, estão dificultando o caso dele. Na reunião com as advogadas, no Bangu 9, foi falado que estava sendo difícil conseguir o habeas corpus para ele.

Você falou que estávamos muito fragilizados e houve uma grande união de forças para acabar com as manifestações. Mas mesmo depois dessa experiência traumática, você continua indo. Por quê?

Paulo Bruno: O que impulsiona a gente a participar é a solidariedade. Aqueles que decidiram o que fazer conosco não têm noção de que, dentro da cadeia, possibilitaram a construção de uma solidariedade entre pessoas que nem se conheciam. Criaram uma liga entre essas pessoas, conheci pessoas de caráter muito firme. A grande maioria lá ficou muito solidária. Eu vejo que toda essa experiência ruim, de aprisionamento, de repressão, está consolidando um grupo de muitas pessoas com discernimento sobre os fatos e sobre as injustiças presentes em nossa sociedade. Tive oportunidade de rever pessoas que dividiram cela comigo num ato recente de solidariedade aos presos e ex-presos. Algo inexplicável, a repressão produzira laços de amizade e confiança.

Eu volto para as manifestações com a vontade de filmar, mas não sei se vou continuar filmando por enquanto, apesar de querer dar continuidade aos registros históricos e etnográficos que iniciei em junho. Vivemos um processo histórico muito vigoroso e complexo sobre o qual precisamos refletir muito, e para isso é necessário que ele seja registrado a partir de olhares diversos. Sou apenas um deles. Também não dá para abdicar de questionar o sistema da forma como está colocado. Afinal de contas, é difícil pensar na construção de um conhecimento científico neutro, principalmente, se levarmos a sério o que sugeria Paulo Freire ao dizer que toda neutralidade afirmada corresponderia a uma opção escondida.

Assim, a passagem pelo sistema prisional e carcerário não poderia ofuscar o nosso olhar sobre a sua dinâmica, sobre a forma como atuam os servidores públicos que os mantêm ativos e, sobretudo, sobre as condições nas quais se encontra seu 'público-alvo', formado por pobres, negros e mestiços em sua grande maioria. Nessa perspectiva, é difícil observar sem críticas um serviço público, financiado com recursos públicos, utilizado para punir parte desse público (presos, seus parentes e amigos). A crítica a esse tipo de serviço não pode ser colocada sem a devida correlação com toda a estrutura de governo do qual faz parte. Na atual conjuntura, essa crítica pode resultar na marcação de um 'F' nas nossas costas ou no nosso encarceramento.

* Entrevista concedida a André Antunes e Cátia Guimarães - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

Confira, abaixo, um vídeo especial das ações da ENSP/Fiocruz sobre a mobilização 'Lutar não é crime! Somos todos Paulo Bruno', promovida em repúdio a prisão do pesquisador da Escola Paulo Roberto de Abreu Bruno.
 


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3 comentários
PAULO ROBERTO DE ABREU BRUNO
28/11/2013 19:44
Prezado Carlos Gomez, Apesar de não nos conhecermos pessoalmente manifesto meus sentimentos de gratidão e respeito com relação, respectivamente, às suas palavras de conforto e aos seus comentários. Mas, é impossível abrir mão de alguns comentários sobre as suas ?pequenas observações? à entrevista que concedi aos jornalistas da EPSJV, reproduzida neste portal. Para que esses comentários não pareçam deslocados dos seus objetivos, os apresentarei na sequência de trechos retirados das suas observações (apresentados entres aspas). ?A constatação desses abusos chegou ao ponto de o Ministério Público e até a própria Secretaria de Segurança se mobilizarem para investigar o acontecido e encontrar estratégias para evitar esse nível de confronto?. O resultado dessa mobilização parece ter contribuído pouco para diminuir aquilo que o Sr. denomina ?nível de confronto?. Ao contrário, o que se observou foi um processo de criminalização das manifestações, seja por meio da instituição da Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo, considerada inconstitucional pela OAB/RJ (http://www.oabrj.org.br/detalheConteudo/804/Parecer-da-Comissao-de-Direito-Penal-da-OABRJ-sobre-a-CEIV.html), ou do projeto de lei estadual nº 2.405/13 (?Lei das Máscaras?), considerado, além de inconstitucional, ilegal pela mesma seccional da OAB. Tais procedimentos normativos praticados no âmbito estadual serviram, no meu entendimento, para aumentar a indignação entre os vários coletivos, movimentos e organizações sociais envolvidos nos atos públicos que se iniciaram em junho. No lugar de negociação sobre questões colocadas nas manifestações (gastos com a Copa, remoções, destruição do Iaserj com a morte de pacientes, transportes públicos etc.) maior repressão e aplicação de normas que não encontram fundamentação na nossa Constituição Federal. Nesse processo, foram criadas as condições necessárias para surgimento de uma espécie de ditadura estadual, o que seria algo novo na nossa história e precisaria ser melhor discutido. ?Na célebre passeata dos 100.000, por exemplo, em plena ditadura militar não houve tamanha repressão policial, mas também nenhum participante daquela enorme manifestação chegou ao extremo de sair quebrando patrimônio público ou privado, nem de portar utensílios ou até pedras para atacar às forças de segurança. E é esse o contexto que falta na sua fala (...)? Em primeiro lugar, considero a tentativa de análise comparativa entre o contexto histórico no qual ocorreu a Passeata dos Cem Mil com os dias atuais um tanto forçosa. Pois, tratam-se conjunturas sociopolíticas e econômicas distintas e quaisquer aproximações entre elas deve ser bem fundamentada, caso contrário apresentar-se-ão como resultados de um raciocínio pouco coerente, cujo objetivo de convencimento tenderia a se sobrepor aos fatos. Portanto, ?esse contexto? não ?falta? na minha fala. O contexto que poderia estar ausente na entrevista seria aquele que caracterizou o dia 15/10/2013. E, parte considerável dele, guardo não apenas na minha memória, mas, também, nos arquivos dos meus computadores (nas formas de vídeos e fotografias). Ademais, convêm esclarecer que a iniciativa da entrevista, por parte da equipe de jornalistas da EPSJV, buscava uma descrição dos fatos relativos à minha prisão. Assim, a minha fala não pretendeu dar conta de uma análise das manifestações e, tampouco, do contexto que as produziu. ?Não procede afirmar que se trata de opressão contra a manifestação popular nas ruas (...)? Se Sr. esteve presente na av. Presidente Vargas, por volta das 19h do 20/6/2013, quando milhões de pessoas foram cercadas e bombardeadas, certamente não testemunhou uma situação de ?baderna? que pudesse justificar tamanha repressão. Vale lembrar que na sequência desse episódio, bares, hotéis e hospitais também sofreram ataques com bombas de gás lacrimogênio. Qual seria, então, a melhor forma de nos referirmos a esse evento? No lugar da expressão ?opressão contra a manifestação popular? o que o Sr. sugeriria? Episódios como o do dia 20/6 foram recorrentes nos eventos que se seguiram. Nesse processo, a tática blac block passaria a ser adotada por um número cada vez maior de manifestantes. Fato que pode ser constatado nas imagens das próprias manifestações, não somente no Rio de Janeiro, tampouco aquelas restritas ao ano de 2013. http://www.midiaindependente.org/pt/blue/static/video.shtml "Seria preciso distinguir o que foi uma manifestação democrática e pacífica dos professores e o desfecho brutal que desconcertou à polícia e sem o devido preparo para intervir, como também percebemos inclusive em algumas UPP. E tamanha confusão gerou um clima que acabou redundando na prisão indiscriminada dos que estavam em volta. Mas, certamente vocês não foram presos por uma repressão política e, por tanto, não cabe a denominação de presos políticos." Compreendo que os diferentes atos caracterizaram-se por suas dinâmicas próprias e, além disso, transformaram-se ao longo dos seus desenvolvimentos. De modo que, à medida que comecei a entender a dinâmica dessas manifestações, desenvolvi a capacidade de refutar com muita tranquilidade alguns argumentos, comumente, usados para explicar a repressão policial nesses episódios. Assim, o argumento que atribui à ?confusão? a produção de ?um clima que acabou redundando na prisão indiscriminada dos que estavam em volta? é insustentável, do ponto de vista lógico. Talvez, o Sr. desconheça o fato, mas as prisões ocorridas na escadaria da Câmara Municipal resultaram de um procedimento militar planejado, ao que tudo indica, com alguma antecedência. Não fosse assim, não teríamos a presença de ônibus da PM, caminhão, trator e trabalhadores da Comlurb (que removeram o acampamento do Ocupa Câmara) e do pelotão que efetuou a nossa prisão marchando pela rua Joaquim Silva em direção à Cinelândia, cerca de 30? antes que ela ocorresse. Portanto, os policiais responsáveis pelas prisões na Câmara não estavam envolvidos com os conflitos que aconteciam entre ao lado da Biblioteca Nacional, tampouco ?desconcertados?. Apenas cumpriam ordens. Pouco depois de ter observado esse pelotão marchar pela Joaquim Silva, ainda no restaurante onde jantara, assisti à transmissão pela GloboNews de um comunicado que dava conta de que a situação na Cinelândia era de tranquilidade. O que me ajudou a decidir pela passagem pela Câmara Municipal. Se toda a atuação do Governo Estadual com relação às manifestações não pode ser considerada ?repressão política?, que outra expressão o Sr. usaria para denominá-la? Com relação à negação ao status de presos políticos a equação é mais simples de resolver: seríamos, então, presos comuns. Não é isso?! "O acontecido não se equipara com a perseguição política e a tortura dos anos de chumbo dos que lutamos por uma democracia e que, para alguns de nós, significou passar anos de exílio." Sem dúvida. E esse é um dos motivos que me leva a criticar a comparação feita no início das suas observações. Porém, não devemos desconsiderar que a tortura persiste em nossa sociedade, assim como as execuções sumárias são recorrentes em nosso estado. Segundo Luiz Eduardo Soares, entre 2003 e 2012 houve 9231 mortes provocadas por ações policiais no Rio de Janeiro (Dieguez C. ?Os invisíveis?. Piauí, nº 83, agosto de 2013, p. 42)). É óbvio que não se trata de casos de prisão, tortura e ?desaparecimento? de ?quadros? de ?células? ou de partidos. Os fatos são, realmente, diferentes. Por outro lado, desperta em mim uma certa curiosidade, de cunho histórico, a sua atuação durante o período da Ditadura no Brasil. Gostaria de ter mais informações sobre como ela se deu. "Finalmente, desconheço a quem você está se referindo quando menciona o reacionarismo expresso em artigos a ações de intelectuais que, outrora, eram considerados referências importantes para a crítica ao autoritarismo?" Até a data da entrevista referia-me tão somente à filósofa Marilena Chauí, em função do texto publicado em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/126068-black-blocs-agem-com-inspiracao-fascista-diz-filosofa-a-pms-do-rio.shtml e à antropóloga Alba Zaluar, pelo artigo de opinião reproduzido em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/11/1370009-alba-zaluar-taticas-fora-de-lugar.shtml Todavia, depois da entrevista publicada, para minha surpresa, descobri que tais perspectivas de análise encontravam solo fértil noutros espaços de produção do conhecimento. "O que todos os meios de comunicação todos e não apenas a mídia reacionária - mostraram é que as manifestações aconteciam de forma pacífica e ao final como numa orquestração acontecia quebra-quebra e depredação dos bens públicos, privados e agressões contra os policiais." Qualquer generalização é sempre passível de erro. Portanto, afirmar que ?todos os meios de comunicação (...) mostraram? seja o que for é por demais arriscado. Em primeiro lugar, em função da nossa limitação quanto ao acesso aos mais diversos veículos de informações disponíveis atualmente. No caso das manifestações, por exemplo, tivemos várias transmissões simultâneas, a partir de diversas perspectivas, de ângulos diferentes. Além, é claro, das infinitas fontes de informações disponíveis na internet (sites e facebook). A opção por uma abordagem genérica das manifestações reduz as possibilidades para uma a formulação de análise crítica dos fatos e, em contrapartida, a aproxima de um discurso pautado pelos editorais da mídia corporativa. "E com essa baderna, creio que nem você e nem qualquer pessoa sensata pode concordar. Por fim, é preciso que tenhamos consciência de que o processo de democratização da sociedade depende também da valorização dos policiais, não do seu apedrejamento físico e moral e até tentativas de morte, nos casos citados. Constitucionalmente eles têm que prevenir e reprimir o crime." Em todo o processo de registro das manifestações nunca usei máscaras ou optei pela chamada ?linha de frente?, pelas "zonas de conflito", até porque tais opções prejudicariam o sentido da minha participação nesses eventos. Portanto, a minha relação com a ?baderna? se dá através de um distanciamento, que se expressa tanto fisicamente quanto na rejeição ao uso do vocábulo de forma relacionada às expressões mais radicais da luta de classes. A valorização dos policiais é, sem dúvida, necessária. Valorização em termos salariais, que garanta acesso aos estudos regulares, que contribua para que, na condição de servidores públicos, estabeleçam relações de respeito aos demais sujeitos da sociedade da qual fazem parte. Valorização que deve excluir das manifestações as palavras de ordem com as que afirmam: ?Não estudou, tem que estudar, pra não virar polícia militar!?. Enfim, uma valorização que contribua para a superação de uma condição que leva o próprio comandante da Escola Preparatória de Oficiais da PM, Cel. Ibis Pereira a considerar que ?a favela ainda é a senzala e a polícia é o capitão do mato.? (Dieguez C. ?Os invisíveis?. Piauí, nº 83, agosto de 2013, p. 43) Para finalizar, penso que qualquer análise sobre o processo de democratização da sociedade brasileira não deve excluir a participação popular e o direito ao livre exercício de manifestações com alguns dos seus principais elementos. Paulo Bruno, 28/11/2013.
MARIZE BASTOS DA CUNHA
24/11/2013 10:15
Paulo, obrigada por compartilhar conosco esta narrativa e suas reflexões. Imagino que não seja fácil recordar tudo isso, é muito generoso de sua parte dividir tudo isso. Abs!
CARLOS MINAYO GOMEZ
23/11/2013 20:30
Paulo, é um verdadeiro absurdo o que aconteceu com você. É de lamentar o sofrimento pelo qual passou e as sequelas que isso deixou em sua memória emocional. Não o conheço pessoalmente e, antes de tudo, quero lhe mandar um grande abraço solidário. Gostaria de fazer algumas pequenas observações sobre o conteúdo da sua entrevista. A sua descrição minuciosa da prisão revela mais uma vez o caos do sistema prisional e os abusos cometidos por setores policiais. A constatação desses abusos chegou ao ponto de o Ministério Público e até a própria Secretaria de Segurança se mobilizarem para investigar o acontecido e encontrar estratégias para evitar esse nível de confronto. E aí concordo com as palavras de Marcelo Freixo quando disse que ?a situação era grave, nunca tinha acontecido uma situação como essa no Rio?. Na célebre passeata dos 100.000, por exemplo, em plena ditadura militar, não houve tamanha repressão policial, mas também nenhum participante daquela enorme manifestação chegou ao extremo de sair quebrando patrimônio público ou privado, nem de portar utensílios ou até pedras para atacar às forças de segurança. E é esse o contexto que falta na sua fala, que de maneira alguma justifica o tratamento que vocês receberam no sistema prisional, demonstrado de forma contundente na entrevista. Não procede afirmar que se trata de ?opressão contra a manifestação popular nas ruas?. Seria preciso distinguir o que foi uma manifestação democrática e pacífica dos professores e o desfecho brutal que desconcertou à polícia e sem o devido preparo para intervir, como também percebemos inclusive em algumas UPP. E tamanha confusão gerou um clima que acabou redundando na prisão indiscriminada dos que estavam em volta. Mas, certamente vocês não foram presos por uma repressão política e, por tanto, não cabe a denominação de presos políticos. Sem deixar de reconhecer o que vocês passaram. O acontecido não se equipara com a perseguição política e a tortura dos ?anos de chumbo? dos que lutamos por uma democracia e que, para alguns de nós, significou passar anos de exílio. Finalmente, desconheço a quem você está se referindo quando menciona ?o reacionarismo expresso em artigos a ações de intelectuais que, outrora, eram considerados referências importantes para a crítica ao autoritarismo?. O que todos os meios de comunicação ? todos e não apenas a mídia ?reacionária? - mostraram é que as manifestações aconteciam de forma pacífica e ao final ? como numa orquestração ? acontecia quebra-quebra e depredação dos bens públicos, privados e agressões contra os policiais. E com essa baderna, creio que nem você e nem qualquer pessoa sensata pode concordar. Caso esteja se referindo também à situação do sistema prisional ? cuja passagem rápida nele lhe permitiu uma experiência dolorosa e inédita ? convém tratar o momento com certa equanimidade, tendo em mente a complexidade da situação e não apenas os atores que atuam na segurança social. Por fim, é preciso que tenhamos consciência de que o processo de democratização da sociedade depende também da valorização dos policiais, não do seu apedrejamento físico e moral e até tentativas de morte, nos casos citados. Constitucionalmente eles têm que prevenir e reprimir o crime.