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'Estatuto do Nascituro fere os direitos da mulher'

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Publicado em:20/09/2013

Atribuir direitos fundamentais e de personalidade ao nascituro, considerando-o um “ser humano não nascido”, ainda que não esteja sequer em gestação, é um dos objetivos do Estatuto do Nascituro. O Projeto de Lei, já aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados e que depende da aprovação da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania para ser apreciado em plenário, tem provocado diversas discussões, principalmente por não considerar uma série de direitos conquistados pelas mulheres ao longo da sua história.

No início de agosto, a ENSP recebeu a advogada Maíra Fernandes durante o seminário Diálogos entre a Academia e os Movimentos Sociais, promovido pelo Grupo Direitos Humanos e Saúde. Ela, que atua na Comissão de Bioética e Biodireito da OAB, convocou a academia e os movimentos sociais a lutarem contra o projeto. Em entrevista ao Informe ENSP, a advogada fala sobre como o estatuto ameaça a dignidade da mulher e o avanço da ciência, na medida em que pode impedir pesquisas com células-tronco embrionárias e até mesmo a fertilização in vitro.

Informe ENSP: O que propõe o Estatuto do Nascituro?

'Estatuto do Nascituro fere os direitos da mulher'Maíra Fernandes:
O estatuto pretende atribuir direitos fundamentais e de personalidade ao nascituro, considerando-o um “ser humano não nascido”, ainda que não esteja sequer em gestação. O Projeto de Lei parte de uma concepção equivocada, segundo a qual o nascituro e o embrião humano teriam os mesmos status jurídico e moral de pessoas nascidas.

Para o estatuto, o conceito de nascituro inclui o embrião, ainda que concebido in vitro e não transferido para o útero daquela que fará a gestação (art. 2º e par. único do PL). Atingidos, portanto, estão os embriões excedentários. Ocorre que, na realidade, nascituro e embrião não se confundem: o primeiro diz respeito ao ser humano já no contexto de uma gestação; o segundo se refere ao material biológico proveniente da concepção, do encontro dos gametas masculino e feminino.

Informe ENSP: Em evento ocorrido na ENSP/Fiocruz, a senhora comentou que o estatuto fere os direitos conquistados pela mulher, além de ser um retrocesso aos avanços da ciência. Comente esses aspectos.

Maíra Fernandes:
Sim, ele fere inúmeros direitos da mulher reconhecidos em nossa Constituição, nos tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário, e em nossa legislação. Por esse lado, não é exagero dizer que o estatuto enxerga a mulher como mera “incubadora” da vida por nascer. Há sérias violações ao direito de liberdade da gestante, à sua dignidade, autonomia, segurança e ao seu direito à saúde. O estatuto cria uma prevalência ou prioridade do embrião sobre a mulher.

Pelo Projeto de Lei, a mulher teria de ser praticamente monitorada e ter sua gravidez registrada e supervisionada ou vigiada para cumprir os dispositivos do Estatuto do Nascituro. A rigor, ela teria “obrigação”, legalmente imposta, de ter todos os filhos gerados em fertilização in vitro. Inimaginável! Isso acaba por inviabilizar, de todo, a inseminação artificial.

O art. 10 estabelece que, mesmo não havendo possibilidade ou viabilidade de vida extrauterina para o feto/nascituro, a mulher deve obrigatoriamente se submeter a todos os tratamentos terapêuticos ou profiláticos existentes, mesmo que isso implique sérios riscos para sua saúde psíquica. Tudo com o objetivo único de assegurar o desenvolvimento e a integridade do feto ou embrião, cuja inviabilidade a ciência médica comprova e atesta.

No caminho inverso ao reconhecimento da liberdade e autonomia das mulheres, o projeto pretende impor de forma compulsória a maternidade em caso de risco de vida e à saúde das mulheres. Justamente nessas circunstâncias, a gestação deveria resultar de uma escolha livre, responsável e informada. Há, ainda, uma clara ponderação pró-feto, que reconduz a mulher à condição análoga à de uma incubadora, sem autonomia, tornando-a objeto e lhe retirando a dignidade humana garantida no art. 1º, III, da Constituição brasileira.

Observe que sequer há ressalva a casos de prejuízos à vida e à saúde da gestante, de forma imediata ou futura, ou nos casos de incompatibilidade com a vida extrauterina.

Mesmo em caso de feto natimorto ou em caso de anomalia que inviabilize a vida extrauterina, a mulher será obrigada a levar a gestação até o fim. Ela será obrigada a se submeter a qualquer tratamento, ainda que desumano ou degradante para si mesma, ou mesmo equiparável à tortura, para viabilizar amplos tratamentos terapêuticos e profiláticos ao feto. Não bastasse, o estatuto ainda cria a modalidade do aborto culposo, que penaliza duplamente a gestante que, sem qualquer intenção, teve sua gravidez (muitas vezes desejada e planejada) interrompida. Não se trata do abortamento provocado, pois a gestante não teve dolo. Trata-se de uma infelicidade, de um acidente, que puniu mais a gestante que qualquer outra pessoa, e, agora, o estatuto ainda pretende punir criminalmente a mulher.

Informe ENSP: O que essa situação acarreta para os avanços da ciência?

Maíra Fernandes:
No campo da ciência, os retrocessos são igualmente enormes. O estatuto sepulta a possibilidade de estudos com células-tronco e, como dito, inviabiliza de todo a possibilidade de inseminação artificial. Isso porque torna crime “congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação”, prevendo pena de “detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa”.

Tal previsão contraria o exposto na ementa da ADI 3510, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou constitucional a realização de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias (experimentos que podem gerar terapias para salvar vidas). Além disso, nega o direito ao planejamento familiar, previsto pela Constituição Federal (artigo 226).

Informe ENSP: O ‘bolsa estupro’ foi um dos temas mais comentados pela mídia, mas talvez não tenha ficado claro para a população o papel que o estuprador pode vir a ter na vida da mulher. O estatuto dá algum direito a esse indivíduo?

Maíra Fernandes:
Diz o art. 13 do estatuto:

“Art. 13 O nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos, assegurando-lhe, ainda, os seguintes:

I – direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante;

II – direito à pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete 18 anos;

III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento.

Parágrafo único. Se for identificado o genitor, será ele o responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II deste artigo; se não for identificado, ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado.”

Como se vê, o inciso II do art. 13 e o parágrafo único estabelecem a legitimação da violência pelo Estado. Principalmente ao reconhecer a paternidade ao estuprador e assegurar, inclusive, que o Estado se responsabilizará por fornecimento de prestação alimentícia para a futura criança, até seus 18 anos.

E manifesta a violação da dignidade da pessoa humana da mulher (art. 1º, III, CRFB) e a promoção do bem de todos (art. 3º, IV) ao legitimar a violência contra a mulher. Além disso, o estatuto viola os direitos fundamentais à segurança e à integridade moral da mulher (art. 5º da CF) ao sujeitá-la a desenvolver relações pessoais com aquele que lhe dirigiu nefasta violência sexual, em virtude do reconhecimento legalmente determinado de qualidade de pai do(a) filho(a) que ela potencialmente carrega.

O estatuto faz questão de ressaltar que o estuprador terá todos os direitos inerentes ao reconhecimento de sua paternidade. Um dos pontos mais graves disso, além da legitimação da violência pelo “bolsa estupro”, é que o estatuto pretende abolir o direito de a mulher interromper a gestação em caso de gravidez decorrente de estupro.

Isso porque, além da previsão acima destacada, o art. 12 traz que:

“Art. 12 É vedado ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores”. Em um substitutivo, alteraram a expressão “ato delituoso” por simplesmente “ato de seus genitores”, o que, a toda evidência, nada altera o artigo. É uma mensagem clara contra a possibilidade de a mulher exercer seu direito ao aborto legal.

Informe ENSP: A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social”. De que forma os campos do direito, saúde e a própria sociedade podem agir para impedir a aprovação do projeto?

Maíra Fernandes:
É fundamental que toda a sociedade participe do debate em torno do estatuto; que os profissionais das mais diversas áreas do conhecimento escrevam artigos, pareceres, informem os deputados e senadores sobre a gravidade desse Projeto de Lei e os retrocessos dele decorrentes.

Importa observar, ainda, que o art. 28 cria restrição indevida à liberdade de expressão do pensamento ao criminalizar qualquer manifestação pública sobre o aborto como se fosse apologia do crime, na medida em que impede que se discuta a legitimidade de maior liberalização da prática, o que configura censura prévia e interdição indevida à exposição de ideias, como a de ampliação dos permissivos legais para o aborto.

Ainda, o dispositivo citado termina por punir quem defenda publicamente as próprias hipóteses de aborto legal já previstas na legislação e criminaliza mesmo professores de medicina e profissionais de saúde que queiram ensinar ou divulgar formas de atendimento em caso de aborto, legal ou ilegal, configurando uma mordaça perversa no debate sobre a prática do aborto e impedindo a livre circulação de ideias que é característica de uma sociedade democrática.

Não podemos ficar de braços cruzados para, afinal, sermos surpreendidos pela aprovação dessa aberração que é o estatuto.


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2 comentários
IVONETE MOUREIRA DE SOUZA
24/09/2013 03:48
O Estatuto do Nascituro me parece um assunto que necessita de maior divulgação, pois pode ter interpretações diversas. Concordo com a Drª Maíra Fernandes. Acredito que realmente será um grande retrocesso para as conquistas em favor da mulher e da ciência. Em nenhum momento percebi qualquer alusão a desvalorização da vida, muito pelo contrário, percebi que o interesse é realmente a valorização da vida e a sua integridade, a garantia de que a gestação continue sendo um momento único e um privilégio exclusivo da mulher.
JULIO CESAR DA SILVA
21/09/2013 11:09
EU SUGIRO A PROFESSORA QUE LEIA O CASO DESSA SENHORA, UMA VERDADEIRA MÃE E MULHER VIRTUOSA QUE ACREDITA QUE DEUS É O SENHOR DE NOSSAS VIDAS E A ELE CABE A DECISÃO FINAL. A missionária e cantora evangélica Flordelis dos Santos é mãe de 50 filhos, apenas quatro deles biológicos. No rebanho, meninas abandonadas em terrenos baldios, meninos que obedeciam cegamente às ordens do tráfico, crianças que nasceram na favela, cresceram nas calçadas da vida e se tornaram frequentadores das cracolândias. Vinte e seis deles hoje torcem para que a Vara da Infância e da Juventude reconheça que ela pode continuar responsável por eles até a maioridade. Graças ao trabalho que realiza no instituto que leva seu nome, em São Gonçalo, Flordelis é a sexta personalidade a receber de O DIA a medalha Orgulho do Rio, concedida a cidadãos que contribuem para um Rio melhor. Saga reconhecida por várias personalidades brasileiras O ditado popular diz que em coração de mãe sempre cabe mais um. No de Flordelis, até agora, já são 50 filhos. A autobiografia relata a trajetória de Flordelis sempre foi de muita luta ? a perda do pai em um acidente trágico, a vida difícil na favela do Jacarezinho, no Rio, o preconceito e as dificuldades econômicas. Essa experiência foi transformada em estímulo para que ela resgatasse a dignidade de dezenas de crianças que (literalmente) adotou. A história da mulher que venceu a pobreza, desafiou a violência e o preconceito da própria família para se tornar mãe de 50 filhos é narrada por ela mesma em Flordelis (Thomas Nelson Brasil, 234 pp., R$ 24,90). O livro mostra as batalhas que a autora teve de enfrentar para conquistar a guarda e confiança de seus filhos, desde a adoção da primeira criança até a mais recente, passando ainda pelo nascimento de seus quatro filhos biológicos. Sou a favor do direitos das mulheres,mas não sou a favor de nada que atinja inocentes, sei que uma mulher que gera um filho provenientes de estupro , vai viver por um tempo muito abalada emocionalmente e ate fisicamente, mas não acredito em todas as historias que a mulher foi vitima de estupro e agora que matar o feto. Sei que a sociedade esta mudada e confundem liberdade com libertinagem, a midia propaga e defende a promiscuidade, prostituiçao, adulterio, fim do casamento, etc. Os inocentes sempre são culpados e sofrem a pena de morte, no caso o abortado, mas os verdadeiros culpados quase que nada sofrem. O mundo procura uma solução para as supostas crises que dizem esta ocorrendo e querem reduzir a papulação a começar pelos fetos, bebes e crianças, parece o holocausto, primeiro matam os fetos, depois os deficientes, depois os idoso e a seguir serao os pobres, até que consigam um povo perfeito. O Estado não dá condições, mas quer jogar a culpa na fome, crise, crescimento populacional, etc. Ninguem se atreve a falar de varias mulheres que vivem nas noitadas, no trafico, no crime e engravidam indesejadamente e depois matam os bebes, Acho melhor lutar pela vida de ambos, pois acredito que esses filhos indesejados, no futuro serão muitos medicos, legisladores, politicos, empresarios, advogados, etc, com osou eu hoje um advogado que nasci numa favela, filho de mãe e pai pobres, com sete irmãos e graças a Deus todos estamos vivos, porque minha mãe nunca fugiu da responsabilidade e não nos culpou pela dificuldade e nem nos condenou a morte ,mas seu amor e coragem a motivou para nos criar , mesmo anos depois ficando viuva, continuou nos amando e hoje aos 82 anos de idade posso sentir mais ainda o seu amor. É disso que o mundo precisa, de pessoas menos egoista, que aprenda a amar o proximo, inclusive o nascituro.