Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

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Cidades Saudáveis: o capital humano em primeiro lugar

Trevor Hancock, consultor internacional em Promoção da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), assessor em Saúde Pública do Ministério da Saúde do Canadá e um dos mentores do movimento internacional de Cidades Saudáveis, veio ao Brasil para participar de atividades do projeto de cooperação Brasil-Canadá sobre Ações Intersetoriais em Promoção da Saúde e Desenvolvimento Local. Em sua permanência, visitou diversas instituições acadêmicas, dentre elas a ENSP, onde proferiu a palestra 'Saúde urbana e Cidades saudáveis', inaugurando as atividades de 2008 do Centro de Estudos da ENSP (Ceensp). Em entrevista ao Informe, Hancock mostrou otimismo com relação a algumas experiências vistas no Brasil e defendeu a possibilidade de se pensar um novo modelo de desenvolvimento que coloque o ser humano em primeiro lugar.

Informe ENSP: Qual a diferença que existe entre os conceitos de saúde urbana e de cidade saudável?

Trevor Hancock:
Saúde urbana tem a ver com a saúde do assentamento urbano, no que se refere ao seu próprio funcionamento como uma comunidade e como um ecossistema, mas também com a saúde das populações humanas que habitam esse ecossistema e com os serviços de cuidado à saúde. A proposta de cidade saudável, por sua vez, é uma tentativa de concretizar o conceito de 'promoção da saúde' expresso na Carta de Ottawa, em 1986. Nesse sentido, tem a ver com políticas e práticas que permitam e facilitem o 'processo de ajudar as pessoas a aumentarem e melhorarem o controle sobre sua saúde'. O conceito de cidade saudável diz respeito a um processo, à idéia de governança. É o processo que nos leva de onde estamos para onde queremos chegar; é a projeção futura dos nossos valores. Numa cidade saudável, por exemplo, não se combate a violência com a colocação de grades e nem com o uso de violência. É preciso compreender que os problemas não se resolvem do dia para a noite. É preciso que se inicie um processo de mudança das normas sociais, que sejam criadas formas de promover a coesão da sociedade.

Informe ENSP: Por que utilizar o conceito de ecossistema urbano, quando pensamos em cidades saudáveis?

Trevor Hancock:
Por definição, ecossistemas são comunidades de organismos que interagem entre si e sua relação com o ambiente em que vivem. Nós, seres humanos, somos 'comunidades de organismos que interagem entre si' e o ambiente físico em que vivemos é cada vez mais a cidade. Logo, para os seres humanos, a cidade acaba sendo o principal ecossistema, o qual engloba o ambiente construído - que eu sempre digo de brincadeira que é o 'habitat natural' do homem atual -; os ambientes social, econômico, cultural e político; as bioregiões e a biosfera; os seres humanos e os outros organismos biológicos.

O fato de sermos animais sociais faz com que o meio urbano represente, em termos de promoção da saúde, tanto um local físico quanto um espaço social. É importante, no entanto, destacar que as cidades não existem isoladamente, elas integram bio-regiões e ecossistemas locais e globais, sistemas econômico e político local, regional, nacional e global, cultura e sistema de valores etno-racial e nacional. Isto é, a saúde do ecossistema está sujeita a diversos fatores e, em todos os aspectos, o desenvolvimento e a segurança dos seres humanos estão intimamente ligados à integridade e à viabilidade dos ecossistemas. Essa rede da vida é vital para nossa sobrevivência como espécie, mas tão vital quanto ela é a nossa rede de relações sociais, que também precisa ser mantida e fortalecida. Nesse sentido, eu destaco ainda o conceito de sustentabilidade social urbana, que é a capacidade de uma cidade funcionar, a longo prazo, como um ambiente propício para a interação humana, a comunicação e o desenvolvimento cultural.

Informe ENSP: Que características o senhor destacaria numa cidade socialmente sustentável?

Trevor Hancock:
Eu diria, concordando com outros autores, que é uma cidade marcada pela vitalidade, pela solidariedade e por um sentido comum de pertencimento entre seus residentes - impossível de se manifestar em áreas de grandes desigualdades sociais, por exemplo -, bem como pela falta de conflitos violentos entre grupos e pela inexistência de uma visível segregação espacial ou de instabilidade política crônica.

Informe ENSP: Em sua palestra, o senhor falou em 'bioregião' e 'ecologia social'. A que se referem esses conceitos exatamente?

Trevor Hancock:
Bioregião é um território definido pela combinação de critérios biológicos, sociais e geográficos, em vez de considerações geopolíticas. Em geral, representa um sistema de ecossistemas interligados. A idéia de bioregião é muito importante dentro do conceito de governança, pois aponta a priori para alguns problemas que é preciso administrar e define alguns recursos que existem à nossa disposição. Ecologia social, por sua vez, é o estudo das relações entre indivíduos, grupos sociais e seus ambientes. Por meio da ecologia social, podemos analisar, de forma interdisciplinar, os complexos problemas que a sociedade contemporânea enfrenta em seus ambientes físico e social. A ecologia social, portanto, pode nos ajudar bastante a enfrentar alguns desafios importantes da saúde pública.

Informe ENSP: Que dimensões o senhor destacaria em termos de saúde do ecossistema urbano? E de que forma isso se relaciona com a saúde de seus habitantes?

Trevor Hancock:
Em primeiro lugar, eqüidade da saúde, ou seja, a distribuição eqüitativa de bem estar físico e mental entre os diferentes segmentos sociais. Além disso, o bem estar social, econômico e cultural da população. Dimensão esta relacionada à distribuição dos determinantes sociais de saúde. A qualidade do ambiente construído, incluindo a qualidade das moradias, do sistema de transporte e do saneamento; a existência de espaços públicos, como parques e áreas de recreação, entre outros. A qualidade do meio ambiente, considerando os níveis de poluição sonora, do ar e da água. A saúde dos outros organismos vivos que convivem com os seres humanos, a biodiversidade. E tem ainda o que eu chamo de 'impressão digital (ou pegada) ecológica', que é o impacto que o meio urbano imprime no meio natural no qual está inserido. A 'saúde' de uma cidade, portanto, é determinada por vários fatores sócio-ecológicos. A saúde dos seus cidadãos, por sua vez, depende da 'saúde' da cidade, mas também de fatores individuais - biologia humana, hereditariedade, comportamento pessoal e recursos financeiros - e da existência e efetividade dos serviços de saúde.

Informe ENSP: Voltando à questão das cidades saudáveis. O que é importante ter em mente?

Trevor Hancock:
Como eu disse anteriormente, 'cidades saudáveis' tem a ver com o processo de concretização dos princípios da promoção da Saúde expressos na Carta de Ottawa, ou seja, com a construção de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes favoráveis a saúde, o reforço da ação comunitária, o desenvolvimento de competências pessoais e a reorientação dos serviços de cuidados à saúde. E isso tudo nos leva à questão da governança, que pode ser entendida como a gestão do curso dos acontecimentos em um sistema social, como a soma das várias formas que indivíduos e instituições, públicas e privadas, têm para planejar e gerir os assuntos comuns da cidade. Um bom exemplo da idéia de governança são os conselhos de saúde, que representam uma tentativa, em alguns casos muito bem sucedida, de democratizar a gestão de saúde no Brasil.

Informe ENSP: Mas como lidar com a questão dos interesses públicos e privados, que nem sempre são os mesmos, quando se fala em governança, especificamente na área da saúde?

Trevor Hancock:
Bem, o principal propósito da governança e também dos governos deveria ser o desenvolvimento humano sustentável e eqüitativo. A governança das cidades deve considerar as preocupações e os problemas comuns aos cidadãos; ela demanda uma visão comum desses problemas e implica em abordagens e soluções compartilhadas. Nesse sentido, a melhoria das condições de saúde da população, que deveria interessar a todos, ou pelo menos a maioria das pessoas, deve ser um item primordial dessa agenda comum, criando novas formas de governança nas corporações, na sociedade, de uma forma mais ampla, e nas cidades.

Informe ENSP: Como assim novas formas de governança?

Trevor Hancock:
No caso da governança das empresas, eu penso que isso tem a ver com economia sustentável, com responsabilidade social, com a criação de selos de qualidade, o ISO14001, por exemplo, com o chamado 'investimento ético', com a democratização nos espaços de trabalho. Na governança da sociedade, eu creio que o principal é o planejamento e a ação integrados que envolvam os três setores - publico, privado e sociedade civil organizada -, a análise de impacto do desenvolvimento humano e a democratização das relações. No caso das cidades, eu citaria a participação democrática dos cidadãos, o fortalecimento dos serviços, o desenvolvimento das comunidades e, por que não, a adesão à idéia de bio-regiões. A questão é que hoje ainda prevalece a construção e fortalecimento do capital econômico em detrimento dos capitais natural, social e humano. A idéia dessa 'nova governança' é colocar o capital humano no centro do processo.

Informe ENSP: Intersetorialidade e parceria seriam, portanto, palavras-chave desse processo?

Trevor Hancock:
Sim, no caso da saúde, eu lembro que três aspectos da intersetorialidade foram considerados fundamentais pelo programa 'Saúde para todos' da OMS. A primeira delas interna, envolvendo departamentos, ministérios e agências governamentais ou segmentos de universidades, empresas comerciais, grandes ONGs, igrejas, etc. A segunda, intersetorial propriamente dita, envolvendo os diferentes setores da sociedade. E por fim, aquela que atravessa verticalmente os diversos níveis de atuação das organizações e dos governos - local, regional, nacional, global -, pois, muitas vezes, uma questão local demanda ou depende de uma legislação nacional. Quanto às parcerias, eu diria que o primeiro passo para estabelecê-las é buscar uma causa comum, por meio de três perguntas básicas: 'O interesse do outro é compatível com o meu?', 'No que eu posso ajudá-lo?' e 'No que ele pode me ajudar'. Um exemplo, se o interesse do governo e dos cidadãos é melhorar a educação, que parceiros teriam interesse em investir no aprimoramento do capital humano. Parcerias só se concretizam se houver benefício mútuo.

Informe ENSP: No caso da saúde, como estabelecer parcerias com o setor privado, cujo principal objetivo é o lucro?

Trevor Hancock:
Em primeiro lugar, temos que ter em mente que a parceria com o setor privado pode ter aspectos bastante positivos, pois as empresas têm recursos financeiros, habilidades e competências, agilidade e outras características úteis. No entanto, é impensável fazer parceria com empresas que lucram com a falta de saúde, como os grandes conglomerados farmacêuticos, por exemplo, ou com empresas cujos produtos trazem doenças, como a indústria do fumo. É necessário buscar parceiros cujos ganhos aumentem na medida em que a saúde da população melhore, como as companhias de seguro e as agências de turismo, ou empresas que 'produzam saúde', por meio de alimentos saudáveis, equipamentos que consumam menos energia ou evitem danos aos trabalhadores e etc. Também é interessante tentar envolver empresas locais, que estejam mais próximas da comunidade, sempre buscando que essas empresas também aprimorem seu processo produtivo e respeitem a legislação trabalhista e ambiental.

Informe ENSP: Depois de sua visita ao Brasil, há motivos para otimismo?

Trevor Hancock:
Bem, eu vi várias experiências positivas por onde passei. Em Curitiba, de onde estou vindo, pude conhecer melhor algumas políticas públicas voltadas para a qualidade de vida e desenvolvimento urbano sustentável. Também vi que, em alguns aspectos, principalmente na área da saúde, no que se refere ao SUS, vocês estão muito à frente do Canadá. É lógico que ainda há muito que fazer, mas isso é assim mesmo. O processo é lento. Ora avançamos, ora voltamos para trás. Muitas vezes desanimamos porque nada parece funcionar, nada faz sentido. Mas isso não pode nos impedir de continuar. Que eu saiba, nunca ninguém conseguiu mudar o mundo sozinho, mas isso não quer dizer que não podemos nos unir para mudar o mundo se essa for a nossa vontade.

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