Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

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Pesquisador fala sobre a construção do conhecimento científico

Tatiane Vargas

Entre os dias 4 e 5 de julho, o Grupo Direito Humanos e Saúde da ENSP realizou o VI Seminário Internacional Direito e Saúde e X Seminário Nacional Direito e Saúde. Durante a atividade, o pesquisador da Universidade de Coimbra, Portugal, João Arriscado Nunes, proferiu a palestra Construção do conhecimento, a ética, a política e a construção do conhecimento em saúde. Segundo o professor, o conhecimento científico distingue-se do conhecimento comum por ser produzido dentro de instituições por pessoas com instrução acadêmica e é validado quando avaliado e compartilhado por outros cientistas através de comprovações teóricas.

Durante sua palestra Arriscado abordou a diferença da construção do conhecimento geral e do conhecimento científico, além da relação da ética e da política no processo de construção. O pesquisador apresentou também a ideia da construção do conhecimento em saúde, produzida com base nas experiências de sofrimento humano. Em entrevista ao Informe ENSP, Arriscado explicou como e onde é produzido o conhecimento científico e destacou que as experiências com sofrimento humano devem ser partilhadas para produzir o conhecimento e evitar a trivialização do sofrimento por parte da sociedade.

Portal: Em sua palestra o senhor abordou a diferença da construção do conhecimento científico e do conhecimento geral. Como é dada essa distinção?

João Arriscado:
O que difere o conhecimento científico tal como entendemos hoje é o fato dele ser produzido dentro instituições científicas por pessoas que tenham certas qualificações, os chamados cientistas. O que talvez seja mais importante nos processos de construção do conhecimento científico é que ele deve ser partilhado com outros cientistas, e, principalmente, validado e avaliado para se tornar um conhecimento articulado, no sentido de criar um conhecimento verdadeiro. Quando o conhecimento científico se desenvolveu ele se articulava com os objetivos e intenções dos envolvidos no processo de construção através da avaliação pelos pares.

Outras formas de conhecimento não funcionam desta maneira, há formas de validar o conhecimento geral, cotidiano, realizadas em situações sem o menor enquadramento institucional. Completamente diferente do conhecimento científico, essas podem ser feitas por qualquer pessoa e tem a ver com a maneira como podemos responder razoavelmente problemas e situações cotidianas, sem fazer pesquisa propriamente. O que há de comum entre todas as forma de conhecimento é que eles são sempre produzidos a partir da necessidade de fazer algum tipo de indagação quando queremos responder um problema qualquer.

O senhor avalia como válido o conhecimento científico produzido atualmente pelas instituições de pesquisa? Eles realmente trazem benefícios para a sociedade?

Arriscado:
Sim, há muita produção de conhecimento que gerou ótimos frutos, existem estudos muito interessantes que recorrem precisamente deste processo de produção do conhecimento científico. O grande diferencial da construção deste tipo de conhecimento é que nunca vamos saber que consequências ele vai produzir. Portanto, o que caracteriza a pesquisa científica é o caráter aberto das consequências que ela pode causar. Sempre que se produz conhecimento haverão efeitos, sendo eles positivos ou negativos. Do ponto de vista daquilo que chamamos de atitude ética e política do produtor do conhecimento, este deve estar sempre atento a tudo que faz, pois não há conhecimento inocente. Uma pessoa pode dizer que não houve intenção, que tal estudo não era para ser usado de determinada maneira e foi. A produção do conhecimento científico é uma atividade completamente sem garantias.

Como a ética e a política permeiam a discussão sobre a construção do conhecimento?

Arriscado:
Normalmente quando nos falamos de política e ética há uma espécie de visão convencional da relação entre ciência e política de que elas são exteriores uma a outra. Durante muito tempo, pregava-se que uma coisa é fazer ciência e a outra é fazer política com aquilo que a ciência produz, ou fazer política para a ciência. Os anglo-saxônicos, por exemplo, definem como Policy for Science, que é "Política para a Ciência", ou seja, a definição do que é política para a ciência e Science for Policy, que são as ciências para a política, mas o ponto principal é que existe sempre uma exterioridade entre elas.

Durante muito tempo a história das ciências mostrou que esta exterioridade era uma construção histórica formulada no século XVII por dois pesquisadores que publicaram um livro nos anos 80 sobre a relação entre política e ciência. Um deles defendia que elas deviam ser separadas e a melhor maneira para isso era criar um espaço próprio, com regras próprias: o laboratório. Todos que iam até o laboratório deveriam suspender todas as suas referências, crenças e opiniões políticas. Ou seja, para aquele pesquisador a única maneira de conseguir uma paz política era distinguir uma posição política e seguir uma relação baseada no estabelecimento de fatos. Enquanto isso, o outro pesquisador afirmava que não era possível fazer esta separação. A partir de então essa separação se consagrou institucionalmente e profissionalmente. No inicio aplicava-se em instituições próprias, com pessoas providas de qualificações, chamava-se "filosofia natural". Era feita por pessoas que não eram cientistas profissionais e pessoas que podiam testemunhar aquilo que estava sendo feito no laboratório, eram indivíduos considerados de confiança, porém, não eram especialistas, sendo assim, o conhecimento produzido tinha caráter público de ciência.

Assim foi sendo construída a ideia de que há instituições próprias para a ciência com especialistas que sejam capazes de produzir conhecimento sem serem afetados por fatores de ordem política, social e etc. Ou seja, uma pessoa tinha que suspender tudo que era relacionado com as sua crença, opinião ou até mesmo com a sua origem social, como o fato de ser homem ou mulher, por exemplo, para fazer ciência . Atualmente sabemos que as coisas não funcionam desta forma, pois é impossível fazer ciência desta maneira. As pesquisadoras feministas que trabalharam no tema diziam que para produzirmos de fato conhecimento objetivo temos que tornar explícitos todos os fatores, pois assim tornam-se públicas as condições de produção do conhecimento para que outros possam criticar de maneira articulada o conhecimento que se produz, portanto é exatamente o contrário do que se pensava antes.

Com é feita a produção do conhecimento científico atualmente?

Arriscado:
A produção científica hoje ainda é feita em instituições, porém, diferentes do que eram antes. Uma das diferenças, por exemplo, é que a determinação sobre o que são as prioridades de pesquisa são feitas a partir daquilo que são prioridades econômicas. Em Portugal, por exemplo, há cerca de mais ou menos 20 anos, tivemos uma política de ciência que era baseada na ideia de quem determinava as prioridades de pesquisa em todas as áreas era a própria comunidade científica, isso permitiu um grande desenvolvimento da pesquisa em muitas instituições. Neste momento a orientação que está em vigor é que quem define as prioridades em pesquisa é o governo, portanto, isso significa que há um condicionamento que a política é quem vai determinar as coisas que vão ser pesquisadas, as que vão ser financiadas e as que vão deixar de ser financiadas. E este vai ser provavelmente o panorama que nos vamos ter.

Há certas áreas que vão sofrer muito com isso, as Ciências Socias e Humanas, por exemplo, e vai haver uma valorização muito grande das áreas que podem dar origem a produtos valorizáveis economicamente, portanto houve claramente uma concessão diferente daquela que existia antes e isso quer dizer que as próprias instituições cientificas realmente hoje estão se transformando, quer dizer elas são muito mais permeáveis. Por isso, na questão da política não basta olharmos como sendo algo externo a ciência. Temos que perceber que toda ciência e toda atividade científica acaba sempre gerando efeitos políticos. Outra dimensão é que a ciência é constitutivamente política e todas as questão nela envolvidas são decisões diárias feitas nos laboratórios e tomadas a partir de deliberações políticas. Atualmente os pesquisadores devem tomar decisões que são políticas. Sendo assim, eles precisam conviver com a ideia de que realmente fazem política e ciência para alguém, e devem trabalhar nesta nova perspectiva.

Portal: O senhor abordou a questão da construção do conhecimento em saúde que envolve o sofrimento humano. Como trabalhar para construir este tipo de conhecimento?

Arriscado:
A grande questão envolvida no sofrimento humano é que ele não poder ser abordado apenas sobre o ponto de vista do conhecimento geral. O sofrimento humano atualmente é muito trivial, e não deve ser. Na pesquisa em saúde, especialmente nas pesquisas em Ciências Socias em Saúde, é fundamental compreender como transformar o sofrimento humano em algo que possa necessariamente se tornar uma experiências partilhável. Precisamos fazer com que as pessoas que tenham experiências de sofrimento consigam contar a sua história para que ela seja validada e outros tenham acesso, ou seja tornar essas pessoas e suas experiências mais visíveis. Uma das principais funções que as Ciências Socias tem é exatamente essa, trabalhar com esse grupo de pessoas para tornar partilhável suas experiências. Essa é umas da maneiras de produzir conhecimento e resgatar um pouco a ideia de que o sofrimento humano é importante de ser visto para evitar a sua relação com a trivialização. É preciso repensar para construir práticas neste sentido.

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