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Entrevista: A privatização dos serviços de saneamento vai universalizar o acesso à água e esgoto no país?

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Publicado em:16/07/2020
Por Danielle Monteiro
 
Entrevista: A privatização dos serviços de saneamento vai universalizar o acesso à água e esgoto no país?O novo Marco Legal do Saneamento Básico (PL 4.162/2019), recentemente sancionado pelo Executivo, prevê a universalização do saneamento em todo o Brasil até 2033, com cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e 90% para coleta e tratamento de esgoto. O projeto de lei tem gerado uma discussão acirrada entre apoiadores e críticos da proposta. Será que a maior abertura a empresas privadas no setor vai solucionar o problema da falta de concorrência na área? A concessão privada de vários municípios da mesma região vai permitir, de fato, a ampliação do atendimento a cidades mais pobres e a mais pessoas, por custos fixos mais baixos? O que falta o Estado fazer para universalizar de vez o acesso à água e ao esgoto no país? Líderes de um grupo de pesquisas da Fiocruz sobre Políticas de Saneamento, os pesquisadores da ENSP Ana Cristina Sousa e Paulo Barrocas respondem a essas e outras perguntas. Confira abaixo a entrevista:
 
O novo Marco diz, em seu segundo parágrafo, que “As outorgas de recursos hídricos atualmente detidas pelas empresas estaduais poderão ser segregadas ou transferidas da operação a ser concedida, permitidas a continuidade da prestação do serviço público de produção de água pela empresa detentora da outorga de recursos hídricos e a assinatura de contrato de longo prazo entre esta empresa produtora de água e a empresa operadora da distribuição de água para o usuário final, com objeto de compra e venda de água.” Dessa forma, o projeto institui a figura da “empresa produtora de água”, que será diferente da empresa que ficará responsável pelo saneamento. Isso significa que a regulação será apenas sobre a empresa de distribuição da água? Que impacto essa nova medida pode gerar para a sociedade?
 
Sim, o projeto cria a figura da empresa produtora. Não ficou claro para nós se a regulação proposta incidirá apenas sobre os serviços geridos pelas empresas operadoras, isto é, aquelas que distribuem a água ou se incluirá as empresas produtoras. A empresa produtora é quem definirá o que fazer e como fazer com a água. A distribuidora é que vai definir quem poderá ter acesso à água, o que é preocupante quando o objetivo da exploração do serviço é o lucro. 
 
Outras questões podem ser levantadas com isso também: A responsabilidade de atingir os padrões de qualidade de potabilidade caberá à produtora ou à distribuidora? Quem responde por uma água de baixa qualidade que chegar à sua casa? E se, no meio de uma pandemia, o Estado decidir liberar o acesso à água sem custos para o cidadão como estratégia de promoção da saúde, a distribuidora estará disposta a colaborar ou poderá dificultar a assistência, exigindo compensações? Os consumidores serão clientes da empresa distribuidora e não terão vínculo com a empresa produtora? Questões como essas não ficam claras na nova legislação, que ainda precisará da edição de um decreto para sua regulamentação.
 
 
Um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), realizado em 2019, aponta a falta de concorrência no setor de saneamento como o principal entrave para a universalização da água. A maior abertura a empresas privadas, conforme prevê o novo Marco Regulatório, seria uma solução para esse problema?
 
Não. Pode ser o contrário. Entendemos que o estímulo à prestação por empresas privadas pode comprometer a universalização, pois vincula o acesso a um direito humano (ONU, 2010) com o mercado e a finalidade do lucro. É um modelo que tem sido, paulatinamente, rejeitado em cidades do mundo inteiro. 
 
Até onde levantamos, não há consenso na literatura cientifica sobre a superioridade dessas operadoras na prestação de maneira geral. Checamos os últimos números do SNIS e percebemos que as empresas privadas que já atuam no país não apresentam menores índices de perdas na distribuição, maior produtividade de pessoal total ou de densidade de economias de água por ligação quando comparadas às públicas. E no último estudo que analisamos sobre o padrão de investimento e a estratégia financeira das grandes empresas regionais de água e esgoto do Brasil (Sarti e Ultramare, 2018), os autores mostram que a abertura ao capital privado não produziu resultados substancialmente diferentes das demais empresas na universalização da cobertura e redução do deficit, embora a rentabilidade delas tenha sido muito alta, perdendo apenas para a do setor financeiro (bancos). Eles explicam que a opção preferencial pela remuneração dos acionistas (dividendos) constrangeu as decisões de investimento na ampliação da cobertura. 
 
 
Segundo os defensores do novo Marco, a concessão dos serviços locais à iniciativa privada não será obrigatória e não enfraquecerá as públicas, pois o município poderá decidir se será uma empresa privada ou estatal que terá a concessão da oferta do serviço. Com a instauração do novo Marco, empresas públicas e privadas estarão, de fato, em pé de igualdade pelo princípio da concorrência?
 
Definitivamente, não. De fato, a lei, em si, não obriga a privatização dos serviços. Mas ela produz e viabiliza diversos constrangimentos que induzem à privatização deles. Vamos dar alguns exemplos. Quando o governo federal deixa claro que o socorro financeiro a um estado/município endividado depende de sua adesão à privatização dos serviços de saneamento no seu território, ele não impõe uma obrigação ao ente, no sentido estrito do termo, mas cria um forte constrangimento para tanto. Afinal, se não houver acordo, a dívida continua e o ente terá de arcar com os custos dessa decisão, como deixar de pagar os servidores e paralisar os serviços públicos, penalizando ainda mais a população. 
 
Na prática, essa lei operacionaliza e agiliza a privatização por duas vias: 1) limitando a autonomia municipal e asfixiando os municípios que não estejam suficientemente convencidos ou preparados para lidar com o poder econômico dos grupos privados do setor e 2) quebrando a concorrência representada pelas empresas estaduais. Vejamos o primeiro caso. Ao obrigar o município à licitação obrigatória dos serviços, a lei pode, por exemplo, constranger um município ideologicamente contrário à privatização, mas que não tenha condições de assumir diretamente os serviços, a contratar uma empresa privada que eventualmente saia vencedora da licitação. O procedimento de licitação nos municípios, inclusive, sempre foi percebido como problemático pelo próprio setor privado, que reconhecia a incapacidade e o despreparo deles nessa área. Ela penaliza também o titular que decidir rescindir o contrato, em uma eventual troca de controle acionário da concessionária (privatização) – o que é um direito do titular –, confrontando-o com a obrigação de arcar com os investimentos realizados ainda não amortizados. Ora, que município hoje pode se dar ao luxo de assumir uma dívida dessas, assim, da noite para o dia? 
 
Quanto à concorrência, a lei permite que, na aquisição de empresas estaduais, os novos operadores herdem contratos integrais livre do ônus de dívidas (investimentos realizados ainda não amortizados). Caso prefiram a disputa no varejo, a licitação obrigatória os fará concorrer com empresas públicas que provavelmente terão os contratos fracionados, perdendo, com isso, a competitividade do ponto de vista econômico. É preciso ter em mente que a sustentabilidade das empresas estaduais de saneamento reside no mecanismo de subsídios cruzados, pelo qual clientes ricos financiam a expansão dos serviços para clientes pobres. Na linguagem dos negócios: a lei quebra a espinha dorsal da concorrência (empresas estaduais) e torna a resistência dos clientes muito custosa.
 
 
Segundo dados de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), metade da população (mais de 100 milhões de pessoas) não tem acesso a sistema de esgoto, enquanto 16% (quase 35 milhões) não tem acesso à água tratada. Em 94% das cidades brasileiras, o serviço é feito por companhias estaduais ou municipais, com ajuda do governo federal. Por que o acesso à água ainda não foi universalizado pelo Estado? O que falta o Estado fazer para mudar esse cenário?
 
O que o estudo da história do setor nos mostrou foi que o projeto de privatização do governo federal dos anos 1990 gastou quase uma década tentando atrofiar os operadores públicos, mantidos à mingua de recursos, com o objetivo de privatizar os serviços, o que só não se concretizou pela força da luta política dos atores do setor. Com a mudança de governo, a crença principal era a de que a disponibilização de recursos automaticamente reverteria o processo anterior. Mas os operadores se encontravam atrofiados, e os resultados não foram os desejados. Quando, finalmente, a União passou a alinhar recursos com capacitação local para o gasto, o golpe de 2016 interrompeu o processo, trazendo de volta à cena a agenda dos anos 1990, que é essa que tramita com o novo projeto de lei. O conteúdo dele foi submetido antes, no governo Temer, durante a Copa do Mundo e, meses depois, às vésperas do Reveillon, ao fim do mandato, por meio de duas medidas provisórias (MPs 868 e 844/2018), sem sucesso. Reformulada como Pojeto de Lei em 2019, foi negociada e votada durante uma pandemia. 
 
Bom, o que faltou ao Estado brasileiro, e também à sociedade de forma geral, foi encarar o acesso ao saneamento do mesmo modo que encara a saúde e a educação: como direito social universal, e não como uma mercadoria a ser provida pelo mercado. A pandemia evidenciou que não se pode deixar a vida humana nas mãos do mercado. E água é vida. Como fazer isso? Com coordenação federativa, muito planejamento local e a transferência regular de recursos vinculados para o setor, como ocorre em outras áreas. Esses são pontos que a lei não só não aborda, como tenta enfraquecer para abrir espaço aos que lucram com essa deficiência. 
 
 
Os defensores do novo marco afirmam que, com a abertura do mercado, haverá competitividade no setor, o que reduziria, e não aumentaria, os preços. A privatização dos serviços de saneamento básico vai tornar o valor da água mais acessível a todos, inclusive a populações mais pobres, ou vai acarretar no aumento de custos?
 
A Economia ensina que a competição não funciona em todos os casos. Na produção de bens que exigem elevados investimentos fixos e efeitos de escala, a competição pode ser contraproducente, quando não inviável, como é o caso do saneamento. Os economistas chamam essas atividades de monopólios naturais, porque o alto volume de recursos exigidos para a implantação dos serviços e o tempo de retorno exigem contratos longos e exclusivos (de 20 a 35 anos) para compensar o investimento. Dito isso, é preciso alertar a população para o fato de que, uma vez assinado o contrato, estaremos todos presos a uma operadora por duas décadas no mínimo. Ela é quem vai dizer o quanto irá cobrar. E dependeremos do controle exclusivo de agências reguladoras, o que pode ser arriscado. Se não estivermos satisfeitos, os custos de reversão dessa escolha são altíssimos, como mostram os casos internacionais. Não é como uma operadora de telefonia que você pode trocar a qualquer tempo, porque há outra com tarifa mais barata. Não haverá três canos, um de cada empresa, para levar água à sua casa. 
 
Agora, vejamos alguns casos aqui mesmo no Brasil. Quando a holding da Odebrecht adquiriu o controle da SANEATINS em 2012, ela conservou os 52 municípios mais populosos (diga-se rentáveis) do estado e rejeitou outros 78, que, atualmente, dependem do poder público para ter acesso aos serviços. No Amazonas, após a privatização da capital Manaus, restou à Cosama manter o acesso dos demais municípios do estado, que exibe hoje uma das menores coberturas do país. 
 
Até casos alegadamente “bem-sucedidos” como o de Niterói, no Rio de Janeiro, por exemplo, levantaram controvérsias: segundo a Cedae, o valor pago pelo m3 de água fornecido à operadora não cobre, nem de longe, os custos de sua produção. A briga foi parar nos tribunais. Na Bolívia, a elevação do custo da água gerou violentos levantes populares. No Chile, priorizou o agronegócio em detrimento do consumo humano. No mundo inteiro, a privatização elevou os preços, sacrificando os mais pobres até nos países ricos. Por que seria diferente no Brasil? 
 
 
Por que cidades como Paris, Berlim e outras 265 que privatizaram seus sistemas de água e esgoto decidiram voltar atrás em sua decisão e reestatizar o saneamento? 
 
No mundo, 90% desses serviços estão nas mãos do poder público. O maior estudo disponível sobre a reestatização dos serviços de água e esgoto, coordenado por uma instituição holandesa, revelou que os fatores que levaram as cidades a retomar esses serviços foram basicamente o subinvestimento, as disputas sobre custos operacionais, o aumento brutal de preços e tarifas, a dificuldade em monitorar os operadores privados, a falta de transparência financeira, a demissão da mão de obra e a baixa qualidade geral do serviço prestado. Os casos estudados incluem cidades norte-americanas, europeias, africanas e latino-americanas. 
 
É importante frisar que, na maior parte dos casos investigados pelo estudo, a reestatização ocorreu por meio da rescisão dos contratos privados. Isso mostra que, nesses casos, os contratos privados revelaram-se tão insustentáveis que os governantes preferiram a reestatização, com todos os custos de indenização envolvidos, a manter a privatização no longo prazo. 
 
De novo, insisto nesse ponto: essa é uma decisão que não é simples e nem barata de reverter. Tinha que ser mais discutida, não podia ter sido aprovada no meio de uma pandemia. A falência dessa agenda no resto do mundo vem expulsando as grandes empresas de saneamento desses mercados, que buscam, agor,a por oportunidades aqui. Os parlamentares que defendem o projeto têm ligações inequívocas com empresas empenhadas na aquisição e exploração de reservas de água doce do mundo. O Brasil é a maior mina de “ouro azul” do planeta. 
 
 
A privatização do sistema de água vai afetar a tarifa social, benefício que dá desconto à população de baixa renda? Por quê?
 
Bom, a lei prevê a possibilidade de subsídios tarifários e não tarifários para populações de baixa renda, mas não obriga. O princípio do equilíbrio financeiro (da empresa) é evocado recorrentemente no texto. Existem algumas menções à tarifa social e descontos para a população de baixa renda, mas outros trechos criam preocupações quanto ao atendimento das populações mais vulneráveis que vivem em áreas rurais, remotas ou em núcleos urbanos informais consolidados, justamente onde se concentra o déficit de acesso. Eles preveem que o prestador possa utilizar métodos alternativos de serviços de abastecimento de água e de coleta de esgotos nessas áreas, sem prejuízo de cobrança, o que pode significar métodos menos seguros que os tradicionais. 
 
Há um trecho, por exemplo, que permite a exclusão de áreas rurais, comunidades tradicionais como quilombolas e terras indígenas da observância às normas de referência da ANA, o que reforça nossa preocupação de que, nessas áreas, os serviços poderão vir a ser ofertados de forma menos segura. Trechos específicos da lei anterior, que propunham subsídios diretos para populações vulneráveis, considerando nível de renda, também foram revogados. 
 
 
Segundo os defensores do novo Marco, as empresas não deixarão os municípios pequenos e mais pobres de lado, pois a nova lei permite a formação de blocos de referência, ou seja, vários municípios podem se unir e formar planos estruturais que podem ser atendidos por uma única empresa. Sendo assim, todas as localidades envolvidas em uma mesma licitação teriam os serviços prestados pela empresa que tem garantido o direito de concessão. A concessão privada de vários municípios da mesma região vai permitir, de fato, a ampliação do atendimento aos municípios mais pobres e a mais pessoas, por custos fixos mais baixos?
 
A regionalização, isoladamente, não gera garantias para os municípios pobres. O fato de uma empresa, pública ou privada, cobrir regiões ricas e pobres de um território não garante que seus investimentos sejam alocados segundo princípios de justiça e equidade. Na empresa privada, o certo é que eles se orientem ao lucro, porque essa é a finalidade de uma empresa privada. Na empresa pública, lógicas mais aderidas à racionalidade política tendem a prevalecer. Assim como contratos não garantem a responsabilidade empresarial sobre o investimento em regiões pobres, o mero fato de pertencer ao governo também não garante, por si só, o comprometimento de seus líderes com a universalização e a blindagem da administração contra a prática clientelista típica do Poder Executivo no Brasil. 
 
Temos é que pesar as vantagens e desvantagens de cada modelo. Na nossa opinião, as duas principais vantagens de uma empresa administrada pelo Estado, em comparação com uma empresa privada, é que 1) ela não está por principio subordinada ao lucro e 2) ela permite uma janela de oportunidade que se abre, a cada eleição, para os ajustes e correções necessárias ao interesse público, o que, de outra forma, é praticamente impossível sob a gestão da iniciativa privada em contratos de 20/30 anos e, principalmente, no contexto em que ela atua no país. 
 
 
Segundo estudo da FGV, 55% dos contratos entre municípios e companhias estaduais não têm metas bem definidas. Qual o motivo para a escassez de metas definidas nesses contratos? O novo Marco pode solucionar esse problema?
 
O mero estabelecimento de metas, por si só, não assegura o seu cumprimento. Os contratos nesse setor são longos e as justificativas para o não cumprimento de metas podem ser infinitas, especialmente se houver meios e recursos para judicializar a questão, o que não é um problema para a iniciativa privada. É preciso entender que a aposta em regras contratuais rígidas, que assegurem o atendimento às regiões deficitárias como contrapartida da exploração das zonas ricas, pressupõe poder de barganha das lideranças estaduais e exige força e comprometimento delas com a causa da universalização. Não parece ser o caso de governadores que vendem empresas do estado, em troca de algum fôlego nas finanças estaduais, ou que mantêm relações duvidosas com empresas de ramos afins. 
 
Os contratos são uma parte importante do negócio, porém não resolvem, por si só, todas as questões que envolvem o poder dos grupos econômicos e o desafio de levar os serviços de saneamento a populações pobres num país desigual como o nosso. É preciso, também, capacitar minimamente a governança local, qualificando quadros profissionais e estimulando a participação e o controle popular, para que a população não se torne refém de prestadores públicos ou privados. 
 

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