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Democracia (ainda) em vertigem - Uma análise da resposta política do Brasil à crise do Covid-19: tema de artigo da ENSP

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Publicado em:25/06/2020

Um dos autores do artigo, pesquisador da ENSP, André Pereira Neto, questiona a resposta brasileira à pandemia do Covid-19, pois o Brasil é um dos poucos países que tem um sistema nacional, público, universal e gratuito de saúde que compreende desde a prevenção até a assistência médica: Por que o Brasil tem tido tanta dificuldade em combater o coronavírus? Confira o artigo!

"A resposta brasileira a pandemia do COVID-19 é uma das piores do mundo. Isso pode parecer surpreendente, pois o Brasil é um dos poucos países que tem um sistema nacional, público, universal e gratuito de saúde que compreende desde a prevenção até a assistência médica,em todos os níveis de cuidado: O Sistema Único de Saúde(SUS). Por que o Brasil tem tido tanta dificuldade em combater o coronavírus? A resposta a esta questão só pode ser compreendida através de uma compreensão mais detida do contexto político que elegeu e mantém o presidente Bolsonaro no poder.

Uma breve análise do filme “Democracia em Vertigem” pode nos ajudar a responder melhor esta pergunta.

Este é o título do filme brasileiro,dirigido por Petra Costa,concorreu ao Oscar 2020 na categoria Melhor Documentário. A diretora parte da eleição de Luis Inácio da Silva -Lula (2002), primeiro presidente do Brasil de origem operária,sucedido por Dilma Rousseff (2011) –ambos eleitos pelo Partido dos Trabalhadores(PT). Em seguida apresenta o processo que levou à deposição de Dilma (2016) - a primeira presidente mulher do Brasil, que foi sucedida por seu vice-presidente Milton Temer (2016/18) e se encerra com a eleição de Jair Bolsonaro,em 2018. Durante os 14 anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) foram implementadas diferentes políticas públicas de cunho social, que ampliar ama proteção social e a promoção de direitos, sobretudo, de milhões de brasileiros que viviam abaixo da linha da miséria. Apesar de seus inegáveis acertos estas políticas perderam parte de sua credibilidade e apoio social graças a suas inconsequências, indecisões e conciliações.

A jovem diretora,nascida em 1983,que cresceu junto com o processo de redemocratização do país, confessa em certo momento do filme: “Eu temo que a democracia tenha sido um sonho efêmero”.

A eleição e as medidas adotadas pelo governo Bolsonaro em relação à pandemia parecem estar acelerando o fim deste sonho. Ele venceu as eleições com 57 milhões de votos (55,13%), no segundo turno, derrotando Fernando Haddad (PT). Sua vitória encontra diferentes explicações convergentes. Por um lado o PT cometeu o erro crasso ao adiar o lançamento de seu candidato na vã ilusão que Lula poderia ser absolvido e concorreria nesta eleição. Além disso grande mídia desgastou,de forma sistemática desde 2002, a prática política do PT. Este partido no poder foi apresentado como uma organização corrupta e Lula como um criminoso.O governo de Rousseff foi responsabilizado pela crise econômica enfrentada desde 2013. Nas ruas foi se constituindo um movimento social conservador, que vestia as cores nacionais, e acusava o PT de ser comunista. Em sua campanha eleitoral de Bolsonaro,enfatizou que não pertencia à chamada “política tradicional”. Ele se apresentava como político novo que teria a coragem e força, para combater os corruptos. Na medida em que as pesquisas eleitorais indicavam seu crescimento, por um partido político pequeno e desconhecido,aliaram-se a Bolsonaro os interesses conservadores ligados às igrejas neo-pentecostais, aos latifundiários e aos produtores de armas: uma base ideológica heterogênea que carece ser compreendida. Em sua campanha, as políticas sociais eram vistas como vantagens indevidas. Para ele o Estado deveria se retirar do jogo econômico passando a exercer o papel de expectador da vida social. Construiu-se, ainda,em torno de Bolsonaro a imagem de um mito. Um mito construído sobre incontáveis notícias falsas (Fakenews), que se tornaram verdadeiras aos olhos de muitos brasileiros. Uma delas anunciava que o PT, se fosse vitorioso, iria a distribuir nas creches públicas mamadeiras com um bico em formato de pênis. No dia 1 de Janeiro de 2019 Bolsonaro tomou posse do cargo de Presidente a República do Brasil.

No início de 2020 o mundo foi surpreendido com a pandemia da coronavírus.

No Brasil, a relação do presidente Bolsonaro com a pandemia foi de profundo e explícito desprezo. Diversas vezes, durante os meses de março e abril de 2020, ele se manifestou publicamente desta forma. No dia 24 de março, por exemplo,ele chamou a pandemia de um “resfriadinho”. Naquela época o Brasil ainda não havia apresentado os sinais evidentes da doença. O presidente aproveitava e circulava pelas ruas cumprimentando as pessoas como se nada estivesse acontecendo. Ele foi,e continua sendo, contrário ao isolamento social e ao cerceamento da atividade econômica. Seu Ministro da Saúde dizia o contrário. Luiz Mandetta, como médico,dizia que sua prática profissional era guiada pela ciência.Temia que o sistema de Saúde não comportasse o número de doentes previstos. Diariamente, usando um colete com as iniciais do Sistema Único de Saúde (SUS), prestava contas à nação sobre o andamento da pandemia no país e as providências que estavam sendo tomadas.

Em abril os mortos por coronavírus começaram a aparecer. No dia 12 o país já registrava mais de mil mortos. Bolsonaro reagia dizendo: “O vírus tá indo embora”. No mesmo domingo, à noite, em entrevista, em cadeia nacional, ao programa de televisão com maior audiência do país, o Ministro da Saúde afirmou: “Eu espero uma fala única, uma fala unificada, porque isso leva para o brasileiro uma dubiedade. Ele não sabe se ele escuta o ministro da Saúde, se ele escuta o presidente, quem é que ele escuta”. Esta dubiedade se via nas ruas. Nos finais de semana as calçadas das praias e do comércio estavam repletas de pedestres. No dia 16 de abril Bolsonaro nomeou outro ministro da Saúde. No lugar de Mandetta entrou o médico oncologista Nelson Teich. No dia 28 de abril quando os índices ultrapassavam a casa dos 5 mil mortos reagia dizendo: “Daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagres”. Em tempo: O nome completo do presidente é Jair Messias Bolsonaro.

Bolsonaro era contrário ao isolamento apesar do número de mortos começar a crescer . Apesar disso ele continuava mantendo estáveis os índices de apoio da população. As pesquisas de opinião do DataFolha, durante os meses de março e abril,apresentaram os seguintes resultados:


AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DE BOLSONARO EM RELAÇÃO AO CORONAVÍRUS

Período                                       Ótimo/Bom       Regular     Ruim/Péssimo

Entre 18 e 20 de Março de 2020     35                    26            33
Entre 1 e 04 de Abril de 2020         33                    25            39
Em 17 de Abril de 2020                 36                    23            38
Em 27 de Abril de 2020                 27                    25            45


Não se deve subestimar o descrédito que o Presidente da República passou a ter neste período: afinal, em dois meses, ele perdeu 8 pontos na pesquisa, e isso não é pouco. Entretanto, esta queda não nos parece compatível com seu posicionamento sobre a prevenção da pandemia e as ameaças sistemáticas que fez em relação à Democracia, especialmente os poderes legislativo e judiciário.

Políticos de diferentes partidos temiam que o presidente usasse o agravamento da epidemia como pretexto para tentar concentrar poderes, seguindo o húngaro Viktor Orbán. Cabe ressaltar que a emergência de Bolsonaro integra um cenário internacional de recrudescimento de partidos e movimentos neo nazistas e autoritários em diferentes regiões do planeta.

No dia 31 de março, dia do aniversário do Golpe Militar de 1964, Bolsonaro participou de manifestações a favor do fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e disse que seria “relativamente fácil” decretar “Estado de Sítio”, mas informou que a ideia “ainda” não estava em seus planos.

Nesta mesma época circulava nas redes sociais uma petição pública que afirmava que o “Governo brilhante de Jair Bolsonaro está sendo travado por esse órgão corrupto”.Esta petição pedia que o usuário assinasse a favor “fechamento Congresso”. No mesmo dia alguns defensores de Bolsonaro chegaram a realizar uma manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) onde clamavam que os juízes “deixassem o mito trabalhar” -numa alusão aos obstáculos jurídicos que muitas vezes estavam sendo impostos ao presidente pelo STF. Seu ‘Gabinete do Ódio’ está retro fitando o macartismo que aponta suas armas para diferentes alvos que incluem ex-aliados, juízes e parlamentares de diferentes matizes.

Até o dia 27 de Abril haviam sido protocolados na Câmara Federal 25 pedidos de impeachment. Estes pedidos assumiram maior vulto depois que Sergio Moro renunciou ao cargo de Ministro da Justiça devido à possível intervenção de Bolsonaro nas investigações federais sobre os laços de seus filhos com grupos de milícias e assassinatos políticos.

No dia 27 de Abril nova pesquisa do “DataFolha” fez a seguinte pergunta: “Na sua opinião,o Congresso Nacional deveria ou não abrir um processo de impeachment, isto é, um processo para afastar o Presidente Jair Bolsonaro?” 45% responderam sim deveria; e 48% disseram não deveria. Assim, Bolsonaro continuava a ter altos índices de aprovação, e dividia o país.

Como explicar este fenômeno? Algumas pistas nos vêm à cabeça.

Por um lado existe uma matriz explicativa associada à estrutura da sociedade brasileira construída sobre os pilares dos 400 anos de trabalho escravo, da brutalidade de um homem contra outro, da força física, do castigo, da exclusão social. A maneira de falar e agir de Bolsonaro encarna com maestria este ethus. Ele se assemelha a um Senhor de Escravos. A quantidade de palavrões que utilizou na reunião ministerial do dia 22 de Abril e a maneira agressiva com que se refere a seus colegas e à sociedade sinalizam que suas palavras e seus e valores são próprios de um homem que não tem nas leis um limite para suas ações. Age como um Senhor de Escravo. Seus ministros, o seguem como Capitães do Mato, submissos às ordens de seu senhor, querendo ser ainda mais cruéis que ele. A nosso ver, muitos brasileiros, pobres ou ricos, brancos ou negros, homens ou mulheres, se identificam com estes valores e ideias e reproduzem estas palavras e sua forma de pronunciá-las. No dia seguinte da divulgação da reunião ministerial do dia 22 de abril foram realizadas manifestações de apoio ao Presidente em diferentes capitais do Brasil.

Do ponto de vista conjuntural vivemos no mundo, e não apenas no Brasil, uma crise do modelo democrático representativo construído desde a Revolução Francesa. O modelo democrático de gestão da coisa pública está perdendo diariamente sua representatividade, legitimidade e razão de ser e existir. O político e sua prática profissional estão visceralmente associadas à corrupção para benefício próprio. Neste contexto o cidadão deixa de ir às urnas. Esta situação talvez explique por que mais de 31 milhões de brasileiros (21%) não foram às urnas em 2018. No mesmo pleito mais de 10 milhões votaram em Branco ou anularam seu voto no segundo turno. Neste contexto o eleitor se apega a líderes visionários, que aparecem na última hora e se propõe a combater este ambiente contaminado pela politicagem. Bolsonaro é um ótimo exemplo neste sentido.Seus seguidores insistem em afirmar que o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal não deixam “o homem trabalhar”. Na reunião ministerial do dia 22 de abril ele anunciou que queria “todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”.

Pesquisa da DataFolha publicada no dia 28 de maio registra que os índices de aceitação do Governo Bolsonaro se mantiveram estáveis: 33%continuam achando seu governo Ótimo, 22% regular. Somados, estes índices se aproximam ao percentual que o elegeu no final de 2018(55%). Outra pesquisa do mesmo instituto, publicada no dia 30 de Maio,indica que a possibilidade de abertura de um processo de impeachment de Bolsonaro pelo Congresso Nacional tem o apoio de 46%, índice similar ao registrado no final de abril (45%). Uma parcela de 50%, porém, é contrária à abertura de um processo para afastar o presidente -em abril eram 48%. Os demais 4% não opinaram a respeito, índice inferior ao da última pesquisa (7%).

Os brasileiros vítimas do coronavírus e a postura agressiva do Presidente em relação às instâncias democráticas parecem não influir na posição que a muitos brasileiros têm sobre o Presidente da República.

Este breve ensaio não pretende apontar caminhos alternativos para a superação deste problema. Seu intuito foi sinalizar algumas de suas origens.Conhecê-las pode nos ajudar a construir esses caminhos. O que pretendemos destacar é a A Democracia no Brasil (ainda) está em vertigem.”

André Pereira Neto – Pesquisador -Fundação Oswaldo Cruz
Matthew B. Flynn – Professor Associado -GeorgiaSouthern University
Letícia Barbosa – Doutoranda ENSP-Fundação Oswaldo Cruz


 


Fonte: Artigo
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