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Entre a angústia e a força: 'Radis' de junho fala das histórias de trabalhadores do SUS perante a pandemia da Covid-19

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Publicado em:16/06/2020

Entre a angústia e a força: 'Radis' de junho fala das histórias de trabalhadores do SUS perante a pandemia da Covid-19A revista Radis de junho traz relatos de quem está na linha de frente do Sistema Único de saúde (SUS) no enfrentamento à Covid-19. Na reportagem de Luiz Felipe Stevanim, o médico Pedro Campana disse que “a grande angústia é a gente não saber quando isso vai diminuir ou acabar. Como infectologista, sou bem cético. Acredito que só se resolverá quando a gente tiver uma vacina eficaz”. O enfermeiro Cleilton Paz  ressalta que “muito aprendizado tem se dado em meio à luta, muita solidariedade também, sem falar da enorme vontade de vencermos juntos”. Já a agente comunitária de saúde Ana Iara de Souza acredita no potencial transformador da educação em saúde, mesmo com as dificuldades agravadas pela doença.


O médico infectologista da Santa Casa de São Paulo, Pedro Campana

São 8 horas da manhã de um feriado de 1º de maio, dia do trabalhador. O médico infectologista da Santa Casa de São Paulo, Pedro Campana, acaba de chegar a mais um plantão na enfermaria de covid-19. A primeira tarefa é recordar, com residentes e demais membros da equipe, o passo a passo da paramentação dos equipamentos de proteção individual (EPI) — luvas, capote, máscara cirúrgica e óculos. Paramentar-se é verbo conjugado diariamente por quem está na linha de frente do enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. O rito meticuloso é essencial para evitar contaminações e um dos requisitos, segundo Pedro, para respeitar o primeiro princípio de Hipócrates, grego considerado pai da Medicina e inspiração para o juramento solene de médicos e médicas: “não fazer o mal”. “A gente não pode prestar assistência enquanto não estiver 100% protegido”, pontua. “Fazer o mal significa entrar desprotegido no quarto ou acreditar em evidências sem embasamento científico”.

Esse é o início de todas as manhãs de Pedro desde que ele passou a chefiar uma enfermaria de covid-19. Acostumado a atender pacientes com HIV e hepatites virais, o infectologista formado pelo Instituto Emílio Ribas teve a rotina revirada pela chegada do novo coronavírus. O telefone não para de tocar. “A gente recebe ligação desde o diretor do hospital até o seu amigo de infância, que não fala com você há vinte anos e acha que pode estar com covid”, conta à Radis no fim de tarde daquele mesmo dia. Depois de se paramentar, ele inicia o percurso pela enfermaria; naquele feriado do dia do trabalhador, avaliou 27 pacientes com suspeita ou con-firmados com covid-19 e pediu vaga na UTI para um deles que “evoluiu com bastante gravidade”. “É basicamente um plantão 24 horas por dia. Há um mês e meio”, afirma. Trabalhar com a covid-19 é aprender a lidar com incertezas. “A grande angústia é a gente não saber quando isso vai diminuir ou acabar.

Como infectologista, sou bem cético. Acredito que só se resolverá quando a gente tiver uma vacina eficaz”, pontua. Na rotina de uma enfermaria do novo coronavírus, que vai do cuidado ao paciente à elaboração de projetos de pesquisa que ajudarão a criar novos protocolos de tratamento, pensar no futuro é uma armadilha a ser evitada. “Lidar com as incertezas do tempo gera angústias, porque estamos submetidos a um trabalho muito cansativo diariamente e a gente só aguenta até um certo tempo, né?”, acentua. O foco de Pedro é o dia de hoje. Dia após dia. “Quando eu começo a projetar o cenário daqui a algum tempo, dá muita angústia e ela pode gerar paralisação”, aponta. Mesmo quando chega em casa, Pedro não consegue se desligar da realidade que emergiu com a pandemia.

A primeira coisa que faz ao entrar em seu apartamento é ir direto para o chuveiro. Depois brinca com os dois cachorros, cozinha e estuda por cerca de duas horas sobre o que foi publicado de novidade na ciência. “Estou lidando com uma doença que não conheço, e que ninguém conhece. Além de atender, precisamos compreender cientificamente o que está ocorrendo com esses doentes”, ressalta. O cho-que vem quando, em casa, ele se depara com declarações de autoridades que negam os impactos da pandemia e propõem o fim das medidas de isolamento social. “Depois de 12 horas de trabalho, com a cara marcada de estar com máscara o dia inteiro, você chegar em casa e ver esse tipo de declaração, isso dói. Eu moro sozinho, não posso encontrar ninguém para desabafar”, narra.

Em depoimento que escreveu no início de abril nas redes sociais, o médico afirma que “o duro dessa pandemia é ver pessoas perdendo mais de um familiar ao mesmo tempo”. “Tenho chorado quase todos os dias”, afirma à Radis. No hospital, ele cumpre o papel de médico — “segura a onda”, acolhe, orienta. “A gente passa o acolhimento de uma maneira consciente, mas é claro que a gente se abala”, diz. Todos os dias, depois de intubar pacientes — alguns mais jovens que ele —, pedir vaga na UTI, conversar com familiares, é preciso respirar fundo e seguir adiante. Uma das dificuldades é lidar com o que ele tem chamado de “abortamento do luto”, porque as pessoas não podem velar seus mortos. “Por enquanto estamos jogando água e sabão nesses machucados psíquicos, mas não estão fechando de fato, porque não dá tempo. Acho que a gente só vai entender a dimensão disso quando tudo passar”, pontua.

Para diminuir a distância entre familiares e pacientes internados, a equipe da Santa Casa encontra saídas como emprestar um aparelho móvel para as pessoas se comunicarem. “Eu me coloco sempre na posição dos familiares ou do paciente. Já fiquei doente e precisei de internação, sei como é importante a visita dos seus entes queridos e dos seus amigos”, reforça. Pedro conta que a equipe não consegue dar alta aos pacientes para casa, e sim encaminha para terminarem a recuperação nos hospitais de campanha, para liberar novas vagas para quem aguarda atendimento. “O pronto-socorro está superlotado. O que a gente não tem é leitos para suprir toda a demanda”, ressalta. Segundo ele, não há falta de testes e de material para intubação no hospital em que trabalha, mas ele enfatiza que a realidade dos hospitais-escola de São Paulo, como a Santa Casa, é diferente das unidades que ficam na periferia. “Nesses hospitais, é onde o gargalo está. É negada uma média de 80 pedidos por dia por falta de leitos. São pessoas que estão morrendo na periferia”, relata.

Na saída do plantão daquele dia, depois de se desparamentar, Pedro envia uma mensagem pelo celular; nossa entrevista estava marcada para as 16h. “Podemos falar às 17h? Estou saindo do hospital agora. Preciso comer algo”, escreve. Em meia hora de conversa, por telefone, no feriado do dia do trabalhador, ele afirmou que a entrevista estava sendo para ele como conversar com um amigo. “Nesse momento a gente não pode conversar. É muita solidão”, descreve. Como tem feito nas últimas semanas, ele segue adiante. “A chave dessa pandemia é a gente ter calma e clareza do que está fazendo”, conclui.


O enfermeiro do Hospital Regional Tarcísio Maia (Mossoró/RN), Cleilton Paz

Ao entrar em casa, o calçado fica na garagem. Mesmo já tendo tomado banho no hospital, o enfermeiro Cleilton Paz vai direto ao banheiro para uma nova higiene. A mochila com os objetos que usa no trabalho ficou no carro. Em casa, ele separou talheres e copo, pois os pais e avós já são idosos e com problemas de saúde. Esses são cuidados que se repetem a cada saída de plantão, assim como persiste a sensação de ter sido contaminado e estar transmitindo o vírus a quem se aproxima. “Tem sido dias complicados por conta desse medo que não é somente por causa da minha saúde, mas da saúde de todos que me circundam”, conta.

Oriundo de Icapuí, no Ceará, Cleilton trabalha no Hospital Regional Tarcísio Maia, em Mossoró (RN), que se tornou referência para o novo coronavírus na região oeste potiguar. As marcas no rosto deixadas pela máscara N95 ao fim de mais um plantão são apenas algumas das cicatrizes carregadas por quem está na linha de frente do enfrentamento ao novo coronavírus; existem aquelas que permanecem na alma, descreve o enfermeiro. A principal angústia é o medo de contaminar os entes queridos, mesmo com todas as precauções tomadas. O cotidiano de Cleilton, que é também doutorando em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC), foi transformado quando o hospital em que trabalha — “de maneira corajosa”, como ele relata — teve de se adequar para receber as pessoas adoecidas pela covid-19. “Ficamos aterrorizados no início: como seria esse fluxo? Como separaríamos esses pacientes? Como treinaríamos nossas equipes em plena pandemia em curso?”, narra.

Desde então, tudo mudou — “os cuidados prestados, as medicações utilizadas, a relação com os acompanhantes, a nossa relação em equipe, no uso do refeitório, do posto de enfermagem, enfim, uma bola de neve de mudanças”. O enfermeiro que atuava na Clínica Cirúrgica passou a cuidar de pacientes com suspeita ou confirmação de covid-19. Até 29 de maio, em Mossoró, eram 986 casos confirmados e 48 mortes registradas. Ao se adaptar e aprender a lidar com a doença, no momento em que crescem rapidamente o número de casos, Cleilton inventou estratégias para se proteger e dar continuidade à missão de cuidar. Ele conta que há uma mistura de sentimentos. “Por um lado, indignação com as questões políticas do país, com a inoperância de muitos gestores brasileiros, os descasos com os trabalhadores da saúde pública, de modo especial com os que têm seus corpos diretamente expostos”, relata. De outro, a sensação de que não estão sozinhos. “Muito aprendizado tem se dado em meio à luta, muita solidariedade também, sem falar da enorme vontade de vencermos juntos”, ressalta.

O medo de se contaminar e contaminar os familiares é agravado pela falta de diagnóstico adequado. Por isso, Cleilton defende que ações de vigilância à saúde dos trabalhadores do SUS deveriam ter sido priorizadas “desde o primeiro minuto da pandemia”, o que daria “uma certa dose de segurança e encorajamento para seguir atuando com firmeza”. “Mas, infelizmente, estamos longe disso. É bom lembrar que não é de hoje que estamos tão expostos, mas tudo se tornou muito dramático com a pandemia”, pontua. “É fácil dizer assim: deveriam todos estar paramentados independente do diagnóstico. Mas, temos condições para isso? A nossa realidade é de racionamento de EPIs”, afirma.

O enfermeiro enfatiza que as iniquidades — “que sempre foram feridas profundas nunca curadas do nosso sistema de saúde” — são gritantes agora, ainda que sejam “mascaradas pela ideia de que o vírus não escolhe suas vítimas e que estamos todos no mesmo barco, o que não é verdade”. “O discurso dominante parte sempre da perspectiva do vírus, quando deveríamos partir da perspectiva das pessoas, de suas exposições, riscos de adoecimento e acesso a tratamentos e cuidados”, avalia. Ele cita o exemplo dos colegas maqueiros e que trabalham na limpeza, a maioria deles terceirizados e que sofrem com a precarização. “Quem está olhando para os mais vulneráveis? É uma pergunta que muito me dói”, desabafa. Quem está na linha de frente como Cleilton percebe que enfrentar a covid-19 é uma tarefa bastante complexa, como ele afirma, e depende das condições sociais e da inserção de classe, raça, etnia, gênero e sexualidade.

A agente comunitária de saúde de Nova Iguaçu/RJ, Ana Iara de Souza

Pelas ruas do bairro da Prata, em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, Ana Iara de Souza segue seu percurso de visitas domiciliares, mesmo em tempos do novo coronavírus. Prancheta na mão e máscara no rosto, a agente comunitária de saúde anota casos de pacientes que relatam sintomas semelhantes ao da covid-19 e repassa para a equipe de Saúde da Família. Medo de se contaminar? Existe, mas ela toma as medidas necessárias para se prevenir.

Quando houve a confirmação de transmissão comunitária no estado do Rio de Janeiro, em março, Ana relata que os equipamentos de proteção individual (EPIs) não chegavam em quantidade e qualidade suficientes, principalmente para os agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de combate a endemias (ACE). “A princípio eram poucos EPIs, não dava conta, mas lá estávamos nós na linha de frente. Esse fato gerou medo, angústia e muita insegurança dos profissionais”, conta. À medida que o tempo passou, Ana afirma que insumos adequados foram chegando e os profissionais aprenderam a lidar com a nova rotina. “As visitas domiciliares foram a parte mais afetada. Realizá-las sem proximidade e sem acesso ao interior dos domicílios é um distanciamento do vínculo”, aponta.

No contexto da pandemia, a prioridade tem sido atender pessoas com condições crônicas e realizar a vacinação da gripe em usuários cadastrados e acamados. Ela ressalta que uma das dificuldades é lidar com este momento “em que o ser humano carece de estreitamento nas relações”, ao mesmo tempo em que o vírus impede um contato mais próximo e acolhedor. “Existem dias que me sinto angustiada pela situação do próximo, seja pela perda de um familiar, internação e até falta de alimentos e coisas elementares. São muitos relatos que chegam até mim”, afirma. Ela também ouve nas ruas histórias reais e queixas que revelam descaso com a doença e dificuldades para adotar medidas de higiene. “Algumas pessoas não querem relatar sequer que têm sintoma gripal, acredito que seja medo ou se sentem excluídos. Outros estão com vários sintomas, mas por vezes ignoram as orientações, pois alegam que não terão atendimento adequado”, descreve.

Ana também narra que, no percurso das visitas domiciliares, escuta frases como “Esse vírus é desculpa para ganhar dinheiro público” e “Não existem mais doenças além de covid”, fomentadas por notícias falsas e discursos de negacionismo da pandemia. Para a ACS, as pessoas têm dificuldades em compreender como seu comportamento individual pode afetar o coletivo. “Um exemplo típico é que querem se aproximar sem máscara e têm dificuldade em adotar as orientações de higienização”, explica.

Agente comunitária há 10 anos, e atualmente estudante do curso técnico em ACS da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Ana acredita no potencial transformador da educação em saúde, mesmo com as dificuldades agravadas pela covid-19. “O cuidar precisa ser consciente com ações produtivas que farão sentido na vida de quem o recebe”, pondera. Por isso, ela escuta, acolhe, orienta. Segundo ela, no contexto da pandemia, os ACS são essenciais para a coleta de dados sobre casos suspeitos e para garantir a continuidade das visitas domiciliares. Sobre o futuro, ela evita cogitar. “Tento não pensar muito no que está por vir. Isso gera ansiedade e pode acometer minha saúde emocional”, reflete. Mesmo reconhecendo que “o sistema de saúde parece estar na UTI”, Ana acredita na força de seu trabalho. “Tudo vai passar. É necessário ajudar uns aos outros como forma de nos manter vivos e com a mente sã. Esse tem sido o meu lema”, revela.


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Fonte: Radis junho
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