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Entrevista: Médica relata impactos da Covid-19 no cotidiano de um serviço de atenção básica

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Publicado em:30/04/2020

Entrevista: Médica relata impactos da Covid-19 no cotidiano de um serviço de atenção básica“As pessoas estão se sentindo muito órfãs. A sensação de que elas vão dormir e acordar no dia seguinte, ir ao trabalho e ver seus filhos crescerem está muito abalada”, narra Marina Guimarães, médica da saúde da família, que trabalha no Centro de Saúde do Conjunto Paulo VI, na periferia de Belo Horizonte, desde setembro de 2019.  A doença também traz reflexos ao emocional dos trabalhadores da saúde. “A sensação de impotência e vulnerabilidade é muito grande. Não tem o que eu faça. É diferente de um surto de dengue, que é muito material: eu vou lá, oriento as pessoas e me protejo. Só que com esse vírus, não sabemos”, explica a médica.

 

Ela conta que sua equipe de Estratégia de Saúde da Família abrange uma das comunidades de maior vulnerabilidade da capital mineira. São moradores oriundos de regiões pobres do norte de Minas e de outros estados do Nordeste — por conta disso, há muita incidência de pacientes com sequelas de doenças tropicais, como doença de Chagas. Boa parte das famílias depende do Bolsa Família para compor a renda. “As pessoas residem em barracos e casas em área de invasão e há um grande índice de migração interna (as pessoas trocam um barracão pior por um melhor dentro do próprio território) e externa (com o fluxo de gente que chega e sai)”, aponta.


Segundo a médica, a maior parte das pessoas está desempregada ou inserida em trabalhos informais, ou ainda em empregos de carteira assinada com renda de um salário mínimo. “Essas pessoas não sabem para onde correr, estão acionando muito o serviço de saúde porque a assistência social está fechada. Elas estão desorientadas sobre o que vão fazer”, pontua.

 

Qual seu olhar como médica da saúde da família sobre a pandemia do coronavírus?


Desde setembro de 2019, atuo como médica em uma equipe da ESF em um centro de saúde da periferia de Belo Horizonte [no Conjunto Paulo VI]. Aqui, abrangemos uma das comunidades de maior vulnerabilidade da cidade. Em específico, meu território é o mais frágil. Boa parte das famílias com crianças dependem do Bolsa Família para compor a renda familiar. As pessoas residem em barracos e casas em área de invasão e há um grande índice de migração interna (as pessoas trocam um barracão pior por um melhor dentro do próprio território) e externa (o fluxo de gente que chega e gente que sai). Há precariedade no saneamento básico e na oferta de outros serviços essenciais, como energia elétrica. As moradias são pequenas, com poucos cômodos e contam com muitos membros dividindo o mesmo espaço.


Grande parte dos moradores são oriundos de regiões pobres do norte de Minas e de outros estados do Nordeste, principalmente sul da Bahia. A maior parte consiste de pessoas desempregadas, inseridas no trabalho informal ou em empregos de carteira assinada com renda de um salário mínimo. São autônomos de baixa escolaridade, em profissões como ajudante de pedreiro, diarista e ambulante.  Quanto à faixa etária, a maior parte é de adultos em idade economicamente ativa e de crianças e adolescentes; temos apenas 8% de idosos no nosso território.


Quando a Covid-19 chegou em Belo Horizonte?


Desde que a cidade de Belo Horizonte confirmou seu primeiro caso de infecção pela covid-19 e os órgãos de saúde começaram a divulgar notas, informativos e normativas, o tema da pandemia começou a orbitar o nosso serviço. Nossa principal preocupação era: como vamos absorver esta demanda e preservar a saúde de funcionários e usuários? Foi nisso que focamos de imediato. Tivemos que nos antecipar porque, muito precocemente, recebemos um usuário com sintomas de síndrome gripal que teve contato com pessoa doente recém-chegada da Itália. Era potencialmente uma infecção por covid-19.


A infecção das classes sociais que frequentam aeroportos e viagens internacionais bateu à porta do Conjunto Paulo VI. Muito rapidamente novos casos suspeitos foram aparecendo aqui e em toda a cidade e, nesse caos de acontecimentos, a infecção por covid-19 foi declarada infecção comunitária. Nós, profissionais técnicos, começamos a ser bombardeados por protocolos, guias e fluxogramas diariamente.


Como ficou o atendimento dos outros serviços mediante à chegada dos casos de coronavírus?

Antes que a Secretaria de Saúde lançasse orientações, questionamos a legitimidade de manter todo o cardápio de serviços ofertados, principalmente no que se referia à demanda programada. Seria viável, legítimo ou ético fazer circular no serviço de saúde pessoas saudáveis sendo que aqui se atendiam suspeitas de corona? Quanto à demanda programada, manter pessoas do grupo de risco frequentando o posto era melhor ou pior?


A sensação é de que o serviço demora para responder. Nós mesmos nos antecipamos, iniciando protocolos próprios, depois readaptando para o que era orientado verticalmente da Secretaria de Saúde para nós. Todas as consultas eletivas foram canceladas; foram cancelados também: curativo, coleta de exames, atividades coletivas etc. Mantido apenas: demanda espontânea, com divisão entre o que seria sintomático respiratório e outras queixas, vacina, farmácia, sala de medicação e atendimento administrativo.

 

Como o fluxo foi organizado para garantir a segurança dos pacientes e profissionais?

Organizamos o fluxo colocando um profissional paramentado na entrada da unidade. Marcamos o chão com fitas distanciadas para as pessoas manterem segurança entre si. Essa profissional fazia a primeira abordagem, oferecendo álcool em gel e máscaras (estas apenas para os casos respiratórios); a seguir encaminhando a pessoa para onde era pertinente. Aqueles que estavam sintomáticos com queixas respiratórias eram atendidos exclusivamente em um anexo ao prédio, local onde a Odontologia trabalha [Marina relata que a Odontologia interrompeu suas atividades, o que liberou o espaço para atender as novas demandas relacionadas ao coronavírus]. Os sintomáticos respiratórios não entram em contato com outros usuários, nem circulam no restante do prédio.

 

O serviço tem equipamentos (EPIs) adequados?

Pairaram, e ainda pairam, várias dúvidas: se cumpríamos o mínimo de cuidados com nossa segurança? Tínhamos os EPIs adequados? A equipe de enfermagem, principalmente os técnicos, estava devidamente protegida e sabia manusear estes EPIs? E as funcionárias da limpeza?


Considero que temos o básico para trabalhar dignamente, mas precisamos fazer um trabalho de controle rigoroso na liberação de material. Organizamos individualmente a liberação de insumo dia a dia, com contagem do que temos. Trabalhamos com material sendo reposto a conta gotas e à conta. Atualmente, não temos máscaras para oferecer aos usuários com sintomas respiratórios.

 

A angústia está presente perante à vulnerabilidade da pandemia?

A sensação de vulnerabilidade e impotência é muito grande. Não tem o que eu faça. É diferente de um surto de dengue. O surto de dengue para mim é material: eu vou lá, oriento as pessoas, viramos os pratinhos de vaso, uso repelente, eu me protejo. Só que esse vírus, não sabemos.


As pessoas estão se sentindo muito órfãs. A sensação de que elas vão dormir e acordar, ir todos os dias para o trabalho, ver os filhos crescerem, isso tudo está sendo muito abalado.


A gente não pode nem dar um abraço no seu colega que chega de cabeça baixa. Eu não me lembro a última vez que ganhei um abraço. A gente evita. Eu sou uma pessoa muito afetuosa, sempre chego no trabalho abraçando as pessoas.


Como está acontecendo a quarentena na periferia?

Para as pessoas nas periferias, a casa não é só a casa delas. A calçada faz parte da casa, assim como o quintal compartilhado. Há uma interseção do que é a casa com a rua e com os vizinhos. Além do fato de a moradia dessas pessoas ser precária, com poucos cômodos. Esse espaço coletivo de compartilhamento é muito importante. Quando eu saio do trabalho de tarde, principalmente porque muitos não estão trabalhando, está todo mundo na porta de casa conversando. As pessoas colocam cadeiras na calçada. Eu imagino que isso está acontecendo não só por onde eu passo. Para eles, isso é o isolamento: isso é estar em casa, tem uma outra percepção do que é etiqueta de higiene, mas tem uma questão relacionada ao que é território do lar mesmo.


E os cuidados e apoio com quem está na linha de frente, os profissionais de saúde?


Temos feito reuniões semanais com a psicóloga do serviço. Foi criado este espaço terapêutico para trabalhar as ansiedades. Colegas oferecem sessões de Lian Kong nos finais das tardes. Expressamos principalmente sensação de vulnerabilidade, frustração e impotência. Nossas angústias geram solidão, insônia, sensação de que não vai acabar. Emocionalmente demanda mais. Eu não tenho medo de ir trabalhar. Eu tenho medo de estar assintomática passando para as pessoas. No momento, eu estou sem carro, então eu tenho usado muito mais transporte público. Depois que começaram as restrições, eu tenho até ido de Uber, estou gastando uma nota com isso, para evitar ficar transitando no metrô, nos pontos de ônibus. Aí tem esse medo mesmo de quem está ao redor convivendo com a gente. Essa questão do cansaço vem da gente estar esperando vir algo que não chega de fato: a gente sabe que está rolando, atende alguns pacientes, mas ficamos na expectativa. Será que a gente vai viver aquele cenário que vimos na Europa aqui no Conjunto Paulo VI? Como vai ser se isso chegar aqui?

 

Para ler a matéria na íntegra, clique aqui.


Foto: Arquivo pessoal.


Fonte: Entrevista Radis
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