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'Existe o dever de falar a verdade no contexto da Covid-19?', questiona artigo

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Publicado em:24/04/2020
'Existe o dever de falar a verdade no contexto da Covid-19?', questiona artigoO artigo Existe o dever de falar a verdade no contexto da Covid-19?, publicado pelo GT de Bioética da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), aborda a questão imperativa de ser verdadeiro em um cenário de emergência em Saúde Pública. No texto, os pesquisadores alertaram para o fato de que “vivemos mais um momento em que as verdades científicas são questionadas por dúvidas razoáveis que movimentam o método científico, como seria natural, mas não por opiniões, que são determinadas por visões ideológicas que desprezam argumentos científicos. [E] ideias fantasiosas ou ficcionais tomam o lugar do respeito às verdades científicas”.  
 
No artigo, os pesquisadores ressaltam que “o Brasil é um país com uma história notadamente autoritária. A baixa consciência política da população em geral é reforçada por uma história de ações violentas do Estado contra aqueles que se envolvem na organização popular, independente dos governos”. Os autores apontaram que, tradicionalmente, os governos são pouco transparentes ao lidarem com questões que afligem a população, e os meios de comunicação tradicionais, muitas vezes, apresentam apenas uma versão dos fatos. “Mais do que nunca, cabe afirmar o direito de as populações serem adequadamente informadas e esclarecidas sobre assuntos que são de seu interesse direto. De acordo com essa lógica, as informações sobre a pandemia deveriam ser baseadas em evidências e submetidas à permanente avaliação de especialistas e autoridades, sejam políticas ou técnicas”, defendem os autores no texto. 
 
Eles sustentam a ideia de que o pensamento crítico e o respeito à ciência devem ser centrais nas decisões de um Estado para a proteção de suas populações contra os impactos nocivos de uma epidemia. Portanto, os autores asseguram que as implicações morais da doença, causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) – Covid-19, tendo como contexto a realidade brasileira, são, para eles, um convite à reflexão.
 
Além de Rego – que escreveu a primeira versão do texto e a apresentou para ser debatida com os demais autores até chegarem conjuntamente à versão final -, o artigo é assinado por Marisa Palácios, Pablo Dias Fortes, Fermin Roland Schramm, Alexandre Costa, Luciana Brito, Luna Borges, Beatriz Thomé, Luciana Narciso, Sônia Beatriz dos Santos, Gustavo Matta, Cláudio Cordovil e Andreia Patrícia Gomes.
 
Leia, abaixo, o artigo na íntegra:
 
Existe o dever de falar a verdade no contexto da Covid-19?
 
*Sergio Rego, Marisa Palácios, Pablo Dias Fortes, Fermin Roland Schramm, Alexandre Costa, Luciana Brito, Luna Borges, Beatriz Thomé, Luciana Narciso, Sônia Beatriz dos Santos, Gustavo Matta, Claudio Cordovil e Andreia Patrícia Gomes
 
Em contextos de emergência em saúde pública, o dever de falar a verdade torna-se imperativo. A verdade aqui compreendida como as respostas, mesmo que transitórias, a perguntas que se utilizam de métodos científico confiáveis. Assim, entendemos que o confronto ao pensamento crítico e o respeito à ciência devem ser considerados como centrais nas decisões de um Estado para a proteção das populações contra os impactos nocivos de uma epidemia. A doença causada pelo novo coronavírus (SARS-Cov-2) – Covid-19 foi declarada como Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 30 de janeiro 2020 e como pandemia em 11 de março de 2020. Suas implicações morais tendo como contexto a realidade brasileira é, para nós, um convite à reflexão.
De uma maneira geral todas as estratégias enunciadas por autoridades sobre condições a serem observadas no contexto de uma epidemia incluem, dentre outros, dois pontos como essenciais para seu sucesso: confiabilidade e o engajamento público. É fundamental que a população atingida confie nas autoridades responsáveis pela formulação da resposta institucional aos desafios que o contexto de uma epidemia impõe para a população. Para isso, uma estratégia de comunicação entre as autoridades e a população atingida deve ser definida de forma a garantir transparência no repasse das informações. Nada de relevante, e que pretenda ser efetivo, poderá deixar de ser comunicado à população afetada. Essas estratégias se referem não apenas aos progressos do surto (número de contágios, casos graves, curas e óbitos), medidas de proteção baseadas nas evidências científicas, ou o combate à desinformação e às notícias falsas, mas também sobre diversos pontos que dizem respeito à manutenção da sociedade em funcionamento apesar de todas as limitações que a enfermidade determina. Assim, deve ser compromisso das autoridades políticas e científicas o combate contra toda e qualquer informação falsa que seja disseminada. Uma das características mais importantes da comunicação entre as ciências, a confiabilidade, é aplicada para além da comunidade científica, e cria um imperativo a governantes: há um dever de falar a verdade.
Igualmente, a população atingida pela epidemia deve ser estimulada a contribuir tanto para a formulação de estratégias de enfrentamento como na implementação destas. Esta população será tão mais capaz de se engajar na resposta à epidemia quanto mais organizada ela for, seja em associações de moradores de comunidades ou bairros, associações em torno de preocupações ou objetivos comuns (aí incluídas as associações de pacientes) ou mesmo sindicatos e outras organizações em geral. A partir de um engajamento comunitário, as ações governamentais poderão ser capazes de obter uma sinergia entre os governos e a população. A partir desse enunciado geral, pretendemos agora considerar a realidade brasileira no contexto da pandemia Covid-19.
O Brasil é um país com uma história notadamente autoritária, onde a população é vista tanto como incapaz quanto como uma ameaça aos projetos de poder de seus governantes. A baixa consciência política da população em geral é reforçada por uma história de ações violentas do Estado contra aqueles que se envolvem na organização popular, independente dos governos. Nossos governos tradicionalmente são pouco transparentes ao lidar com a população sobre problemas que a afligem. Para exemplificarmos, basta nos recordarmos da epidemia por meningite em 1974, durante a última ditadura militar ou a decisão de reconhecer as patentes farmacêuticas tomada no governo FHC em resposta às pressões da indústria farmacêutica multinacional. Nossos meios de comunicação social tradicionais (televisivos, radiofônicos e impressos) frequentemente apresentam apenas uma versão dos fatos e várias soluções para o problema, mas sempre dentro do mesmo campo ideológico, sem apresentar múltiplas posições confiáveis e espaço para um debate democrático.
O enquadramento das informações transmitidas revela interesses e são uma tradição neste campo, apesar de admitirem apresentar pequenas variações de análises quase que para legitimarem-se como veículos supostamente democráticos ou “sem o rabo preso”, como dizia a propaganda de um dos tradicionais conglomerados de comunicação. De uma maneira geral o enquadramento que se dá aos acontecimentos do cotidiano é representativo dos interesses dos segmentos no topo da pirâmide social.
Nosso contexto político atual também tem sido pouco favorável à confiança e ao envolvimento públicos. De fato, embora os maiores conglomerados de comunicação social brasileiros estejam bastante engajados na difusão de informações apropriadas sobre o enfrentamento à pandemia, assumindo assim um protagonismo fundamental na difusão e reflexão amparada por informações tecnicamente apropriadas, algumas autoridades governamentais têm cumprido um papel menos elogiável. Particularmente o comportamento errático da presidência da República, seja em seus pronunciamentos, seja em ações práticas de visitação a lugares públicos, tem contribuído para a diversidade de posturas no enfrentamento da crise. Ao enfatizar que a pandemia COVID-19 seria apenas “gripezinha”, a autoridade do presidente estimula diretamente pessoas a considerarem as medidas de quarentena ou isolamento físico como exageradas e abusivas.  Assim, vivemos mais um momento em que as verdades científicas são questionadas não pela própria ciência, como seria natural, mas por opiniões, que são determinadas por visões ideológicas que desprezam argumentos científicos. Ideias fantasiosas ou ficcionais tomam o lugar do respeito às verdades científicas, neste caso aquela já vastamente disseminada na Saúde Pública de que, mediante surtos de doenças infecciosas, cada cidadão tem algum nível de sua liberdade individual colocada em suspensão em prol do bem-estar da coletividade, ideia que sustenta a quarentena ou isolamento.
Mais do que nunca cabe afirmar o direito das populações a serem adequadamente informadas e esclarecidas sobre assuntos que são de seu interesse direto. Nesse sentido, as informações sobre a pandemia deveriam ser baseadas em evidências e submetidas à permanente avaliação de especialistas e autoridades, sejam políticas ou técnicas. Na ciência, as verdades são sempre transitórias, por isso defendemos a necessidade de um cuidado redobrado em sua divulgação e atualização. A insistência com que se difundiu a informação de que o uso de máscara não protegeria contra a contaminação pelo novo coronavírus, por exemplo, contribui para o descrédito das autoridades sanitárias, posto que a informação difundida hoje já é diferente – de que é importante se usar qualquer tipo de barreira física. Possivelmente a informação inicial se justificava por algum grau de temor de que parcelas da população que dispõem de recursos para adquirir máscaras assim o fizessem, em um contexto de escassez deste tipo de insumo, como a própria OMS se manifestou em vários momentos. A mudança no discurso das autoridades sanitárias pode fragilizar sua legitimidade social.
A ideia de omitir a verdade quase sempre é o resultado de um certo paternalismo (estatal ou profissional) que ocorreria quando o indivíduo acredita que, assim, se está agindo no melhor interesse do enganado. Fato recente que exemplifica este ponto foram as críticas feitas ao pesquisador Atila Lamarino, da USP, que apresentou em números o contingente de brasileiros que poderiam morrer vítimas da pandemia, caso medidas não fossem tomadas.  
Porém, sustentamos e argumentamos que o dever de falar a verdade baseia-se, dentre outros aspectos, no respeito ao outro, pois somente a partir dessa condição, este outro estará apto a tomar decisões de acordo com a realidade que se apresenta, o que num contexto de pandemia torna-se crítico. Outro argumento em defesa do dever de falar a verdade é que a cooperação (da população em geral) é um dos elementos importantes para o sucesso das estratégias governamentais e isso depende da confiança que se estabelece entre esses atores. Aliada ao dever de falar a verdade existe também o direito de indivíduos e populações serem corretamente informados. 
 À pergunta feita no início desta reflexão, entendemos que o dever de falar a verdade é um valor fundamental e boa parte da confiança do e no outro é resultado da percepção que se tem da confiança e transparência que a relação possibilitou. Para o enfrentamento de crises, como a atual pandemia Covid-19, deveria ser feito um esforço todo especial em conquistar essa confiança. Não apresentar mensagens contraditórias entre a autoridade política e a autoridade técnica seria especialmente importante. Da mesma maneira é necessário evitar as chamadas meias verdades, que infelizmente são tão ao gosto de políticos de diferentes matizes ideológicas. A meia verdade prejudica a confiança pública e, em última análise, até o enfrentamento da crise propriamente dito. Se as medidas de enfrentamento à pandemia dependem do engajamento comunitário, o dever de falar a verdade também está diretamente associado à nossa capacidade de sobrevivência a esta crise em saúde pública. Diante
da realidade da pandemia e do Brasil, não resta dúvida de que informações estratégicas e confiáveis devem estar disponíveis a toda a população.
 
Autores:
Sergio Rego – Ensp/Fiocruz – PPGBIOS - PQ CNPq – GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa Contato: rego@ensp.fiocruz.br 
Marisa Palácios – Núcleo de Bioética e Ética Aplicada (Nubea)/UFRJ – PPGBIOS - GT Bioética Abrasco – Unit RJ/Unesco Chair Haifa.
Pablo Dias Fortes – Pesquisador da Ensp/Fiocruz. Coordenador do PPGBIOS na Fiocruz GT Bioética Abrasco.
Fermin Roland Schramm – pesquisador da Ensp/Fiocruz - PPGBIOS
Alexandre Costa – professor do Nubea/UFRJ – Coordenador Geral do PPGBIOS - Unit RJ/Unesco Chair Haifa.
Luciana Brito – pesquisadora da ANIS – Instituto de Bioética - GT Bioética Abrasco - Unit RJ/Unesco Chair Haifa 
Luna Borges – UnB – International Planned Parenthood Federation - Brasil
Beatriz Thomé - UNIFESP 
Luciana Narciso – Ensp/Fiocruz/PPGBIOS – GT Bioética Abrasco - Unit RJ/Unesco Chair Haifa
Sônia Beatriz dos Santos – UERJ.
Suely Marinho – HUCFF/UFRJ - GT Bioética Abrasco 
Gustavo Matta – Ensp/Fiocruz
Cláudio Cordovil – Ensp/Fiocruz
Andreia Patrícia Gomes – Universidade Federal de Viçosa
 
 
Contribuições: Sergio Rego escreveu a primeira versão do texto, que foi debatido com os demais autores e escrito sucessivas versões até chegarmos à versão final.
 

 



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