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Entrevista: Psicóloga, que já esteve em desastres e epidemias, ressalta que o cuidado ajuda a superar a impotência

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Publicado em:16/04/2020

Entrevista: Psicóloga, que já esteve em desastres e epidemias, ressalta que o cuidado ajuda a superar a impotênciaA psicóloga sanitarista que já esteve em mais de 40 países em situações de desastres e grandes epidemias — como o terremoto do Haiti, em 2010, e os conflitos étnicos do Quirquistão, na Ásia Central, por sua atuação na organização Médicos Sem Fronteiras — acredita que a pandemia do novo coronavírus (covid-19) exige a valorização dos afetos e do cuidado. Tudo que é sólido e material pode se dissolver em minutos, “mas o que fica é o que de fato tem valor, como aquele que cuida”. Débora atualmente é pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes/Fiocruz) e colabora com a Fiocruz Brasília na elaboração de estratégias em saúde mental para os trabalhadores que estão na linha de frente contra a pandemia. Autora de “O Humano do Mundo: Diário De Uma Psicóloga Sem Fronteiras”, ela conversou com a Radis sobre os desafios do cuidado em tempos de covid-19. Como é possível cuidar sem tocar com as mãos? “O que esse tipo de pandemia nos traz como lição é que a gente não precisa tocar, não precisar sentir pele com pele para se sentir de fato cuidado”, ressalta.

 

Como a pandemia afeta a saúde mental dos trabalhadores em saúde?

 

Os trabalhadores relatam uma sensação de ansiedade extrema, medo, desconforto, para alguns tristeza, para outros frustração, ou mesmo a sensação de ser estigmatizado, de ter medo até de sair na rua e sofrer algum tipo de violência, porque muitas vezes a população acaba acreditando que os próprios profissionais disseminam a covid. Esse é um ponto importante: começar a entender o que de fato são reações e comportamentos esperados nesse momento. Quando conheço quais são os indicadores, as reações e os sintomas mais frequentes de sofrimento e ansiedade, é muito mais tranquilo para esse trabalhador conseguir se automanejar e não precisar de uma ajuda externa e especializada e muito menos paralisar. Muitos acabam recorrendo ao afastamento dos processos de trabalho ou paralisando, não têm nem vontade de sair de casa por receio mesmo. Parte das dicas que eu dou é que, enquanto trabalhadores da saúde, a gente já sabe o que fazer, já temos ferramentas que nos ajudam a manejar o nosso próprio sofrimento. Parte do trabalho das equipes de saúde mental é fazer essa ponte entre aquilo que o trabalhador já sabe e adaptar ao processo de trabalho.

 

Que cuidados em saúde mental são necessários para aqueles que estão na linha de frente?

 

Algumas pesquisas recentes sobre a saúde mental dos trabalhadores, em especial os chineses, apontam que, quanto mais próximos da linha de frente, alguns indicadores e fatores se tornam essenciais: como, por exemplo, a sensação de segurança no seu gestor e no protocolo de biossegurança, nos instrumentos e ferramentas de trabalho. Quando eles se sentiam de fato seguros, sabendo que tipo de proteção eles deveriam usar e que protocolo seguir, e reconheciam quem estava de fato no comando — ou seja, quando as regras eram claras e organizadas — isso dava uma sensação de estabilidade emocional muito maior, uma sensação de confiança na estratégia e principalmente de autoconfiança. Esse foi o ponto de virada para que os trabalhadores se encorajassem a ir de fato para a linha de frente. A gente fala em ferramentas, instrumentos e manejos que não são exclusivos da psicologia, mas que dão um efeito direto na saúde mental dos trabalhadores.

 

Esse tipo de estratégias ajuda a não paralisar os serviços. É como agir com o trem em movimento...

 

E mais: às vezes a gente tem que repor algumas peças do trem e ao mesmo tempo entender como dirigir esse trem, mas na verdade a gente já está dentro. Boa parte de nós sabe como fazer isso. Só o que vai precisar ser feito é adaptar os conhecimentos que já tínhamos às novas estratégias de trabalho. O trabalho das equipes de saúde mental é ajudar a fazer a ponte: o que as pessoas percebem agora, das demandas que elas têm agora, com os conhecimentos, os sentimentos e as características que a ajudavam a fazer frente às dificuldades da vida.

 

Como é possível se “desligar” da rotina e de sentimentos como frustração e voltar para casa? Pois por mais que as estratégias sejam eficientes no propósito de salvar vidas, algumas vidas não poderão ser salvas...

 

Não é um trabalho fácil. Quando você é trabalhador de saúde, é como se carregasse uma missão. Quando recebe seu diploma, você se compromete que vai fazer de tudo para salvar vidas. Mas infelizmente algumas vidas não poderão ser salvas. Costumo dizer que uma das estratégias para manter minimamente o equilíbrio é reconhecer quais são os nossos limites e até onde a gente consegue ir, com a segurança e o conforto de tudo o que foi possível fazer. Na hora de voltar para casa, é preciso se lembrar daquelas pessoas que de fato dei conta de ajudar, entendendo que elas foram cuidadas e que existem limites. É preciso se “autoconfortar”. Não diria se “conformar”, acho que essa não é a palavra. Mas poder acolher o seu próprio sofrimento e os seus limites, poder reconhecer principalmente aquilo que fez e que acredita que deu certo. Lembrar que não é porque as pessoas perdem a vida que o objetivo do nosso trabalho não foi alcançado, pois assim os cuidados paliativos não teriam sentido. Muito pelo contrário: o conforto na partida e dar o máximo de dignidade humana até o último suspiro é também parte do nosso trabalho.

 

A partir da sua experiência em dezenas de países, que lições o enfrentamento de grandes desastres e epidemias, como o ebola na República Democrática do Congo, podem trazer para a covid-19 no Brasil?

 

Para mim, é bem claro que os grandes desastres e grandes epidemias nos dão a certeza de que a gente não tem o controle da vida e das formas de interagir com o mundo. É só uma sensação. Eles nos confrontam o tempo inteiro com o potencial da própria morte e também a morte da nossa rede socioafetiva. Isso faz com que a gente ressignifique a nossa forma de viver no mundo. A gente desperta um olhar de muito mais afeto àquilo que de fato é essencial, que são as relações humanas, o carinho, o cuidado. As relações socioafetivas são muito mais fortes do que as estruturas materiais. E dou um exemplo fazendo um comparativo com os grandes terremotos, em que temos aquela certeza de que tudo foi destruído. Tudo que era sólido, material e palpável pode se dissolver em minutos. Mas o que fica é o que de fato tem valor: aquele que cuida, que não é necessariamente alguém da família. Pode ser um vizinho, um colega de trabalho ou às vezes até uma pessoa que está doente no mesmo tempo que eu e que possibilita que eu me reconheça como ser humano no olhar do outro. Em eventos como esses, as relações humanas são alteradas de uma forma muito profunda, desde que a gente pare e se conecte com aquilo que podemos ressignificar. Do contrário, a gente só se conecta com a dor daquilo que foi perdido.

 

A pandemia de covid-19 nos desafia com a recomendação de não tocarmos as mãos uns dos outros. Por outro lado, as mãos simbolizam o cuidado. Como é possível cuidar nesse contexto?

 

Esse é um grande desafio, principalmente na nossa cultura. A gente valoriza muito a proximidade dos corpos, o olhar mais próximo, o calor do corpo humano. A palavra cuidado é muito associada com o toque e a proximidade. O que esse tipo de pandemia nos traz como lição é que a gente não precisa se aproximar menos de dois metros, a gente não precisa tocar, não precisar sentir pele com pele para se sentir de fato cuidado. Existe aí uma criatividade, mas também uma tecnologia leve de cuidado. Você pode desenvolver uma série de ações para criar a sensação de pertença, de proximidade. E você pode de fato cuidar sem tocar e mesmo sem chegar próximo um do outro. Para os profissionais de saúde que estão na linha de frente, existem os equipamentos de biossegurança que nos dão as possibilidades de tocar: não vai ser pele com pele, mas com a proximidade do toque, de uma maneira protegida. Isso também é possível, para não achar que as pessoas no isolamento não têm nenhum tipo de contato. Elas também têm, desde que contem com a proteção dos EPIs [equipamentos de proteção individual] dos profissionais de saúde.

 

Que estratégias concretas têm sido pensadas para auxiliar na saúde mental dos trabalhadores em saúde?

 

Toda a nossa estratégia de cuidado e atenção psicossocial e saúde mental para a covid-19 está baseada em diretrizes do IASC (Inter-Agency Standing Committee, agência das Nações Unidas voltada para a coordenação de assistência humanitária) – link: https://interagencystandingcommittee.org/system/files/iasc_mhpss_guidelines_portuguese.pdf, um grande grupo que existe com mais de 40 organizações internacionais que atuam em situações de grandes desastres e pandemias. A gente tenta trabalhar com a base da pirâmide, entre 65 e 80% da população, que precisa de comunicação para estabilização emocional. O que é isso? Poder reconhecer e entender quais são as reações mais comuns, de confusão e de dissociação, quando parece que estou vivendo dentro de um filme — para alguns uma sensação de letargia, não tem vontade de sair de casa para trabalhar, para outros uma sensação de agitação desordenada, em que tudo parece estar ocorrendo ao mesmo tempo, o que é muito conectado com a sensação de ansiedade. Para outros, dificuldades para dormir e de manter uma rotina, principalmente para as pessoas que vão ficar em casa. O trabalho agora da psicologia é mostrar que todas essas reações são normais. A gente costuma dizer que dentro de um a três meses são as reações que a gente espera da população, porque é a estrutura psíquica tentando entender toda essa reconfiguração, que não é só uma mudança das rotinas individuais, é o mundo inteiro sendo ressignificado. Isso leva algum tempo. É como se nós fôssemos um computador em que tivessem sido abertas centenas de abas ao mesmo tempo. O corpo e a estrutura psíquica acabam ficando mais lentos porque a gente tem que absorver muitas informações, sensações, reações e demandas sentimentais ao mesmo tempo. Essa é parte do nosso trabalho, passar essas informações para a população.

 

E quem precisa de ajuda profissional?

 

Depois, vai subindo pela base da pirâmide, mais ou menos de 15% a 25% [da população], que são aqueles que vão precisar de algum tipo de intervenção mais próxima dos profissionais de atenção psicossocial e saúde mental. Normalmente são pessoas que já demonstraram em algum momento da vida que tinham um pouco mais de instabilidade psíquica ou labilidade. Essas pessoas às vezes precisam só de uma informação técnica, que venha direto de um profissional. Essa pessoa relata a sua demanda e o profissional faz a orientação mais próxima. Para esse grupo, a gente está tentando fazer uma série de vídeos e produções sobre dúvidas mais recorrentes dos profissionais de saúde. Um grupo grande se formou, estruturado pela Fiocruz de Brasília, em que a gente tenta sanar as dúvidas dos profissionais de saúde que estão na linha de frente, na ponta do cuidado e do atendimento. A gente está fazendo um trabalho grande de ressignificação de todos os protocolos e estratégias utilizadas na China, Espanha, Itália e Inglaterra, para poder ver como a gente consegue reconfigurar essas estratégias e fazer uma adaptação ao nosso sistema de saúde. E tem uma pontinha ainda da pirâmide, para a qual a gente está tentando conformar estratégias mais próximas de cuidado, para que essas pessoas recebam de fato atendimento.

 

Em seu livro “O Humano do Mundo”, você faz um diário de sua atuação como psicóloga em situações de desastres e epidemias em diferentes países. Como o humano se expressa nesse contexto de caos e de medo da morte e da doença?

 

O humano é muito genérico. Eu posso te dizer que, nesses mais de 40 países em que atuei, tenho percebido que quando a gente está em situações extremas, que é de onde a gente está se aproximando agora — a gente ainda não chegou no topo da nossa curva, mas estamos nos aproximando —, quanto mais o ser humano se aproxima desse evento extremo que o confronta diretamente com a morte, maior o potencial que ele tem de ressignificar todas as suas bases. Eu acredito que este vai ser um momento da gente se reinventar, não só como ser humano, mas como humanidade. Eu tenho percebido em lugares como a República Democrática do Congo, em que as epidemias de ebola são muito recorrentes, a capacidade humana de cuidar do outro, de ser solidário, de ser participativo e se perceber como um grupo maior e não só como a minha família nuclear, se perceber enquanto humanidade. As pessoas acabam lidando com essa capacidade de cuidado e autocuidado de forma muito díspares. Nossa cultura não é a mesma que a congolesa, mas temos muitos padrões e parâmetros similares, inclusive essa capacidade de ser solidário, de ser participativo.

 

Como é possível lidar com a epidemia num país com tantas desigualdades, em que as orientações ainda são muito voltadas para a classe média e desconsideram a especificidade de diferentes contextos, como as populações que vivem na favela, no interior, nas ruas, nas comunidades quilombolas e indígenas, por exemplo?

 

Esse é nosso maior desafio. Não somos uma unidade homogênea. Muito pelo contrário. São tantas demandas diferenciadas que a única forma de cuidar com propriedade e legitimidade é ouvindo todos esses grupos. Eu costumo dizer que a melhor forma de cuidar de alguém é ouvir como ele gostaria de ser cuidado. A melhor forma de cuidar da população de rua é ouvir não só os profissionais que trabalham com esse grupo, mas as próprias pessoas que vivem na rua. Assim é possível perceber quais são suas demandas, medos e receios, que são diferentes dos medos da classe média. As pessoas que vivem na rua vivem muito mais no presente e no agora. Para elas, o futuro é hoje. O máximo do futuro que se vê é o próximo turno que está chegando. As pessoas não conseguem fazer grandes planos, para médio e longo prazo. Esse é um privilégio das classes mais favorecidas economicamente. Enquanto para uma pessoa de classe média, trabalhamos com exercícios e terapias para trazer o pensamento até o presente, aqueles que vivem na rua já vivem no presente o tempo inteiro. Só que essa também é uma das formas de desespero, porque pensam: “talvez nesse turno eu não sobreviva”. O presente também traz esse tipo de sofrimento. São com essas diferenças que a gente precisa lidar, e rápido, pois não temos todo esse tempo. Quem tem fome, tem fome hoje, não é amanhã ou daqui a duas semanas. A curva de desespero com a qual nós, de classe média, estamos nos preocupando para daqui uma semana ou um mês, para essas pessoas a curva talvez signifique amanhã. O desespero é não conseguir sobreviver amanhã. Esse é o desafio trazido pela pandemia: Como lidar com políticas públicas que são de hoje para hoje, não podem ser pensadas a médio e longo prazo, têm que ser pensadas agora, com necessidades muito práticas? É pensar como “eu sobrevivo”, mas não só ao coronavírus — Como eu sobrevivo à fome, à dor e à violência às quais estou exposto o tempo todo?

 

Que reflexos o isolamento social pode ter sobre a saúde mental? Como é possível lidar com um contexto de isolamento e ao mesmo tempo estimular a solidariedade?

 

Essa é uma pergunta muito interessante. Na China, eles tentaram várias vezes fazer o distanciamento social e perceberam que o ponto de virada foi quando chamaram a sociedade para o altruísmo, dizendo: “Estamos falando em proteção, mas não é só por vocês, é pelo seu vizinho, pelo seu parente, pelas pessoas todas da sociedade”. Nós ainda não chegamos no isolamento. A maior parte de nós está no distanciamento social ainda. Esse é um ponto que vai fazer muita diferença: se consigo entender que é pelo outro, que estou fazendo isso para um coletivo maior, e começo a compreender que pertenço a uma unidade maior que se chama humanidade, é nesse momento que as pessoas começam a diminuir a ansiedade e se sentem muito mais no controle da situação, ou seja, sou eu quem me controlo. Na medida em que “escolho” ficar em casa, eu tenho a minha primeira fonte de controle: é a sensação de que eu faço parte, faço a diferença. Nesse momento, as pessoas começam a se sentir menos isoladas e muito mais pertencentes a uma estrutura. Se sou uma pessoa de classe média, que tem computador, internet e redes sociais, certamente a minha capacidade de me sentir isolado é muito diferente de quem não tem nem um meio de comunicação próximo. Eu costumo dizer que muitos de nós já vivíamos em quarentena — numa quarentena afetiva e não numa quarentena de corpos. Agora é o contrário: a gente tem necessidade de fazer uma quarentena de corpos, um distanciamento físico, mas não emocional e afetivo. Essa é a hora de fazer uma ressignificação sobre o isolamento e sobre o que nós já fazíamos. Talvez muitos de nós que estão pensando “Sinto muita falta de encontrar as pessoas”, se fizermos um caminho de volta vamos perceber que a gente já não encontrava as pessoas. Só que agora vem a sensação do aprisionamento, aí eu começo a sentir falta, mesmo que eu já não executasse aquela ação, já não encontrasse as pessoas. É hora de pensar em que quarentena eu vivo e que quarentena eu me proponho agora.

 

De todas as experiências que você viveu com grandes desastres e emergências humanitárias, qual foi a mais marcante nesse encontro com o “humano”?

 

A experiência de trabalho mais dura para mim... E olha que eu fui a primeira psicóloga que cheguei depois do terremoto do Haiti, trabalhei com o ebola e com conflitos étnicos no Quirquistão, mas o que de fato me bateu e exigiu um tempo para rever toda a minha vida foi exatamente as epidemias de ebola. Foi quando eu percebi que todas as ferramentas que eu sabia usar no cuidado era como se alguém chegasse e as tomasse de mim. Eu não podia chegar perto, não podia tocar, eu tinha que ter todos os itens de proteção sobre o meu corpo e mais: eu estava numa cultura que não era a minha. Eu tinha que falar em lingala, em bangala, era tudo diferente. Ainda assim, estar naquele lugar, fez muito diferença para aquelas pessoas. Esse era o relato delas: o quanto faz diferença saber que alguém por sua livre e espontânea vontade quer cuidar, quer estar próximo, mesmo sabendo sobre o risco para minha vida e para as pessoas que eu amava. As pessoas se sentiam cuidadas somente em saber que eu estava me propondo a estar ali com elas. Eu precisei de um tempo para entender que isso já era cuidado. Então, quando um profissional de saúde se propõe a sair de sua casa e colocar todos os equipamentos de proteção, a entrar numa unidade hospitalar e cuidar do outro, essa é a maior mensagem que ele já está passando: “Você não está só. Nós estamos juntos. Estamos literalmente juntos.” Pois o que é covid para um é covid para o outro, as formas de contaminação são similares. Essa é talvez a maior estratégia de cuidado que a gente tem: poder se encorajar para estar naquele lugar e se sentir pertencente a um processo de cuidado.


Relato de uma psicóloga na linha de frente contra o ebola

 

Entrevista: Psicóloga, que já esteve em desastres e epidemias, ressalta que o cuidado ajuda a superar a impotência

“Voltei pra casa depois de 30 dias na epidemia de ebola do Congo. E estou com aquele cansaço no corpo de quem passou a noite em claro num velório de 30 noites. Foi uma das missões mais difíceis que fiz. Triste. Muitas mortes. A vida se esvaindo sem dignidade. As febres hemorrágicas jogam na nossa cara a mesma matéria que nos faz viver. Era tanta vida saindo de cena e partindo, que, enquanto eu acordava, às cinco horas da manhã, segui escrevendo na minha agenda de atividades diárias a palavra funeral. E eu, um ser humano destes qualquer, uma mundele, uma mzumgu (branco estrangeiro), que nunca havia dividido os planos de vida com aquelas pessoas, agora era responsável por dividir com os parentes os planos para o último ato. O rito de passagem, funeral, velório, enterro era compartilhado sempre por mim. Queria que nós, humanos, virássemos fumaça vento, ar. Indigno. Entrar no último ato dentro de um saco plástico lacrado, sem direito a ter sua face exposta. Sem direito ao último toque, à última fala, à última escuta dos votos de cuidado. Como assim? Sentimento de dor, sentimento de querer cuidar do outro. Como cuidar do outro sem tocar? Como abraçar alguém sem usar os braços? Como você acaricia a cabeça de uma menina de dois anos sem usar as mãos? Como dizer pra alguém que você está do lado dele quando precisa se afastar dois metros? Iniciar uma longa viagem sem companhia. Estar só. Logo ali, no último ato.
(Trecho de “O Humano do Mundo: Diário De Uma Psicóloga Sem Fronteiras”)

 

 

 

 

 

 

*Foto: Arquivo Pessoal


Fonte: Radis
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