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Covid-19 avança rumo às terras indígenas

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Publicado em:14/04/2020
*Por Paulo Basta
 
Covid-19 avança rumo às terras indígenasConforme tem sido diariamente noticiado, a epidemia de covid19 está se alastrando a passos largos em todo o planeta. No Brasil, a situação não é diferente. Embora os primeiros casos tenham sido notificados em São Paulo e Rio de Janeiro, hoje todos as unidades da federação têm casos confirmados e o número de óbitos cresce a cada dia, inclusive nos nove estados que compõe a Amazônia Legal. Na Amazônia brasileira, os estados mais afetados são Amazonas, Pará e Roraima, locais onde vive parte expressiva dos grupos indígenas no Brasil. Tomando por base o último censo nacional, realizado em 2010, podemos afirmar com segurança que hoje temos mais de 1.000.000 de indígenas vivendo no país, representando mais de 300 grupos étnicos, falantes de mais de 200 línguas e vivendo em diferentes estágios de contato com a sociedade envolvente.
 
No início do mês, em 01/04/2020, foi confirmado o primeiro caso de covid19 em uma jovem indígena da etnia Kokama, no município de Santo Antônio do Içá, no interior do Amazonas. A jovem é trabalhadora do SUS e atua como agente indígena de saúde no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Solimões. Felizmente, essa jovem se recuperou integralmente e sem sequelas. Entretanto, em dez dias, o número de casos confirmados em indígenas subiu para nove, incluindo cinco prováveis contatos da jovem Kokama, um caso no DSEI Manaus, um caso no DSEI Parintins e um adolescente de 15 anos da etnia Yanomami, no estado de Roraima
 
Além dos casos acima informados, haviam sido confirmados dois óbitos devido ao covid19 entre indígenas no Brasil. O primeiro em uma mulher de 87 anos da etnia Borari, que vivia em Alter do Chão, em Santarém-PA; e o segundo em um homem do povo Mura, de 55 anos, residente no município de Itacoatiara, no Amazonas. Todavia, como ambos viviam fora de terras indígenas – sendo, portanto, considerados como indígenas não aldeados – não foram contabilizados nas estatísticas oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS). 
 
Vamos nos deter brevemente no caso do jovem Yanomami, que, devido a princípios culturais, não deve ter o nome pronunciado após a morte. Segundo depoimentos de profissionais de saúde, depois de sofrer por alguns dias com sintomas sugestivos de covid19, o jovem foi encaminhado para atendimento na rede SUS. Teve uma breve passagem pelo Hospital de Alto Alegre, de onde foi transferido sem diagnóstico para a Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) do DSEI Leste de Roraima, já em Boa Vista-RR. Entre atendimentos médicos básicos, exames complementares e consultas especializadas, o jovem teve algumas interações com o serviço de saúde e contato com diversos profissionais até ser internado na unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Geral de Roraima (HGR), em 03/04/2020. Após seis dias de luta contra as complicações clínicas provocadas pelo novo coronavírus, somadas ao retardo no diagnóstico e a não oferta de tratamento adequado, em momento oportuno, o jovem faleceu na noite de 09/04/2020 aos 15 anos. Hoje (16/04/2020), as estatísticas oficiais da Sesai somam 23 casos confirmados com 3 vítimas fatais em terras indígenas. Entretanto, esses dados não consideram o problema da subnotificação de casos e óbitos, assumido publicamente pelo Ministério da Saúde, em cadeia nacional.   
 
O que revela este triste episódio? 
 
É de conhecimento público que o atual mandatário da nação é declaradamente contrário aos povos indígenas. Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro vem fazendo repetidos pronunciamentos que afrontam os direitos dos povos indígenas. Direitos previstos não somente na Constituição Brasileira de 1988, como também na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007. 
 
Recentemente, em 06/02/2020, o presidente da república encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 191/2020 que prevê a regularização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas, sem consulta prévia aos povos indígenas e suas associações, violando assim as recomendações da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes, da qual o Brasil é signatário. Em sintonia com os artigos 231 e 232 da Constituição Brasileira, a Convenção nº 169 reconhece o direito dos povos indígenas à terra e aos recursos naturais, à não-discriminação e a viverem e se desenvolverem de maneira diferenciada, segundo seus costumes.
 
Levando em consideração esse flagrante desrespeito às leis vigentes no país por parte de seu maior representante no Poder Executivo, o presidente da república, hordas de garimpeiros se uniram e invadiram terras indígenas e unidades de conservação em várias partes da Amazônia, restabelecendo o cenário vivenciado no início da década de 1980, ainda na ditadura militar, quando houve a primeira corrida do ouro. 
 
As consequências sociais, ambientais e para saúde das populações nativas da corrida do ouro foram terríveis, naquela época, e não serão diferentes hoje. Devastação de largas áreas de floresta nativa, ameaça a inúmeras espécies da fauna e da flora local, contaminação dos rios, dos peixes, das pessoas e do todo ecossistema amazônico pelo mercúrio utilizado nos garimpos, além da disseminação de toda sorte de moléstias infectocontagiosas transmitidas pelo contato, incluindo o novo coronavírus. 
 
Com a estratégia de confinamento – cientificamente embasada e adotada pela sociedade – e com as recomendações de trabalho em sistema de home office, a frágil estrutura de vigilância ambiental existente no Brasil sofrerá profundos impactos. Ações de fiscalização de territórios, assim como multas e apreensões, além da remoção de invasores de territórios tradicionais poderão ser interrompidas, abrindo as fronteiras para garimpeiros, madeireiros, grileiros e todo tipo de pessoa interessada em explorar a floresta e seus precisos recursos naturais. 
 
Diante dessa lacuna do poder público, os povos tradicionais da Amazônia, incluindo indígenas, quilombolas e ribeirinhos, estão sujeitos não somente aos efeitos da devastação da floresta e da contaminação dos rios e dos peixes pelo mercúrio, como também aos efeitos da ampliação da epidemia causada pelo novo coronavírus, uma vez que garimpeiros, madeireiros, grileiros e outros criminosos não respeitam regras de quarentena, tampouco trabalham em sistema de home office. 
 
"O exemplo mais recente e ilustrativo desta tragédia anunciada foi a contaminação e a morte do jovem Yanomami. Para atender regras de biossegurança, após constatado o óbito, o corpo do jovem foi rapidamente enterrado em um caixão lacrado no cemitério de Boa Vista-RR, a fim de evitar a contaminação de outros familiares. Todavia, conforme lembra Bruce Albert, antropólogo francês que se dedica ao povo Yanomami há mais de 40 anos, sepultar um Yanomami sem o consentimento de seus familiares e sem a realização de rituais funerários culturalmente apropriados configura grave infração ética, além de um brutal desrespeito às tradições ancestrais. Esse triste episódio inaugurou uma nova fase no enfrentamento à pandemia da covid19. Como prevenir as famílias e os membros da comunidade do contágio com o novo coronavírus e ao mesmo tempo garantir o respeito às tradições e aos sentimentos de pesar e luto dos envolvidos?
 
Vale lembrar que o jovem Yanomami vitimado pela covid19 era proveniente da aldeia Helepe, situada na bacia do rio Uraricoera, num dos locais da Terra Indígena Yanomami mais afetados pelo grande fluxo de garimpeiros . Hoje, estima-se que aproximadamente 20 mil homens estejam explorando ilegalmente ouro e outros minérios, dentro do território Yanomami
 
Consciente da magnitude das ameaças que estão por vir e de suas responsabilidades institucionais, no último dia 02/04/2020, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou uma série de ações ao Poder Executivo, dentre as quais destacam-se: a inclusão dos povos indígenas no grupo prioritário de vacinação contra influenza, o fornecimento de alimentos e produtos de higiene, a descentralização de recursos e de licitações para aquisição de material de combate e prevenção à nova doença, assim como a distribuição de insumos laboratoriais e testes para diagnóstico. Na nota, o MPF adverte ainda que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) deve implementar imediatamente medidas de proteção territorial em todas as terras indígenas, independente da situação fundiária, de modo a impedir a entrada e/ou retirar invasores, especialmente garimpeiros e madeireiros. A medida visa prevenir o contágio dos indígenas pelo novo coronavírus. 
 
É importante mencionar que parte expressiva das famílias indígenas estão nos registros do Cadastro Único do governo federal (CadÚnico) e, portanto, são beneficiárias do programa bolsa família (PBF). Em linhas gerais, pode-se dizer que o PBF constitui a única fonte de renda de muitas dessas famílias. Renda que é utilizada para a aquisição de alimentos e utensílios para garantir a subsistência dessas pessoas nas comunidades. Com o anúncio do auxílio emergencial de R$600,00 para famílias carentes, por parte do governo, é possível que o número de famílias indígenas no CadÚnico aumente e com isso se intensifique o fluxo de indígenas para os municípios em busca do benefício. Por um lado, esse fenômeno pode ampliar o acesso de famílias indígenas à renda e a outros benefícios sociais, por outro, pode aumentar exponencialmente as chances de exposição ao novo coronovavírus e o consequente contágio e adoecimento.
 
Afinal, a história nos ensina que epidemias causadas por micro-organismos têm consequências catastróficas para povos de origem ancestral. Ao longo dos últimos cinco séculos, diversos grupos foram dizimados ou tiveram perdas populacionais expressivas devido a epidemias de sarampo, varíola, gripe e tuberculose. Em muitas situações podemos dizer que os germes mataram mais do que as armas. Agora, o desafio é o SARS-CoV2. A vulnerabilidade socioambiental acima descrita, a insegurança alimentar presente em muitas aldeias e o limitado acesso aos serviços públicos ofertados pelo Estado favorece o espalhamento da epidemia e também manifestações clínicas graves da doença que demandam assistência médico-hospitalar de alta complexidade (com a necessidade do uso de equipamentos de ventilação mecânica em unidades de terapia intensiva, por exemplo), com potencial de provocar elevado número de óbitos. Recente iniciativa do Instituto Socioambiental auxilia no monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus e lembra as consequências das epidemias ao longo da história do Brasil, desde os primeiros anos da colonização portuguesa até a atualidade.
 
Diante do exposto, é imprescindível que as autoridades brasileiras passem a considerar os povos indígenas como grupo vulnerável ao novo coronavírus e que se estabeleçam critérios claros para o enfrentamento da doença nos milhares de aldeias indígenas existentes no país. O plano de contingência deve conter ações emergenciais para suprir as demandas da população afetada e ações estruturantes para afiançar que o Brasil vai cumprir a agenda 2030 e atingir os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), notadamente, o ODS 10 que prega a redução das desigualdades e o ODS 16 que versa sobre paz, justiça e instituições eficazes.
 
Por fim, é de vital importância que a sociedade brasileira assim como a comunidade internacional sejam sensibilizadas para este problema e apoiem os povos indígenas na luta contra a invasão de seus territórios tradicionais, contra o garimpo, contra toda forma de violação dos seus direitos e contra o avanço da epidemia de covid19.
 
Paulo Cesar Basta
Médico e Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
 


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