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Medida Provisória ameaça Atenção Primária à Saúde estruturada no SUS constitucional

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Publicado em:26/11/2019
Medida Provisória ameaça Atenção Primária à Saúde estruturada no SUS constitucionalA Medida Provisória nº 890 (MP 890) instituiu o Programa Médicos pelo Brasil (PMB) e enunciou a criação de uma Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS). Num artigo da ENSP, pesquisadores alertam para os riscos dessa legislação favorecer a transformação da APS no SUS em um espaço mercantil da assistência e para os possíveis retrocessos para a formação de médicos para a atenção primária.
 
De acordo com a MP, a ADAPS tem a finalidade de “incrementar a prestação de serviços médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade e fomentar a formação de médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade”. Para os autores do artigo, analisar e perscrutar a MP é essencial para o entendimento da conjuntura das políticas de saúde no Brasil e, particularmente, da organização da atenção primária à saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS) hoje.
 
A MP foi publicada em um cenário marcado, por um lado, explica o artigo, pela instalação de uma crise no provimento de médicos na APS consequente à retirada dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos (PMM) e, por outro, por um grave quadro de agudização do desfinanciamento do SUS, com uma dotação orçamentária, em 2019, inferior à do ano de 2018. 
 
No plano geral, ressalta o artigo, a conjuntura é marcada por políticas ultraneoliberais em um governo de extrema-direita com perda de direitos trabalhistas e sociais, associada a crescentes iniciativas de privatização, que também alcançam o setor saúde. Além disso, “a MP sustenta-se em uma concepção restrita de APS entendida como apenas o primeiro nível de atenção”. Embora no texto legal se destaque a menção à saúde da família, observam os autores, ocorre a total ausência dos atributos derivados da APS de orientação comunitária e familiar e competência cultural, centrais para a garantia do cuidado integral e abordagem populacional.
 
Segundo o artigo, o PMB será executado pela ADAPS que, para tal, firmará contrato de gestão com o Ministério da Saúde. No entanto, “as competências da ADAPS, previstas pela MP, são amplas e vão além da execução do PMB, incluindo: a execução da política e a prestação de serviços de APS; o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão; e o desenvolvimento e incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão, entre outras”.
 
O artigo alerta para o fato da ADAPS poder se constituir como serviço social autônomo (SSA), uma figura jurídica de direito privado sem fins lucrativos. “Embora encarregada do desenvolvimento da política nacional de saúde, não será órgão governamental da administração direta, nem se constituirá em uma agência, similar às agências reguladoras como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).” A opção por SSA, segundo o artigo, representaria um “agenciamento empresarial”, dada a possibilidade de captação de recursos financeiros para além do provimento estatal. “O modelo de gestão SSA seria paraestatal, órgão auxiliar na execução de função pública. Vale ressaltar que, não sendo uma modalidade de Administração Indireta, os SSA não estão submetidos à observância das regras da administração pública.”
 
De acordo com o artigo, nesse cenário com competências amplificadas da ADAPS, a participação do setor privado é claramente explicitada: “articular-se com órgãos e entidades públicas e privadas; (...) firmar contratos com órgãos e entidades públicas e privadas, incluindo instituições de ensino; (...) firmar contratos de prestação de serviços com pessoas físicas ou jurídicas”. Os autores ainda destacam que a relação com o setor privado se fortalece também na composição do conselho deliberativo da ADAPS, que inclui quatro representantes do Ministério da Saúde, um do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, um do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde e um de entidades privadas do setor saúde. “Por outro lado, não há participação do Conselho Nacional de Saúde ou representações de usuários ou profissionais. Vislumbra-se mais um ataque à participação social, princípio basilar do SUS.”
 
Fica clara, conforme os autores, a aderência a novas modalidades de gestão inspiradas nas diretrizes da new public management. Esse movimento político se insere na esteira das políticas de reforma do Estado, em perspectiva da utopia liberal, em que um ponto central é a transferência da provisão de serviços sociais ao setor privado. “Um dos aspectos mais destacados seria a contratação de pessoal com flexibilidade, nas condições de mercado, sem incorporação ao regime jurídico único e correspondentes sistemas de aposentadorias, além de não estar submetida aos limites de contratação de pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal.” Todavia, na experiência brasileira, lembram os autores, o alcance de maior flexibilidade nessas modalidades de gestão tem ocorrido, em geral, sem garantias, com frouxo controle público e baixa capacidade de controle institucional e social.
 
Portanto, dizem os pesquisadores, criação da ADAPS aponta uma perspectiva privatista da APS no SUS, que se dará em maior ou menor grau a depender da qualidade do contrato de gestão e da capacidade e vontade política do governo em realmente exercer o controle sobre a execução.
 
Outra dimensão central, aponta o artigo, é a relação público privado, que aqui se expressa no anúncio da liberdade de se estabelecer contratos com o setor privado. “Alerta-se para o risco de ocorrer uma dupla terceirização: a MP terceiriza a implementação da política de APS na ADAPS, instituição sem finalidade de lucro, e a ADAPS terceiriza a prestação contratando o setor privado com ou sem fins de lucro.”
 
O posicionamento do presidente da operadora de planos privados de saúde, Unimed, expressa bem essa dimensão público-privada. Conforme o artigo, ao mencionar o PMB, a Unimed coloca-se como parceira do Ministério da Saúde para a prestação da APS no SUS. “O posicionamento conclui que a saúde suplementar legitimamente pode ocupar um importante papel na gestão da saúde pública, em uma nova era na qual a iniciativa privada se fará presente cumprindo as obrigações da saúde pública brasileira”.
 
A MP 890 revogou os art. 6º e 7º da Lei nº 12.871/2013 do Programa Mais Médicos. Ao abrir mão da regulação da residência médica, evidencia, segundo os autores, que o governo não está disposto a exercer a prerrogativa constitucional da formação para o SUS. "De fato, a formação proposta apresenta dois limites centrais: a baixa capacidade de formar médicos de família e comunidade, pois seu público deixa de ser o conjunto dos médicos formados no Brasil anualmente 24; e a queda da qualidade, na medida em que a residência médica, 'padrão-ouro' da formação, supõe treinamento em serviço com supervisão/preceptoria constante."
 
Para os autores do artigo, a MP propõe ajustes duvidosos no provimento, uma agência privatizante e o abandono da agenda de regulação da formação de especialistas, de expansão da residência em medicina de família e comunidade e de reorientação da formação na graduação. "Frente a essas e outras medidas que ameaçam os princípios que estruturam o SUS constitucional - universalização, publicização, integralidade do cuidado e participação social - urge ampliar as bases de apoio na sociedade de modo que iniciativas que afetam esses princípios possam ser combatidas", concluem.
 
O artigo em foco, Médicos pelo Brasil: caminho para a privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde?, publicado no Cadernos de Saúde Pública, é de autoria de Lígia Giovanella, Maria Helena Magalhães de Mendonça e Eduardo Alves Melo, da ENSP; Aylene Bousquat, da Universidade de São Paulo; Patty Fidelis de Almeida, Universidade Federal Fluminense; Maria Guadalupe Medina e Rosana Aquino, da Universidade Federal da Bahia.

 


Fonte: Artigo CSP
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