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‘Radis’ de outubro defende combate das desigualdades para garantir democracia na saúde

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Publicado em:08/10/2019
‘Radis’ de outubro defende combate das desigualdades para garantir democracia na saúdeA matéria de capa da revista Radis de outubro questiona a incompletude do projeto democrático de saúde defendido pelo sanitarista Sergio Arouca, então presidente da Fiocruz, em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde. Chefe de Gabinete de Arouca, o pesquisador da ENSP, Ary Miranda, lamenta: “Nós construímos o SUS, mas não conseguimos consolidá-lo dentro dos seus preceitos”. 
 
Para Ary, ouvido pela Radis, as sete conferências de saúde que ocorreram antes da 8ª foram todas da burocracia do Estado. “Por isso, ela é uma ruptura radical com o que era tradição e foi preciso uma enorme mobilização popular para que o projeto se viabilizasse”, relatou. A construção desse projeto, lembra ele, ocorreu em um contexto de transformações sociais e de ebulição de grandes movimentos, como o das associações de moradores, que lutavam por melhores condições de vida nos bairros e favelas, e as centrais sindicais. “Eram organizações e movimentos que surgiram da luta contra a ditadura e de alguma maneira tinham a saúde em sua agenda”, constata o pesquisador da ENSP. 
 
Ary explica que o sistema de saúde anterior à Constituição era centralizado e baseado numa lógica privatista do Estado; e o mais importante: restringia-se aos trabalhadores que estavam no mercado de trabalho formal, cobertos pelos benefícios do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), e portanto deixava de fora a maioria da população brasileira. “A massa de trabalhadores que não estava no mercado de trabalho formal não tinha acesso àquele benefício de atenção à saúde. Isso significa que o Estado assumia a discriminação da cidadania, porque aquele trabalhador que não estava no mercado formal não tinha direitos”,ressalta. 
 
Outra característica marcante, de acordo com o pesquisador, era que o Estado financiava a capacidade instalada e o custeio do sistema, ao repassar recursos públicos para a iniciativa privada — que mantinha hospitais e santas casas —, ao invés de instituir um sistema público que atendesse toda a população. “Talvez a saúde seja o exemplo mais cristalino do que foi um Estado privatista na República brasileira”, afirma. A saúde não era vista como um direito e sim como um benefício, como destaca Ary, concepção que é fortalecida com a ditadura militar. “A ditadura de 64 foi implantada para derrubar o governo que avançava no sentido de reformas populares e a luta contra ela unificou um conjunto de forças políticas da sociedade brasileira”, aponta. É nesse cenário que surge o movimento sanitário.
 
A reportagem de Luiz Felipe Stevanim enfoca como personagem central a estudante Luiza, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante da Executiva Nacional de Estudantes de Terapia Ocupacional (ExNETO). Delegada representante dos usuários na 16ª Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, entre 3 e 7 de agosto — cujo tema era “Democracia e Saúde” —, ela aponta que a visão de saúde como mercadoria prejudica sua garantia como direito, mesmo em um país formalmente democrático como o Brasil. “A conjuntura mostra que o setor privado tem seus interesses tanto na saúde quanto na educação. A gente tem que escolher: queremos uma saúde e uma democracia privatistas ou vamos usar as duas ferramentas para construir outro modelo de sociedade?”, pontua. É como perguntar: a casa é para todos ou só para quem pode pagar? 
 
Segundo a Radis, enquanto participava dos debates sobre os rumos da saúde pública nos próximos quatro anos, Luiza vai além, ao destacar que o SUS é uma bandeira fundamental, mas precisa ser compreendido frente aos interesses que querem seu desmonte ou privatização: “Adoecer vai ser bom para alguém. A quem interessa o SUS não funcionar? Se o SUS vai mal, quem vai bem?”, questiona. 
 
A frase “Não há democracia sem povo” vem do grego e significa o “exercício do poder pelo povo”, mas na prática não é tão simples, como ressalta Luiza, ao criticar que mesmo nas instâncias formais de controle social do SUS, como conselhos e conferências, a participação não é tão aberta quanto deveria. “Os limites da democracia estão colocados o tempo todo. A democracia como ela está hoje não é contra a ordem capitalista, ela a legitima. Como podemos defender que saúde não é mercadoria se dentro do capital tudo é mercadoria?”, observa. 
 
Segundo a estudante, os espaços de participação são encarados como mera formalidade e a voz e os anseios da população não são de fato ouvidos nem as demandas atendidas. A própria Constituição de 1988 reforça, logo no primeiro parágrafo, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Porém, quais as dificuldades em exercitar a democracia na prática? Luiza acredita que, sem construção de consciência crítica, é fácil ser levado por ilusões. “A falsa ideia de democracia como se todos tivessem direitos e voz esconde as desigualdades. Ficamos às vezes cegos pela ideia de que o importante é somente ter direito à fala. Mas democracia popular também é sobre ter direito a comer. E o povo quer os dois: falar e comer”, defende. 
 
Conforme disse Luiza, mesmo nos espaços de participação, como conselhos e conferências, os cidadãos se contentam em “falar” e “reclamar” dos problemas que ocorrem em seu cotidiano, como se houvesse escuta e diálogo, e ficam com a ilusão de que participaram da política — porém, na prática, os governos não priorizam essas reivindicações na hora de decidir sobre políticas públicas e levam em conta muito mais os interesses privados. Por isso, ela acredita que a verdadeira democracia deve ser construída tijolo a tijolo, para além do voto e dos espaços burocráticos.
 
 “A chave está na educação e na saúde de fato como bandeiras de estruturação profunda da sociedade”, aponta Luiza. Essa “reinvenção” democrática passa, segundo ela, por superar os “filtros” que emperram a participação, como as desigualdades pautadas em regiões, classes sociais, raça, gênero e sexualidade. “Ao lado da saúde pública, temos que pautar o tema da universidade popular, levando a defesa do SUS para dentro dos cursos de formação em saúde. De nada adianta se o profissional de saúde não defender o SUS. Ele precisa ter essa noção de determinação social, porque senão vai reproduzir uma prática tecnicista e não vai entender o contexto de cada usuário”, propõe.  
 
Para ler sobre os outros entrevistados pela Radis e acessar a revista na íntegra, clique aqui.
 

Fonte: Radis
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