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Entrevista: membro da diretoria da Associação Brasileira de Estudo e Prevenção do Suicídio fala sobre essa questão complexa

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Publicado em:17/09/2019
Suicídio é uma questão que fala do sofrimento humano. Para encará-lo como tema de saúde pública, é preciso reconhecer que existem fatores previsíveis e também da ordem do acaso, do imponderável. Essa é a visão de Carlos Felipe d’Oliveira, médico psicoterapeuta que atua há mais de 20 anos com o tema. Ele foi coordenador do Grupo de Trabalho que formulou a Estratégia Nacional de Prevenção do Suicídio, lançada pelo Ministério da Saúde em 2006, e alerta que o país nunca possuiu um plano concreto de prevenção, com orçamento e metas definidas. Médico formado pela UFRJ em 1974, ele integra a diretoria da Associação Brasileira de Estudo e Prevenção do Suicídio (ABEPS) e é membro do Conselho Consultivo do Centro de Valorização da Vida (CVV). Confira a entrevista do médico concedida ao repórter da revista Radis, Luiz Felipe Stevanim.
 
Entrevista: membro da diretoria da Associação Brasileira de Estudo e Prevenção do Suicídio fala sobre essa questão complexaPor que o suicídio é uma preocupação da saúde pública?
 
Embora o suicídio ocorra no corpo do indivíduo, ele tem uma implicação coletiva. Ocorre também num corpo social, que pode ser a família, o ambiente de trabalho, a escola, uma corporação militar. Qualquer um desses grupos são sistemas sociais. O suicídio tem influência e também impacta esse ambiente social. Com isso, ele passa a ser uma preocupação de saúde pública e, entre as questões a trabalhar, estão os elementos que compõem o cenário epidemiológico. Para a saúde pública, é importante a definição do que são fatores de risco e também, hoje, consideramos os fatores de proteção. Com esses fatores, vamos olhar o cenário em que o suicídio ocorre e podemos trabalhar uma intervenção no sentido preventivo.
 
Como devemos encarar o assunto?
 
Para um fenômeno complexo não existem soluções simples. Fenômenos complexos exigem soluções complexas. Isso é muito importante porque define a visão que nós temos do suicídio, que não é uma visão linear, de que: ‘Suicidou-se porque estava deprimido’ ou ‘Suicidou-se porque se separou da namorada’. Não, essas seriam respostas simples para um fenômeno complexo e multideterminado. Ele depende da interação de um conjunto de fatores de risco e de proteção. Também existem variáveis “não preveníveis” que podem levar ao suicídio. Isso quer dizer que estamos lidando com um fenômeno complexo que tem ações previsíveis e ao acaso também. Ele ocorre há milhares de anos, está descrito em pergaminhos, em blocos de argila. É uma condição que fala do sofrimento humano e, sem dúvida, é uma questão de saúde pública.
 
Diante dessa complexidade, como construir políticas públicas de prevenção?
 
Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que o conjunto de ações na área de prevenção não tem impacto imediato sobre as taxas de suicídio. Se iniciarmos hoje ações que envolvam prevenção, treinamento para os profissionais, melhora na organização dos serviços de saúde mental, mesmo assim isso pode não aparecer efetivamente na variação da taxa de suicídio. Do ponto de vista epidemiológico, essa taxa nunca pode ser avaliada anualmente, mas sim em 5 ou 10 anos. Quando iniciamos uma série de intervenções, primeiro atuamos para melhorar os registros. Com isso, pode haver um aumento da informação que não quer dizer que aumentou o número de casos.
 
O que a taxa de suicídios no Brasil revela?
 
No Brasil hoje nós temos uma taxa de 5,7 por 100 mil habitantes [atualizada pelo Ministério da Saúde, em 20/9, para 5,8 por 100 mil habitantes no ano em 2016]. Temos um país com uma população enorme, bem diferenciada e essa taxa média vai pegar taxas muito altas e também muito baixas. Essa média é um dado correto do ponto de vista epidemiológico, mas não traduz o que ocorre nos chamados ‘clusters’ [grupos], que são grupos populacionais em risco ou acometidos por determinado evento. Temos, por exemplo, a taxa de 50 suicídios por 100 mil na população Guarani Kayowá, entre 13 e 19 anos do sexo masculino, que é altíssima, com o risco de dizimar determinada geração dentro de uma população. Esse é um exemplo de como a taxa média de suicídio pode esconder determinados grupos populacionais em risco. Se o Brasil quiser desenvolver um Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, ele tem que atuar fundamentalmente nessas populações em que as taxas estão altas e que podem ser os Guaranis, a população jovem na cidade de Porto Alegre, que tem uma taxa em torno de 20 por 100 mil, em Teresina ou em Macapá. Ou seja, a partir dos sistemas de informação de mortalidade, temos condições de dizer onde temos que atuar.
 
Como o Brasil tem atuado em estratégias de prevenção?
 
Em 2006, nós criamos a Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio, publicada pelo Ministério da Saúde, por meio de uma portaria em Diário Oficial. Ela foi importante, porque definiu as diretrizes dentro dessa visão de que o suicídio é uma questão de saúde pública. Em 2013, durante a Assembleia da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil, em conjunto com mais de 20 países, firmou um compromisso de reduzir em 10% a taxa de suicídio até o ano de 2020. 2020 já está aí e certamente não houve nenhum plano estratégico para atingir as metas dos 10% com a qual o Brasil se comprometeu. Por exemplo, os Estados Unidos lançaram a Estratégia de Prevenção ao Suicídio, em 2001; onze anos depois eles conseguiram elaborar uma nova estratégia a partir de um relatório com as falhas e as lacunas. Essa é uma política correta: lançar uma estratégia e um plano, com prazos definidos. Nós não temos um plano nacional.
 
O que poderia ser feito no Brasil?
 
Para países grandes como o Brasil, não adianta ter as mesmas metas para todos os lugares, pois as metas devem estar vinculadas a certas intervenções. Eu não posso dizer que vou reduzir as taxas de suicídio em 10% para o país inteiro, porque o Brasil tem recursos humanos, institucionais e orçamentários diferentes nas diversas regiões. O que estou falando é que os planos têm que conter todos os elementos de um planejamento correto, significativo, incluindo a avaliação desde o início e com recursos disponíveis. Produzir planos que apenas contenham um conteúdo teórico, de definição de metas e objetivos, mas não tenham orçamento, é apenas uma promessa de intenção e não leva a lugar nenhum.
 
Qual é o papel das equipes de saúde nos cuidados com essa questão?
 
O treinamento geral das equipes e a organização de serviços de saúde básica e mental é fundamental, porque essas são as portas de entrada do SUS, que podem captar os indivíduos que estão em sofrimento. Sem dúvida, o treinamento junto com a organização dos serviços pode permitir que esse indivíduo seja adequadamente atendido. Podemos exemplificar os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que são dispositivos de saúde mental, mas não só eles, também a própria Estratégia de Saúde da Família, que pode ser uma referência importante, desde que os profissionais que estão trabalhando nessas equipes estejam bem treinados para identificar os casos de comportamento suicida e sobre o que fazer diante de situações em que eles percebam algum tipo de risco.
 
Por que falar sobre suicídio foi e ainda é um tabu?
 
As escolas e os locais de trabalho, de maneira geral, procuram manter um certo segredo por conta da imagem. Por exemplo, para que não haja relações de que aquele aluno estava sofrendo bullying e a escola não tomou as medidas necessárias. No trabalho, porque nenhuma empresa quer ter o seu nome associado à possibilidade de que houve um suicídio dentro de seu ambiente. No âmbito familiar, porque as famílias se sentem envergonhadas diante de um suicídio. Não é algo que as pessoas deliberadamente vão falar. As pessoas se sentem culpadas e isso faz com que o suicídio fique ali guardado por muito tempo. Às vezes isso não é falado nem para a geração seguinte, aquilo é guardado por uma ou duas gerações até o momento em que aparece. O suicídio se ‘esconde’ por esses motivos, não é algo que as pessoas compartilham com a mesma facilidade quando dizem que um familiar morreu de uma doença.
 
Por que é importante dar visibilidade ao tema?
 
Quando lançamos as diretrizes da Estratégia Nacional, elas falavam inicialmente em dar maior visibilidade ao tema. Nos primeiros momentos não se dava espaço para falar de suicídio. As edições dos jornais tinham uma orientação para não se tocar no assunto. Dar visibilidade ao problema era poder falar. Não noticiar os meios como o suicídio se realiza, mas poder debatê-lo como uma questão de saúde pública. Como o suicídio também pode estar relacionado a questões de saúde mental, carrega os tabus e os mitos ligados aos transtornos mentais e seus preconceitos. As pessoas são capazes de dizer ‘Hoje eu vou num médico, vou num dermatologista, num endocrinologista”, mas não dizem ‘hoje eu vou num psiquiatra’. Isso tem repercussões no trabalho e na vida, no modo como você é visto pelo outro.
 
Como é possível identificar um comportamento suicida?
 
Sem dúvida, é preciso levar em consideração tudo o que o indivíduo fala. Quando ele diz: “Eu tinha vontade de morrer, eu queria me matar”, isso sempre tem que ser levado em conta. Essa é uma fala dita por quem, em princípio, está tendo algum tipo de sofrimento ou dor mental. Temos que dar atenção a esse pedido de ajuda de alguma forma. O indivíduo que vai largando as coisas que vinha fazendo habitualmente e de que gostava, foi se afastando das pessoas, se isolando. Essa pessoa é alguém que pode estar em risco. Hoje com as redes sociais não se sabe ao certo onde está o indivíduo. Sabe-se que ele está no celular, no computador, mas não em que ambiente ele está. O convívio pessoal não pode ser substituído pelo convívio virtual.
 
Que populações ou pessoas estão mais em risco?
 
Também tem chamado bastante a atenção a questão do bullying nas escolas e nas universidades, porque esse é um fator que pode provocar um isolamento no indivíduo. Isso ocorre com maior frequência quando ele migra de um lugar para estudar em outro, porque com isso deixa de contar com o apoio familiar. Construir amizades leva um determinado tempo. A questão do abuso de álcool e drogas é outro fator bastante importante. Também a exclusão social vivida por algumas populações, como a população LGBT. Isso tende a acontecer mais em cidades menores, em que a pressão social é ainda maior, ou em famílias extremamente rígidas. Além do que, existem aqueles que aparentemente não deixam nenhum sinal e que as pessoas em volta vão dizer: ‘Puxa vida, como eu não percebi que aquela pessoa estava sofrendo?’. São aquelas situações em que o acaso faz com que o indivíduo, num determinado momento, tenha um impulso e com o agravante de que faltam alguns fatores de proteção. Pode acontecer, inclusive, com aqueles que estão em tratamento psiquiátrico ou fazendo psicoterapia.
 
Como acolher e oferecer ajuda a uma pessoa em sofrimento mental?
 
Primeiro, o indivíduo tenta o suicídio não é porque ele queira morrer, ele está em sofrimento. Ele tem uma dor psíquica e o que ele quer é diminuir esse sofrimento. O sofrimento dói. Ele não quer acabar com a vida, ele quer parar de sofrer. Esse indivíduo, às vezes, não sabe como dar conta disso ou pode achar que não vai ter recursos. Às vezes ele não imagina que um tratamento médico ou psicoterápico pode ajudá-lo nesse sofrimento; ou pode até pensar que ajudaria, mas não dispõe dos recursos suficientes para isso, porque é preciso encontrar disponível uma rede de acolhimento. Ele tem que ser acolhido.
 
Uma das nossas grandes preocupações em relação ao Setembro Amarelo é não somente iluminarmos a cidade inteira. O que nós queremos é que aqueles que precisam de acolhimento, possam encontrá-lo em um serviço disponível. O sistema tem que estar aberto a esse indivíduo, porque a crise é clínica e não burocrática. Se eu acendo a luz e pinto a cidade de amarelo, dizendo: ‘Se você está extremamente ansioso, se você está sofrendo de depressão, se você está pensando em suicídio, procure um serviço’; aí, quando o indivíduo bate à porta, ele escuta: ‘Volte daqui a três meses’. Os serviços têm que estar de portas abertas e disponíveis para atender essas pessoas.
 
Como cuidar daqueles que ficam e que são diretamente impactados, como familiares e amigos?
 
Hoje nós temos intervenções para essas pessoas, é o que chamamos de “pósvenção”, para esses chamados “sobreviventes”, que são os enlutados pelo suicídio. O trabalho com os sobreviventes é um trabalho de escuta, em que os grupos se apoiam, as pessoas conversam entre si, contam as experiências, narram como cada um está vivendo, como deu sequência à vida. As histórias são muito particulares de cada um, isso diz respeito ao vínculo que cada pessoa tinha. Em geral eles narram como é bom terem começado a participar de grupos de apoio, porque são locais em que eles conseguiram falar com outras pessoas que também tinham perdido alguém próximo. As pessoas passam por vários processos depois da perda, como culpa ou raiva. É possível que você tenha feito tudo o que era possível, levou ao psiquiatra, aquela pessoa fazia um tratamento e mesmo assim ocorre um suicídio. Os sobreviventes sempre falam que é muito difícil, que não esquecem. Manter a memória dessa perda também é significativo. Alguns falam em tentar colocar os bons momentos que viveram juntos no lugar daquela perda. Sem dúvida viver o luto também é fundamental. Não podemos ter nenhum plano de prevenção do suicídio que não inclua também a “pósvenção”, já que essa se torna uma população em risco, porque passa a ter um suicídio em família.
 
Como a crise econômica e o cenário de desesperança podem afetar a questão do suicídio?
 
Podemos olhar para trás e ver o que aconteceu em muitos países. A crise econômica que se abateu em 2008, principalmente no sul da Europa (Portugal, Espanha, Itália e Grécia), foi trágica. Provocou cortes de aposentadoria, pressão dos bancos sobre hipotecas, corte de verbas. Isso levou a um aumento na taxa de suicídio, principalmente na população idosa, que foi mais afetada. Também tem um impacto sobre a população jovem, que começava a fazer planos. Os cortes em programas também diminuem a capacidade de atendimento da população que procura um serviço de saúde. O desemprego também coloca uma faixa importante da população fora do mercado de trabalho e o local de trabalho é onde o indivíduo passa grande parte do seu dia e é fonte de vínculos sociais. Nós estamos sem dúvida num momento crítico. E não adianta deixar pegar fogo para depois tentar apagar.
 
Foto: Eduardo de Oliveira/Radis

Fonte: Entrevista Radis
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