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Entrevista: Hugh Lacey reflete sobre ética na ciência

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Publicado em:27/06/2019

Por Joyce Enzler

Entrevista: Hugh Lacey reflete sobre ética na ciênciaNo atual contexto, em que 239 agrotóxicos são liberados somente em 2019 – o maior volume da história no país –, em que transgênicos (organismos geneticamente modificados) foram introduzidos no país sem se pensar nas alternativas agroecológicas, na saúde e no ambiente, torna-se primordial refletir sobre os princípios que devem guiar cientistas. Em entrevista ao Informe ENSP, o professor emérito de filosofia da Família Scheuer e pesquisador sênior na Swarthmore College (Pennsylvania, EUA), Hugh Lacey, afirma que as questões éticas e científicas são imbricadas.
 
 Segundo o professor, a pesquisa científica deve ser conduzida dentro de um contexto de organização social e cultural, interagindo com os saberes tradicionais –  indígenas ou quilombolas – e administrando as inovações tecnológicas, para assegurar que os seus usos fortaleçam os direitos, o bem-estar de todos e as condições para a ampla participação numa sociedade democrática e, ao mesmo tempo, possibilitem que a natureza seja respeitada. Confira a entrevista.
 
 
Informe ENSP: O governo liberou, em cinco meses, 239 defensivos agrícolas. É possível dimensionar os impactos socioambientais dessas medidas? E em relação à saúde da população?
 
Lacey: De acordo com denúncias, o uso de muitos deles foram proibidos na Europa, Estados Unidos e outros países. Isso se dá pelas sérias ameaças à saúde ocasionadas pelo consumo de produtos que contenham resíduos de agrotóxicos e pela exposição a eles nos campos onde são usados; e essas ameaças são ampliadas pela crescente poluição das águas e solos, que são causadas pelo seu uso. Essas substâncias também prejudicam organismos não humanos, particularmente os microorganismos no solo, os quais possuem um papel crucial em manter a fertilidade do solo e a produção de alimentos saudáveis. 
 
As ameaças são ainda maiores que aquelas causadas pelo uso dos agrotóxicos comumente usados, que estão documentados no dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Além disso, desde que o uso exagerado de agrotóxicos tornou-se excessivamente uma função essencial na consolidação e expansão do hegemônico sistema alimentício/agrícola ao agronegócio, a introdução dessas inovações é capaz de magnificar os impactos do sistema abrindo novas terras para agricultura, o que frequentemente envolve a destruição de florestas e ecossistemas nativos, produzindo monoculturas, contribuindo de várias formas para uma maior emissão de gases de efeito estufa, que estão causando o aquecimento global; não respondendo suficientemente ao direito de todos à comida segura e prejudicando as condições necessárias para formas de cultivo vinculadas a muitas famílias de fazendeiros, incluindo aqueles que são necessários para agroecologia.
 
Informe ENSP: Seguindo o princípio da precaução, quais as medidas que deveriam ser tomadas antes da liberação dos transgênicos no ambiente?
 
Lacey: As investigações deveriam considerar o potencial dano à saúde, ao meio ambiente e à sociedade, que pode ser ocasionado pelo uso de transgênicos. Os estudos deveriam ser conduzidos com metodologias apropriadas, e seus resultados avaliados utilizando critérios e padrões que foram aceitos a partir de um diálogo democrático, no qual todos os grupos interessados pudessem participar.
 
Os transgênicos usados na agricultura não são apenas plantas com genomas modificados por técnicas de engenharia genética. Eles também são componentes de agroecossistemas e recebem agrotóxicos e outros produtos da tecnociência, commodities e objetos negociados no mercado, os quais têm seu uso restrito pelas corporações do agronegócio em acordo com o direito de propriedade intelectual. Atualmente, esses organismos geneticamente modificados (OGMs) são partes integrantes do hegemônico sistema alimentício/agrícola.
 
O uso de OGMs ocasiona danos que podem ser gerados não só como uma consequência do consumo de produtos de culturas transgênicas, mas também como consequência da exposição aos agrotóxicos, que são componentes integrais dos agroecossistemas, nos quais são plantados, cultivados e colhidos. Outro fator relevante é a destruição da biodiversidade causada pelo seu cultivo em monoculturas. 
 
Após a liberação dos transgênicos para agricultura, seus usos deveriam ser monitorados para investigar se algum dano não previsto anteriormente pode acontecer. Mecanismos regulatórios, do mesmo modo, devem estar em vigor para permitir sua retirada caso tal dano seja observado. Além disso, os benefícios e riscos do uso de transgênicos deveriam ser comparados – informados por investigações sistemáticas – com os de abordagens agrícolas alternativas, bem como com os de agroecologia. Se as deliberações não são informadas por tais investigações comparativas, o impacto do uso de transgênicos pode afetar o direito à segurança alimentar.
 
Informe ENSP: O que a sociedade civil pode fazer para condicionar o crescimento econômico à segurança alimentar?
 
Lacey: Eu gostaria de poder responder essa pergunta com um conjunto de propostas bem definidas, que estão sendo implementadas com sucesso em todo o mundo e que desafiam seriamente o atual domínio do neoliberalismo. Mas, infelizmente, em alguns países, a segurança alimentar está subordinada ao interesse do crescimento econômico e do mercado. Todavia, é importante fortalecer e participar de organizações, movimentos rurais e urbanos que visem priorizar a disponibilização de alimentos adequados e nutritivos a todos e que estejam trabalhando para formular e implementar políticas públicas que alcancem esse objetivo.
 
Outro componente relevante é resistir às políticas e práticas que tratam atividades agrícolas como meios para produzir mercadorias, que contribuem para os lucros das empresas do agronegócio e para satisfazer interesses governamentais em aumentar as exportações para lidar com a balança nacional de pagamentos objetivos. Isso requer colaboração com outros movimentos que desafiam a primazia do crescimento econômico, como os movimentos que confrontam os desafios do aquecimento global e as mudanças climáticas, os movimentos indígenas, o movimento ambiental em geral, os movimentos pelos direitos civis e o direito à assistência médica e educação universal, e aqueles contra a entrada de capital estrangeiro nos setores agrícolas e outros da economia nacional. 
 
Há um papel importante para a universidade aqui também – que nem sempre cumpre adequadamente – , como: envolver-se em investigações relativas a esses assuntos, desenvolver currículos que lhes permitam ser estudados pelos alunos em todas as disciplinas relevantes, para dar clareza sobre as disputas éticas relacionadas, e desafiar a primazia atual que tende a ser dada ao crescimento econômico e aos valores individualistas, em vez de valores como solidariedade, justiça social, participação democrática e sustentabilidade do meio ambiente.
 
Informe ENSP: Como avaliar e regulamentar o que é considerado ético nas ciências e na saúde, em estruturas que colocam o lucro acima da vida e do ambiente?
 
Lacey: Como essa questão é respondida depende especificamente dos tipos de atividades em que a pessoa está engajada; portanto, é importante observar uma variedade de respostas complementares. Minha própria resposta, como filósofo da ciência, em colaboração com colegas da USP, foi produzir uma análise – nós a chamamos de modelo –  sobre os meios nos quais valores podem legitimamente afetar atividades científicas.
 
Os meios que dependem do aspecto da ciência sob considerações são: a adoção de uma abordagem metodológica em um projeto de pesquisa; o engajamento ativo na investigação empírica e/ou teórica;  a avaliação de alegações científicas como portadores de conhecimento e compreensão; a divulgação de resultados científicos e educação científica e a aplicação do conhecimento científico. Eu sustentei que – consiste com as afirmações científicas sendo avaliadas imparcialmente – existem relações que se reforçam mutuamente entre adotar uma abordagem metodológica e manter valores específicos, de modo que se tornam conhecidos, na pesquisa científica, significativamente os valores que são mantidos. 
 
Precisamos valorizar as abordagens que priorizam os valores ligados ao prolongamento da vida e à sustentação do meio ambiente, que se contrapõem aos que defendem os valores de crescimento econômico não sustentável e do lucro a qualquer custo. Neste sentido, levanto a seguinte questão: “Como deve ser conduzida a pesquisa científica – por quem, sob a supervisão de quem, no contexto de quais tipos de organização social e cultural, com quais variações localmente determinadas –, que prioridades terá, que metodologia utilizará; como interagir com os saberes tradicionais/indígenas combinando-os com o desenvolvimento e a administração das inovações tecnológicas, assegurando que seu uso fortaleça os direitos e o bem-estar de todos? Que se criem condições para que haja uma ampla participação, que torne cada vez mais democrática a sociedade, com o compromisso de respeitar a natureza, assegurando que seus poderes regenerativos não sejam mais solapados, mas sim restaurados sempre que possível."

Tradução: Mariane Freitas


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