Busca do site
menu

Entrevista: Pesquisa da ENSP analisa relatos de mães que sofreram 'violência obstétrica'

ícone facebook
Publicado em:30/05/2019
“O Ministério da Saúde propondo a abolição do uso da expressão ‘violência obstétrica’, por considerá-la imprópria, está indo na contramão de tudo o que vem sendo pesquisado nacional e internacionalmente sobre o tema e, o mais grave, calando a voz de muitas mulheres.” É o que diz a enfermeira Lizandra Flores Chourabi, doutora em Saúde Pública pela ENSP, cuja tese analisou as práticas dos profissionais de saúde e os relatos das mães atendidas num hospital universitário do sul do país.
 
A tese Representações e práticas sociais dos profissionais de saúde e usuárias sobre a assistência ao parto em um Hospital Universitário do Sul do Brasil - um estudo à luz do conceito de violência obstétrica foi defendida em agosto de 2018 na ENSP por Lizandra Flores Chourabi, sob orientação da pesquisadora Kathie Njaine e coorientação de Fátima Cechetto. Enfermeira especializada em Obstetrícia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e em Saúde da Família, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Lizandra trabalha no Núcleo de Promoção de Saúde do Trabalho da Universidade Federal de Santa Maria, Hospital Universitário de Santa Maria. 
 
Durante o trabalho de campo da pesquisa, Lizandra conheceu um grupo de mulheres na cidade de Santa Maria que relatava “marcas da violência obstétrica” passadas durante o parto, por exemplo, o direito à lei do acompanhante e a um parto respeitoso embasado em evidências científicas. Em 2016, a violência  obstétrica passou a ganhar visibilidade nas redes sociais a partir do relato da professora Bruna Fani, que perdera seu filho, narrando toda a dor dessa perda, vítima de violência obstétrica. “Diante de cerca de 5.500 visualizações virtuais e de toda a atenção midiática ao caso, novos relatos consternadores de morte de crianças surgiram”, lembra Lizandra. 
 
O grupo de pesquisa de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, elaborou nota de desagravo à proposta de abolição do uso da expressão “violência obstétrica” por também considerá-la imprópria. Leia a matéria.
 
Confira a entrevista com Lizandra Flores Chourabi!
 
Informe ENSP: A sua tese analisa as percepções dos profissionais de saúde e usuárias sobre a assistência ao parto em um Hospital Universitário do Sul do Brasil. Participaram do estudo 10 profissionais de Saúde (4 médicos, 5 enfermeiras e 1 técnica de enfermagem) que trabalham nos serviços de atendimento obstétrico. Quantos atendimentos de partos e cesarianas faz o hospital? 
 
Entrevista: Pesquisa da ENSP analisa relatos de mães que sofreram 'violência obstétrica'Lizandra Flores Chourabi: Conforme dados do serviço de estatística do Hospital Universitário (HU), o número total de partos realizados, em 2016, foi de 2.125; em 2017, foi de 2.318. Participaram do estudo três profissionais de saúde do sexo masculino e sete do feminino. O tempo de trabalho na instituição variou entre três e trinta anos. O nível de escolaridade varia de um com ensino médio completo, seis com pós-graduação lato sensu, sendo que cinco deles com a especialização em obstetrícia e um em nefrologia, além de três profissionais com pós-graduação stricto sensu, sendo que um com mestrado e dois com doutorado. 
 
 
 
 
Informe ENSP: Qual o perfil epidemiológico das 15 mulheres que participam da pesquisa e foram atendidas pelo Centro Obstétrico do HU?
 
Lizandra Flores Chourabi: Elas estavam na faixa etária entre 19 e 35 anos. Quanto ao estado civil, sete eram casadas, seis tinham união estável, uma era divorciada e uma solteira. Quanto à escolaridade, sete tinham ensino médio completo e seis incompleto, enquanto duas o fundamental completo. A maioria das participantes era moradora da zona urbana do município, e uma residia em outro município. Quanto ao número de filhos, o grupo em estudo tinha a média de dois, sendo que a menor e a maior prole foi de um e de quatro, respectivamente. Quanto à ocupação das entrevistadas, eram seis donas de casa, duas técnicas em administração, duas auxiliares administrativo, duas estudantes, um almoxarife, uma técnica de computação e uma cozinheira; 11 mulheres se autodeclararam brancas e 4 negras. O tipo de parto de maior incidência vivenciado pelas mulheres foi a cesariana, no total de dez, e o total de partos normais foi cinco.
 
Informe ENSP: A sua pesquisa observou que os partos considerados fisiológicos são pouco ensinados no HU, e os profissionais de Saúde atuam prioritariamente dentro do modelo de atenção biomédico e tecnocrático. As mulheres destacam diferentes formas de violências sofridas, tais como a negligência, a não valorização das suas queixas e o tratamento frio e impessoal por parte dos profissionais. Por que tipos de violência elas passaram e com que frequência?
 
Lizandra Flores Chourabi: Os tipos de violência que foram relatados com mais intensidade foi a violência psicológica e a violência física. Essa última foi constatada nos relatos de dor física quando administrada a ocitocina sintética, que causa hiperestimulação uterina diminuindo o intervalo entre as contrações e seu aumento de intensidade. E pelo uso da episiotomia, que é uma intervenção que causa dor no pós-parto e interfere na vida sexual das mulheres. Essa foi a causa de separação conjugal de uma das entrevistadas. Uma das depoentes disse: “Fizeram a episiotomia sem meu consentimento, ou seja, emendaram a vagina com meu ânus praticamente, e, depois, não consegui sentar por meses.” Além disso, ela contou que foi obrigada a fazer força a mais que sua capacidade para nascer seu bebê, acarretando o afrouxamento dos seus dentes e problemas sexuais futuros com seu companheiro, o que acabou em uma separação, interferindo significativamente na sua  sexualidade para sempre, causando traumas em partos subsequentes, o que denomina-se “tocofobia”. 
 
A violência psicológica no HU foi relatada pelas mulheres pela desatenção, o desinteresse e a falta de empatia com o sofrimento delas. A maior parte das queixas se refere a condutas de negligência e culpabilização por elas não se comportarem de acordo com as expectativas dos profissionais (não saberem parir). O reflexo da violência obstétrica são a dor, a angústia e o desespero das marcas violentas deixadas no corpo, na psiquê, no luto da perda do filho(a) ou na elaboração de ter que lidar com uma desidealização de um filho, que terá sequelas para o resto de suas vidas, as adoecem, e, para muitas, essas dores se tornam insuportáveis.
 
As marcas psicológicas deixadas pela violência obstétrica são muito profundas; o evento acometido a nós mulheres, e também apontado em pesquisas científicas, equivale a momentos horrendos de tortura. As mulheres que sofrem violência obstétrica podem desenvolver sintomas clínicos psiquiátricos, classificados, conforme o Manual de Psiquiatria DSM-5 de Stress Pós-Traumático, por transtorno de pânico, ansiedade e depressão. Manifestam também sentimentos de culpa, como no caso das mães que tiveram seus filhos com sequelas neurológicas; por serem culpabilizadas pelo desenrolar trágico do parto, com frases como, “viu mãe, tu não ajudaste?”.
 
Informe ENSP: As intervenções, como a manobra de kristeller, a posição supina, a episiotomia e a ocitocina, são utilizadas de forma subsequentes nas práticas obstétricas, independente dos desejos das mulheres. Alguns profissionais reconhecem que a administração recorrente da ocitocina e o recurso à episiotomia são formas de violências obstétricas. No entanto, indicam que essa forma de violência contra a mulher precisa ser mais debatida no meio acadêmico. Que práticas são essas?
 
Lizandra Flores: As práticas obstétricas rotineiras no HU que produzem violência obstétrica  são:
Ocitocina sintética, uma medicação que age seletivamente sobre a musculatura lisa do útero produzindo contrações rítmicas ou incrementando a frequência das já existentes, aumentando o tono uterino. O famoso “sorinho” torna as contrações extremamente fortes e doloridas, levando, muitas vezes, à alteração do batimento cardíaco do bebê, tornando necessário o uso de anestesia e as cascatas de intervenções. 
 
Amniotomia artificial, que é um procedimento no qual uma ruptura é feita pelo profissional nas membranas que envolvem o feto. 
Manobra de Kristeller, uma manobra obstétrica executada durante o parto que consiste na aplicação de pressão na parte superior do útero. Os profissionais de enfermagem estão proibidos de realizá-la pelo Conselho Federal de Enfermagem.
 
Posição de litotomia: posição deitada de barriga para cima, com as pernas em perneiras, também conhecida como posição ginecológica.
 
Episiotomia é uma incisão cirúrgica feita através do corpo do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus). Também chamada de “pique” por muitos profissionais, e, depois, sendo suturada com o chamado “ponto do marido” – expressão pejorativa  que coloca a mulher em uma relação de poder desigual e misógina. 
 
Informe ENSP: Quais os resultados de sua pesquisa e qual a natureza dos relatos que você coletou?
 
Lizandra Flores Chourabi: Os resultados obtidos pela pesquisa são advindos da leitura e da análise dos depoimentos dos profissionais de saúde e das mulheres entrevistadas, sendo os relatos elencados em categorias centrais com suas subcategorias. Eu explico: 
 
- Práticas iatrogênicas que se perpetuam sem respaldo científico
 
Ouvi, recorrentemente, durante o período do meu trabalho de campo, o relato do caso de um óbito de um bebê que chegou com vida, ainda dentro do ventre da mãe, e acabou sendo retirado supostamente morto, após uma cesárea que teve uma demora considerável. Esse fato, que ocorreu em fevereiro de 2017, exemplifica a ineficiência da assistência ao parto e do cuidado às mães e bebês no HU. Nesse caso, segundo relatos, o residente da pediatria fez manobras de reanimação e, após as tentativas fracassadas, constatou o óbito da criança. O bebê permaneceu no expurgo (local  destinado à lavagem de material contaminado), em um berço enrolado toda a tarde, aguardando ser transportado para o setor de patologia do hospital, desde o momento da declaração do óbito. Uma enfermeira que chegou no plantão à noite foi até o berço onde se encontrava o bebê e verificou que a criança tinha sinais de vida e começou a falar alto dizendo que a criança estava viva. A neonatologia foi chamada para avaliar e foram constatados sinais de vida.
 
Desde o momento da constatação do óbito deste bebê até o encaminhamento à UTI, passaram-se seis horas sem assistência. Essa criança já fez 2 anos e apresenta sequelas causadas por essa iatrogenia (a noção de algo danoso causado por profissionais de saúde, como enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, nutricionistas e demais profissionais, num ato que provocará prejuízos ao paciente).
 
As práticas consideradas iatrogênicas, desnecessárias na maioria das vezes, acontecem no HU pela inexperiência dos alunos em processo de formação, associadas à supervisão inadequada dos professores, preceptores que deveriam dar o suporte e os ensinamentos sobre as evidências científicas. É necessário, portanto, conhecer como alguns consensos e protocolos vigoram nos estabelecimentos de saúde e passam a ser naturalizados. Isso é importante, pois a morbimortalidade materna e neonatal está fortemente associada ao uso de práticas obsoletas que não estão respaldadas em evidências científicas.
 
Observei o uso de várias  dessas práticas iatrogênicas. Um caso de uma parturiente me chamou a atenção. Helena, primeiro filho, chegou ao centro obstétrico com 39 semanas e 8 cm de dilatação, sinais de que estava próxima a dar à luz. Estava acompanhada de sua mãe e do marido, que aguardavam do lado de fora desse centro. Encontrei a parturiente deitada na maca de atendimento do box de consulta sozinha, com muitas dores devido às contrações. Uma doutoranda entrou e fez um exame para o monitoramento dos batimentos cardíacos do bebê, uma cardiotocografia. Para esse exame, a parturiente deve permanecer deitada de barriga para cima, sem poder se movimentar.
 
O exame ultrapassou o tempo previsto de 20 minutos, levando cerca de 45 minutos. A mulher reclamava o tempo todo de um grande desconforto e solicitava a retirada do aparelho. Devido à imobilidade e por conta de vários outros exames concomitantes que também eram realizados na parturiente, a mesma reclamava e sentia mais dor, mas era orientada pela doutoranda, que entrava e saia várias vezes do box, a aguentar firme até terminar. A doutoranda coletava dados sobre o pré-natal, exames e ultrassom, para que a residente do primeiro ano (R1) pudesse preencher a ficha de internação. Outros estudantes também entravam e saiam do box, fazendo perguntas à parturiente que aparentava estar exausta, pois mal conseguia responder às perguntas que lhe faziam os médicos. O parto parecia estar bem próximo, uma vez que as feições de dor e os gritos de Helena aumentavam a cada contração. A R1 se encontrava no balcão junto ao computador fazendo as anotações e me disse que estava muito cansada por estar há trinta horas no serviço. Era seu terceiro dia de trabalho no Centro Obstétrico. Terminados os exames e o processo de internação, Helena foi transferida para um leito no corredor, pois a ala de pré-parto estava lotada. Nesse momento, o marido da parturiente chegou, e ela foi orientada pela R1 a deitar no leito, dizendo: “vamos romper sua bolsa”. A residente do terceiro ano (R3), que era o profissional mais experiente no Centro Obstétrico no momento, veio realizar o procedimento de rompimento da bolsa e ensinou a R1 a técnica de introduzir o amniótomo enquanto Helena tinha contrações. Em seguida, a R3 auscultou os batimentos do bebê e pediu à parturiente para fazer “força comprida" enquanto fazia toque vaginal. Logo após, o rompimento da bolsa e avaliação do toque vaginal pela R3, a R1 voltou a ficar sozinha com a parturiente e continuou a insistir para que a mesma fizesse força como se fosse fazer “cocô”. Em seguida, um residente do segundo ano entrou no local e repetiu o toque vaginal mais uma vez. A R2 disse que a parturiente estava com 9 cm e falou “é cedo ainda, esse bebê tinha que descer mais, acho que precisa corrigir esta dinâmica, vamos colocar ocitocina”. A técnica de enfermagem e a enfermeira prontamente instalaram o soro com a medicação e, em seguida, as contrações se tornaram mais intensas e dolorosas, como denunciavam as expressões faciais da parturiente. Antes de colocar o soro com a ocitocina, a parturiente estava se movimentando próximo ao leito, e após a medicação já não conseguia se movimentar.
 
Quando encaminhada para sala de parto, apesar de Helena não estar conseguindo mais andar, foi orientada pela R2 a caminhar carregando o soro preso ao seu braço para facilitar a descida do bebê. Na sala de parto, foi posicionada com a barriga para cima e colocados panos estéreis sobre as suas pernas e abdômen pela R1. Feitos os procedimentos de assepsia, a parturiente continuou a ser orientada a fazer força. Sem conseguir dar à luz, a R2 orientou a R1 a realizar o corte entre a vagina e o períneo da paciente (episiotomia).
Desde o primeiro momento que Helena deu entrada na sala de parto até o nascimento do seu filho, 10 pessoas (3 residentes, 4 acadêmicos de medicina, 1 preceptor da pediatria, 1 técnica de enfermagem, 1 enfermeira generalista) a examinaram e a orientaram a empurrar e fazer força para o bebê nascer. A R1 era orientada pela R2 a fazer o toque vaginal e, ao mesmo tempo, realizar movimentos de massagem e distensão do períneo, o que fazia Helena sentir muita dor a ponto de pedir que parassem. No intervalo das contrações, enquanto a paciente descansava das dores e do esforço para parir, notei que os residentes e os demais presentes na sala se concentravam nos órgãos genitais da parturiente como que ansiando pela saída do bebê. O marido de Helena estava ao lado da sua mulher e se encontrava visivelmente emocionado com aquele momento. Assim que nasceu, todos os olhares dos profissionais se concentraram na criança. A R1 da pediatria, orientada por seu preceptor, passou a realizar os procedimentos no bebê como aspirar as vias aéreas, passar uma sonda no estômago, administrar a vitamina K intramuscular e, por último, averiguar o peso. Em seguida aos procedimentos, o recém-nascido foi colocado em um berço aquecido, enquanto sua mãe era suturada. A cada ponto da sutura, Helena queixava-se de dor, mas parecia não ser ouvida pela R1 que se mostrava irritada com as reclamações, dizendo em tom ameaçador "para de se mexer, senão vou te deixar torta e não vou conseguir fazer".
 
Esta é uma das cenas que presenciei com frequência durante o período do trabalho de campo da pesquisa. No centro obstétrico do hospital universitário, verifiquei questões problemáticas de saúde pública relacionadas ao nascer que causam o sofrimento de muitas parturientes no momento de dar à luz.  O tempo médio em trabalho de parto, após a admissão, é de 5-6 horas. Em muitos casos, não são necessários mais do que dois exames vaginais, segundo as recomendações da OMS (1996) para a condução do trabalho de parto. Além disso, os exames de toques vaginais precisam ser registrados em partograma, que avalia também ausculta de batimento cardiofetal (BCF), integridade da bolsa das águas (rota ou íntegra), características do líquido amniótico (claro ou com presença de mecônio), descida da apresentação (plano de De Lee), frequência das contrações e medicamentos e fluidos infundidos e analgesia, caso tenha sido utilizada.
 
O toque vaginal deve ser realizado com parcimônia, e não como uma intervenção de rotina durante o trabalho de parto. O excesso desse procedimento é uma iatrogenia que pode levar a um parto vaginal operatório (parto a fórceps) ou cesariana devido à intervenção desnecessária. A exigência da posição horizontalizada e o comando incessante dos residentes para a paciente fazer força além da sua capacidade corporal não facilitaram em nada a saída do bebê. A decisão da equipe médica de realizar o corte vaginal no períneo intensificou o sofrimento de Helena, que não reclamava, mas esboçava dor a cada ponto realizado. 
 
- Ausência de protocolos definidos e o risco à segurança do paciente
 
Durante o período de observação em campo, verifiquei a diversidade e as mudanças de condutas que eram realizadas em especial pelos profissionais da medicina, categoria que detém a responsabilidade pelo desfecho final do parto. Isso trazia um sentimento de muita insegurança para as mulheres. Presenciei, várias vezes, a discordância de conduta entre profissionais da equipe, até no mesmo turno de trabalho. Um  exemplo disso eram as indicações da via de parto: um era a favor de se manter a conduta para parto vaginal e o outro queria encaminhar a mulher para cesárea. A parturiente, sem entender muito bem o que acontecia, era orientada em alguns momentos a deixar de se alimentar, pois há a necessidade do tempo de jejum para realizar a cesárea, para, logo depois, ser orientada a voltar a comer. A maioria das práticas segue condutas que não estão nos guidelines (padrão ouro nas evidências científicas). Essa ausência de protocolos definidos coloca em risco à segurança do paciente.
 
- Relações desiguais de poder
 
As falas das enfermeiras do HU destacam o poder dos médicos sobre a parturição, a baixa autonomia dos enfermeiros obstétricos e certa condição de submissão da categoria de enfermagem em relação à categoria médica nesse hospital estudado. Não há o reconhecimento profissional das enfermeiras obstétricas, apesar do grande avanço das políticas públicas de saúde. Destaca-se que, desde 1998, a Portaria MS/GM nº 2.815 tirou o foco do atendimento somente no médico, incluindo na tabela do Sistema de Informações Hospitalares do SUS o procedimento “parto normal sem distocia realizado por enfermeiro obstetra” (Brasil, 1998). No entanto, os serviços de saúde têm sofrido revezes em relação às diretrizes e avanços das políticas públicas do SUS. No HU do estudo, há uma relação distanciada e cerimoniosa entre o ensino e a assistência, em especial por parte do curso de enfermagem, que tem produzido muitas pesquisas, mas não tem mudado o atendimento ao parto, como relata uma enfermeira:
 
"A graduação da enfermagem não se integra nada aqui dentro do centro obstétrico, e nem sei o que eles fazem aqui dentro, não sei quantos dias ficam no campo [...], as professoras da enfermagem ficam mais na pesquisa. Bem diferente da medicina que domina, eles têm bastante autonomia para fazer as coisas, os doutorandos até demais, deixam eles suturando pacientes sozinhos na cesárea. A medicina está bem instalada aqui dentro, a enfermagem não, tinha que ocupar um espaço melhor (P1, enfermeira). "
 
Talvez, por isso, esteja ocorrendo esse não reconhecimento e baixa autonomia das enfermeiras assistenciais no HU. A transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho pressupõe a integração ensino-serviço, que compreende o trabalho em conjunto da academia (docentes e discentes) com os profissionais dos serviços de saúde e gestores do HU.
 
- Violência obstétrica como conceito a ser discutido no campo ensino-serviço
 
Para uma boa parte dos profissionais desse estudo, o conceito de “violência obstétrica” precisa ser discutido e problematizado à luz de suas práticas. A violência obstétrica foi apontada pelos profissionais como sendo parte do despreparo e da falta de conhecimento das mulheres sobre parto, fator esse que necessita ser corrigido no pré-natal. Nesse sentido, percebeu-se que, na visão dos profissionais, as mulheres que se encontram vulneráveis à violência no parto são culpadas por não saberem parir. A falta de aprofundamento entre os profissionais sobre o que é violência obstétrica leva a um esvaziamento do debate, um entendimento superficial, a um “jogo de empurra” de quem é a culpa que justificaria as práticas iatrogênicas. E, assim, se perpetuam práticas obstétricas para as quais não existem evidências científicas. Já nos depoimentos das mulheres, a violência obstétrica se manifesta pela impessoalidade e frieza como são tratadas pelos profissionais.
 
Elas destacaram diferentes formas de violências obstétricas sofridas. A não valorização das suas queixas, a negligência, a culpabilização por elas não estarem se comportando dentro das expectativas esperadas pelos profissionais são algumas das principais reclamações. Muitas vezes, o pedido pela realização de cesárea é induzido pelo medo, ao ouvir o sofrimento das mulheres em trabalho de parto, pois ficam separadas apenas por boxes de cortinas, sem que haja uma distinção entre a dor fisiológica e a provocada pela violência obstétrica de rotina. 
 
Informe ENSP: Por tudo isso, você diz, na sua tese, ser indispensável que ocorram mudanças na formação acadêmica dos profissionais de saúde do HU, de forma a valorizar as boas práticas de atenção ao parto e nascimento preconizados pela Política de Humanização ao Parto e Nascimento, valorizando a equipe multiprofissional de forma efetiva e o protagonismo das mulheres. De que mudanças estamos falando?
 
Lizandra Flores Chourabi: É importante que o currículo e a qualidade da formação em obstetrícia sejam discutidos pelos professores e profissionais de saúde da ponta. O ensino não pode estar desconexo do que acontece no mundo externo, pois a academia forma os profissionais para a sociedade. Nos círculos acadêmicos mais preocupados com bons resultados, o uso de evidências científicas é realidade, sendo buscada a todo tempo. A incorporação de recomendações simples, por exemplo, deambular ou não usar a prática de acesso venoso, da ocitocina e da episiotomia de rotina pode ser uma oportunidade de reflexão necessária nesse espaço dominado pelo tecnicismo, assim como ajudar os profissionais a desenvolver uma atenção preventiva e de certa maneira “contemplativa,” que valorizem o ensino do parto fisiólogico.
 
Informe ENSP: "A força dos movimentos sociais tem clamado por justiça pelas mortes perinatais ocorridas no HU, colocando as mulheres em permanente estado de vigilância contra a violência obstétrica.", disse você no estudo. Como se organiza o movimento na sua cidade, Santa Maria/RS, em prol da humanização do parto e do nascimento?
 
Lizandra Flores Chourabi: Nas várias reuniões em que participei, durante o trabalho de campo da pesquisa, conheci um grupo de mulheres na cidade que relatava não ter conseguido ser respeitado nas suas escolhas do parto, preceito base da Política de Humanização do parto e Nascimento. Elas traziam marcas da violência obstétrica passadas durante o parto, por serem violentadas em seus direitos básicos, como por exemplo, o direito à lei do acompanhante e a um parto respeitoso embasado em evidências científicas. No ano de 2016, a violência  obstétrica passou a ganhar visibilidade nas redes sociais a partir do relato, na rede social, da professora Bruna Fani, que perdera seu filho, narrando toda a dor desta perda, vítima de violência obstétrica. Esse impactante e triste relato passou a ganhar muita visibilidade nas redes sociais e na mídia local e, diante das tantas visualizações virtuais, cerca de 5.500 mil e quinhentas, e de toda a atenção midiática, novos relatos consternadores de morte de crianças surgiram não só no município, mas em todo o Brasil. Foi então que, em abril de 2016, em torno de 200 pessoas se mobilizaram na cidade de Santa Maria/RS, na maioria mulheres mães e crianças, e foram às ruas para gritar em nome de crianças que não poderiam fazer isso por si próprias, seja por já não estarem entre nós, seja por estarem com danos neurológicos consequentes do parto.
 
Num mesmo hospital, no espaço-tempo de um ano, há mais de quatro famílias, atendidas pela mesma médica, que tiveram – de um parto saudável e um bebê saudável – crianças com paralisia cerebral, decorrentes de asfixia durante o parto, por falta de assistência, estrutura ou humanização no atendimento.
 
Os pais se encontraram na UTI neonatal do HU pela paralisia e anóxia cerebral causada pelo parto violento. A surpresa para esses pais foi saber que o HU e o Hospital Casa de Saúde  apresentavam muitos casos de violência obstétrica. A partir dessa demanda do grupo, no ano de 2016, foram realizadas atividades na cidade para dar visibilidade à violência obstétrica no município. 
 
O grupo M.A.E.S. (Mulheres, Apoio, Empoderamento e Saúde), do qual eu faço parte como profissional de saúde, é um movimento de mulheres mães, de famílias e redes de apoio, que tem o apoio de uma psicóloga e de pessoas da comunidade e busca incluir e mobilizar a comunidade nos debates acerca dos direitos da gestante, ainda desconhecidos pela comunidade em geral, como o direito ao acompanhante. 
 
Tivemos alguns importantes avanços, como no final do ano de 2017, quando, após muitas reuniões durante o mesmo ano com a Câmara de Vereadores da cidade, com a Comissão de Saúde e Meio Ambiente, assim como a Comissão de Direitos Humanos, convocou-se uma audiência pública, que deixou a comunidade e vereadores impactados com os relatos de violência obstétrica. Diante de tamanha comoção e clamor, instaurou-se, impulsionada pelo movimento de mães da cidade de Santa Maria, a Frente Parlamentar contra a Violência Obstétrica na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, no mesmo ano de 2017. Também tivemos sancionada e instituída, pelo então prefeito da cidade em 2017, a Semana Municipal de Conscientização sobre Violência Obstétrica, que ocorre, a partir de então, no fim do mês de novembro.
 
Informe ENSP: O movimento ganhou repercussão na imprensa, certo?
 
Lizandra Flores Chourabi: Em 2018, na programação dessa semana municipal, o programa do GI Profissão Repórter fez uma matéria (https://globoplay.globo.com/v/7229223/) sobre o grupo e mostrou a posição dos administradores dos hospitais sobre a violência obstétrica de se eximir de suas responsabilidades colocando a culpa nas mulheres e no descaso da saúde pública por parte do governo. O grupo M.A.E.S. é um grito de mulheres que estão se movimentando para dar um basta a mais essa forma de violência contra a mulher. Estamos em busca constante pelo direito de parir sem violência, com respeito à nossa existência e autonomia. E, assim, cada vez mais resgatar o protagonismo da mulher no parto, proveniente de toda uma cultura de gerações anteriores de mulheres que pariram em outros momentos da história, com outros modelos de assistência baseados na centralidade da mulher no parto.
 
Informe ENSP: Qual a sua opinião sobre a orientação do Ministério da Saúde, que pede que seja evitado e, possivelmente, abolido o termo “violência obstétrica” em documentos de políticas públicas? Conforme esse despacho, o termo "violência obstétrica" se refere ao uso intencional da força e, portanto, não é aplicável a todos os incidentes que ocorrem durante a gestação, parto ou puerpério. A expressão é considerada “imprópria” pelo Ministério, pois acredita que, nos momentos de atendimento à mulher, “tanto o profissional de saúde como os de outras áreas, não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”. O MS  afirma, ainda, que tem buscado “qualificar a atenção ao parto e nascimento” em suas estratégias. Segundo o documento, “a expressão ‘violência obstétrica’ não agrega valor, e, portanto, estratégias têm sido fortalecidas para a abolição do seu uso com foco na ética e na produção de cuidados em saúde qualificada”
 
Lizandra Flores Chourabi: O Ministério da Saúde propondo a abolição do uso da expressão “violência obstétrica”, por considerá-la imprópria, está indo na contramão de tudo que vem sendo pesquisado nacional e internacionalmente sobre o tema e, o mais grave, calando a voz de muitas mulheres. Esse despacho do MS surgiu a partir de um pedido do Conselho Federal de Medicina, que passou a recomendar que a expressão não fosse utilizada por considerar que seu uso “tem se voltado em desfavor da especialidade obstétrica, que, para eles, está impregnada de uma agressividade que beira a histeria. e responsabilizando somente os médicos por todo ato que possa indicar violência ou discriminação contra a mulher.
 
Com isso, a medicina obstétrica está se autoproclamando como única e responsável por esse tipo de violência, não se coloca favorável ao diálogo com as mulheres, assumindo uma posição de superioridade frente ao movimento social e a outras entidades de classe.  Por que o mesmo não aconteceu com outras profissões que também têm a mesma especialidade, por exemplo, a enfermagem obstétrica e as obstetrizes? Ao contrário, o Conselho Federal de Enfermagem divulgou nota em repúdio ao decreto do MS (http://www.cofen.gov.br/cofen-apoia-a-manutencao-do-termo-violencia obstetrica_70783.html). E há várias outras manifestações, como a da Procuradoria da República em São Paulo, que recomendou ao MS que se abstenha de realizar ações voltadas a abolir o uso da expressão violência obstétrica e, em vez disso, tome medidas para coibir tais práticas agressivas e maus tratos.
 
Percebo que não avançamos no debate contra a extinção da violência obstétrica, pois a maior parte dos médicos obstetras não está interessada nessa temática ou sente-se ameaçada pelo movimento de mulheres, e essa profissão detém a responsabilidade pelo desfecho do parto no HU, conforme constatado nos dados da minha pesquisa de doutorado.
 
Urge a necessidade de valorização de outros modelos nos HUs que insiram dispositivos de clínica ampliada, como discussão de casos clínicos e reuniões de equipe multiprofissional a fim de tornar as relações entre os profissionais de saúde menos desiguais e centradas somente no médico. Esse é o modelo que tem se apresentado como eficaz na extinção da violência obstétrica.
 
O Ministério da Saúde, como órgão responsável pela administração e manutenção da Saúde Pública do país, deveria trabalhar dialogando com os diferentes setores da sociedade para dirimir as vulnerabilidades e fortalecer modelos de atenção à saúde que previnam a violência, e não simplesmente eximir-se de sua responsabilidade abolindo um nome, demonstrando com isso imaturidade e fragilidade na gestão desse órgão.

Seções Relacionadas:
Entrevistas

Nenhum comentário para: Entrevista: Pesquisa da ENSP analisa relatos de mães que sofreram 'violência obstétrica'