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Entrevista: “Vários fatores contribuem para as enchentes. Para resolvê-las, é necessário pensar em cidades sensíveis à agua”, assegurou a pesquisadora da ENSP, Débora Cynamon Kligerman

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Publicado em:26/04/2019

Por Joyce Enzler

A culpa não é das estrelas tampouco da natureza, como vêm afirmando há anos governantes da cidade do Rio de Janeiro. As ações do homem sobre o planeta e a falta de planejamentos municipal, estadual e federal tornaram-se os vilões dos estragos agravados pelas chuvas torrenciais caídas no município nos dias 10 e 11 de abril. 
 
Enquanto várias cidades no mundo, como Hong Kong e Região de Changde na China, Tóquio, no Japão e Flevoland, na Holanda, se preparam para o enfrentamento de eventos climáticos extremos, cidades brasileiras são arrasadas com a chegada de chuva ou vento com maior intensidade. 
 
No Rio de Janeiro, o prefeito Crivella cortou 78% da verba para controle das enchentes no município. Conclusão, chuvas fortes deixaram 7 mortos em fevereiro e 11 mortes, nos primeiros meses do ano. Em virtude do descaso das autoridades, foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Enchentes para investigar as circunstâncias e consequências dos temporais no Rio de Janeiro.
 
 
Para comentar o desastre ambiental e social na cidade – as relações entre sociedade e natureza e os fatores que colaboraram com essa tragédia – , o Informe ENSP conversou com a engenheira sanitária e pesquisadora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental (DSSA/ENSP/Fiocruz), Débora Cynamon Kligerman.
 
 
 
Informe ENSP:  Segundo artigo do historiador Luiz Simas, o Rio de Janeiro sofre com as enchentes desde 1570. Qual a diferença entre aquelas enchentes e as de 2019?
 
Entrevista: “Vários fatores contribuem para as enchentes. Para resolvê-las, é necessário pensar em cidades sensíveis à agua”, assegurou a pesquisadora da ENSP, Débora Cynamon KligermanDébora: É uma excelente pergunta, porque vários fatores contribuíram com as enchentes.  Grande parte da população veio para área urbana, em consequência da maior possibilidade de trabalho. Isso acarreta o fenômeno de urbanização nas grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Em decorrência deste fenômeno, ocorreu a industrialização e uma movimentação chamada de metropolização: mais ruas asfaltadas e menos zonas de infiltração da água. Na medida em que houve um adensamento das cidades, também ocorreu impermeabilização, porque a água não consegue escoar lentamente até chegar ao recurso hídrico.  Do mesmo modo, aconteceu a extinção de alguns órgãos, como a Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla); Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema) e o Instituto Estadual de Florestas (IEF) para a criação do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que unificou esses três órgãos, resultando em uma sobrecarga. Além disso, muitos rios foram transformados em canais, tendo suas margens cimentadas. Por esse motivo, perdem-se as matas ciliares que protegem os rios e auxiliam no escoamento da água, impedindo as enchentes.  
 
Informe ENSP: como diminuir os efeitos do processo de urbanização?
 
Débora: Os canais servem para que a água seja levada o mais longe possível, todavia, a inundação continua, porque existe cada vez mais concreto. Já deveríamos ter passado para a fase da drenagem sustentável, popularmente conhecidos como piscinões; construídos para reter a água por um longo tempo e ir soltando devagar. 
 
No Rio de Janeiro, temos três piscinões na  Tijuca. Em suma, a drenagem sustentável é para retardar a chegada de água nos recursos hídricos. Então, o que está errado desde 1570? A urbanização crescente produziu vários fatores: desmatamento, favelização, poluição sonora, da água, do ar. Até o Aterro do Flamengo inundou. Como você vai pensar que uma área com bastante vegetação inunda? Inunda, porque não tem material filtrante embaixo. Como se constroem os aterros? Na maioria das vezes utilizando resto de construção civil, material para sedimentar e não um material que filtre a água. Então, a ideia é, por exemplo, criar uma espécie de piscinão embaixo da vegetação. Para além do piscinão, é necessário passar para uma terceira fase, que são as cidades sensíveis à água, isto é, praticar algumas medidas como telhado verde, asfaltos drenantes, reflorestamento, entre outras. São necessárias várias ações, é preciso pensar a cidade como um todo, por exemplo, cada edifício poderia ter um telhado verde, o asfalto deveria ser drenante, com alguns recipientes embaixo para poder reter a água.
 
Informe ENSP: Esses recipientes seriam os piscinões?
 
Débora: Nem sempre. Podem-se criar piscinas menores, áreas de retenção pequenas para que a água vá mais lentamente para o corpo hídrico. Está previsto no código de construção que cada edifício precisa ter 10% da sua área construída em local com terra, porque esta facilita a infiltração da água e não é tudo impermeabilizado, então são diversas medidas, que formam cidades mais sensíveis à água. 
 
Outra ação importante é o tratamento de esgoto. Segundo o Sistema Nacional de Informação de Saneamento, só é coletado do total dos municípios 73% do que é gerado, destes apenas 46% são tratados. Eu estava na Tijuca, quando transbordou o rio Maracanã, eu andei com água até o joelho, mas a água estava marrom, ou seja, era de esgoto. O Rio de Janeiro é um sistema de esgoto separador absoluto, ou seja, a rede de esgoto era para ser separada da rede de águas pluviais, mas há locais que é um sistema unitário. O rio Maracanã é um canal, não é mais um rio, quando se tem toda a parede de concreto, não se permite o escoamento correto da água. Diferentemente de um rio natural, onde nas margens há matas, vegetações, que ajudam na infiltração da água.
 
Na praia de Botafogo um edifício lindo está há uma semana, com o poço de visita jogando esgoto direto nas águas pluviais. Quando chove, a água que transborda muitas vezes está com esgoto, porque não tem coleta tampouco tratamento em todos os lugares. 
 
Informe ENSP:  Além do saneamento precário, o que pode contribuir para o agravamento da situação na cidade quando ocorrem chuvas mais fortes? 
 
Débora: Em alguns pontos da cidade ocorreram três vezes mais chuva do que o esperado para o mês. Logo, aquele recurso hídrico que está canalizado, não está com condições de receber um volume três vezes maior. No Código Florestal está escrito que todo rio precisa ter uma faixa marginal de proteção para que, na cheia dele, possa transbordar um pouco, tudo o que não há nos rios da cidade. 
 
Aqui tem construção, como o Horto, que fica perto do rio dos Macacos, e está todo canalizado. Aquele recurso hídrico foi canalizado, não tem escoamento transversal e ao mesmo tempo aumenta o volume. Como não tem onde transbordar, destrói o que tem pela frente. Então, quando você vê aquelas fotografias do rio entrando em um edifício, é provável que este tenha sido construído dentro da área que era do rio.
 
O professor Demétrio aponta sempre que o rio virou rua e a rua, depois na hora da chuva, vira um rio. Provavelmente toda a drenagem do Jardim Botânico está errada, por isso que estão querendo criar piscinões no Hipódromo, porque lá é terra, embaixo pode infiltrar e fazer piscinões. Além disso é necessário uma coleta eficiente de resíduos. Em Manguinhos os rios são cheios de lixo. A Comlurb não coleta na frequência que deveria coletar e, por outro lado, a população não está conscientizada sobre não jogar lixo nas ruas. Portanto, além do volume do canal do rio estar retificado, o lixo retém a água, que vai transbordar e empurrar o lixo para frente. 
 
O saneamento é composto de quatro elementos: o abastecimento de água; o esgotamento sanitário; a coleta e manejo de resíduos sólidos e a drenagem. Então, para solucionar esse problema na cidade, esses quatro elementos precisam trabalhar integradamente, além da parte do território, como arborização; asfaltos permeáveis; reservatórios de água de chuva nos prédios, que podem ser usados depois para jardinagem, pois ajudaria a não encher as ruas. 
 
Informe ENSP: O clima contribuiu para chover mais?
 
Débora: Sim. O efeito estufa é exatamente isso: tem calor, mas não tem lugar para sair. Aumenta a temperatura da terra, mas ao mesmo tempo estava vindo uma frente fria, entretanto, a frente fria vem e não consegue sair, acarretando as tempestades. Por isso, é necessário pensar em medidas integradas. Os piscinões são uma etapa intermediária, mas não é só reter água. Nos Estados Unidos, algumas universidades construíram os campos de futebol mais baixos, porque quando chovia, aquilo virava um piscinão, então é onde puder, fazer locais de retenção. Outra medida importante é ter mais árvores, pois auxiliam o microclima, diminuindo o calor.
 
 
Informe ENSP: Após a chuva, quais as consequências que podem afetar à população? Como a população pode reduzir danos?
 
Débora: Várias doenças têm transmissão hídrica, como a leptospirose e a diarreia. A leptospirose é causada por rato e esse animal só existe porque não tem coleta eficiente.  O rato urina e contamina a água que não teve uma coleta nem tratamento do esgoto, contamina os poços, as fontes de água. 
 
A população precisa tomar alguns cuidados para não se contaminar: andar de botas na chuva, ferver água ou filtrar. Existem algumas pastilhas que colocam nos reservatórios, principalmente se a pessoa está em uma área que usa poço de água. O poço ou caixa de água também precisam ser limpos.
 
Informe ENSP: Como as enchentes afetam a saúde pública? 
 
Débora: O atendimento à saúde aumenta, porque há contaminação da água e dos alimentos; aumenta o número de casos de dengue, febre amarela; pessoas morrem eletrocutadas devido a cabos soltos, perdem familiares, documentos, mobiliário, por isso existem os traumas e os efeitos psicossociais após o desastre. Igualmente aumentam o alcoolismo e o tabagismo. Também acontecem abusos sexuais, porque meninas e mulheres precisam ficar em alojamentos com várias pessoas. 
 
Informe ENSP: Existiu alguma ação municipal pós-enchentes visando à proteção da saúde da população e à do meio ambiente?
 
Débora: Não vi. A hepatite é uma outra doença que é causada por veiculação hídrica e também o tétano, porque muitas vezes a pessoa se perfura, então são diversas coisas.
 
Informe ENSP: Então, não existe um plano de contingência para emergência em saúde pública, tampouco um programa de prevenção de doenças? 
 
Débora: Não existem. Sabendo desses eventos naturais, a prevenção deveria ser imprescindível, como disponibilizar vacinas antitetânica e tríplice viral para população.
 
Informe ENSP: Em Manguinhos, as consequências decorrentes da enchente se agravaram após 2010, quando iniciaram as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); o que fazer para minimizar o impacto provocado pelas chuvas e falta de saneamento a cada ano?
 
Débora: Em 1993, foi criado o projeto Universidade Aberta, que gerou uma cooperativa, a Cootram, onde conseguimos empregar vários moradores. A ideia era ajudar a comunidade a resolver os problemas de saneamento, de habitação. Também eram realizadas atividades de conscientização e educação ambiental com os moradores. Infelizmente, o projeto acabou.
 
Sobre o PAC que abrangeu Manguinhos, não sei se ele foi completo e se há manutenção das obras. Poderiam ter piscinões ou bacias de retenção naquela área perto da Clínica Victor Valla, por exemplo. Não adianta realizar uma grande obra sem pensar em uma cidade sustentável.
 
 
 

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