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Entrevista: Feliz Ano Velho, Brasil! 2019 estreou com mais de 100 casos de feminicídio

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Publicado em:07/02/2019
Por Joyce Enzler
 
Entrevista: Feliz Ano Velho, Brasil! 2019 estreou com mais de 100 casos de feminicídioDados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que o Brasil é o quinto país mais perigoso do mundo para o sexo feminino. Além do feminicídio – quando a mulher é assassinada por ser mulher –, ocorrem outros tipos de violência: a doméstica, a sexual (estupro), a psicológica e o assédio moral e/ou sexual. 
 
No país do carnaval, há a cidade maravilhosa e o espetáculo mais disputado do planeta, mas, também, há turismo sexual, tráfico de mulheres e meninas, além do aumento do feminicídio das mulheres negras e indígenas.  Da mesma forma, houve aumento de 150% de assassinatos de lésbicas entre 2014 e 2017, e, somente nos dois primeiros meses de 2018, 26 lésbicas foram assassinadas. Como o Brasil não fica atrás de ninguém em alguns quesitos, ficou com o primeiro lugar em feminicídio de mulheres trans.
 
Na minha terra tem palmeiras, sabiás e tucanos, todavia tem assassinato de travesti com coração arrancado em Campinas, bem como pedofilia virtual e presencial. Aqui, onde há um povo pacífico, mulheres negras e periféricas são arrastadas pelos camburões, e mães de santo silenciadas e humilhadas. Neste país, viver não é preciso.
 
No país pentacampeão do mundo, os números impressionam: a cada 90 minutos – duração de uma partida de futebol, sem prorrogações –, uma mulher é assassinada, afirma o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada, segundo o Banco Mundial; a cada 2 segundos, uma mulher é agredida física ou verbalmente, de acordo com os dados do Instituto Maria da Penha.  
 
Indiscutível que a violência contra a mulher é mundial e deriva de uma estrutura patriarcal, machista e misógina; porém, alguns países conseguiram, com base em políticas educativas, econômicas e políticas, diminuir a desigualdade entre os gêneros. A Islândia é o país campeão em igualdade de gênero. Lá, já na escola, as crianças recebem as primeiras noções para desconstruir os estereótipos de gênero. Meninas e meninos aprendem a cozinhar, costurar e trabalhar com madeira (marcenaria). As conquistas alcançadas vieram a partir da luta das mulheres. Na Islândia, a guinada ocorreu em 1975, quando as mulheres fizeram greve geral, que implicou a paralisação das atividades nas empresas e tarefas domésticas. Como decorrência desse avanço, foi o primeiro país a eleger uma presidenta, Vigdis Finnbogadottir, mãe e divorciada, em 1980. 
 
Concluindo, "Moro em um país tropical, abençoado por Deus [...]". Entretanto, uma “nova era” se anuncia. No momento em que a desigualdade entre os sexos diminuiu no planeta, segundo o relatório do Fórum Econômico Mundial, e as mulheres começaram a se empoderar, se organizar e denunciar todos os tipos de violência e discriminação, o país pegou carona na máquina do tempo rumo ao pretérito imperfeito. 
 
Para analisar o difícil contexto brasileiro, o Informe ENSP conversou com a coordenadora do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (Dihs/ENSP/Fiocruz) e vice-presidenta do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia (Nupegre), da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), Maria Helena Barros, com a juíza, presidenta do Nupegre/Emerj, e a autora do livro Feminicídio – Uma Análise Sociojurídica da Violência Contra a Mulher, Adriana de  Mello.
 
 
Entrevista: Feliz Ano Velho, Brasil! 2019 estreou com mais de 100 casos de feminicídio
 
 
Maria Helena Barros
 
Informe ENSP: De acordo com o pesquisador Jefferson Nascimento, da Universidade de São Paulo (USP), só na primeira semana de janeiro de 2019, ocorreram 21 casos de feminicídio e 11 tentativas de assassinato. Como o Dihs analisa essa violência contra a mulher?
 
Maria Helena: Desde a sua criação, há 21 anos, o grupo de pesquisadores do que, hoje, é o Departamento de Direitos Humanos e Saúde (Dihs) sempre teve sua atenção voltada para a violência contra a mulher. Ficamos estarrecidas e imensamente preocupadas, pois, com o passar dos anos, essa violência contra a mulher não diminui, ao contrário, assume, cada vez mais, proporções inaceitáveis. Evidente que há um forte trabalho desenvolvido para que os casos de violência não permaneçam invisíveis, e a denúncia seja feita. Mas isso não significa que eles também não estejam aumentando. Essa violência contra a mulher, que culmina com sua expressão extrema, o feminicídio, está relacionada à forma patriarcal e machista que nossa sociedade se encontra estruturada. Não é possível seguir com essa visão desumana e indigna de olhar a mulher como uma propriedade, como uma mercadoria que pode ser manipulada pelo “seu pretenso dono”. Não é possível seguir com essa visão machista de que as mulheres são inferiores e, portanto, despojadas de direitos. Temos que refletir muito e mudar nossa forma de agir em relação às questões de gênero.
 
Informe ENSP: “A educação para a igualdade de gênero nas escolas é essencial na prevenção da violência contra a mulher”, afirma a subprocuradora-geral da República, Luiza Cristina Frischeisen. O Dihs concorda com essa afirmação?
 
Maria Helena: Sem sombra de dúvida. Não podemos continuar ensinando, nas escolas, que as mulheres são seres menores, que fazem menos e, por isso, merecem menos. É necessário extirpar, de nossa sociedade, toda essa cultura amarga do patriarcado, que deforma a mulher em sua potencialidade e capacidade de se desenvolver, de construir e definir os rumos da sociedade de forma igual e paritária com os homens. Nós podemos e faremos um mundo melhor, com a participação das mulheres e muita competência. Chega de premonições e alucinações machistas de que as mulheres não podem, não devem e não sabem.
 
Informe ENSP: Dados do Atlas da Violência 2018 mostram que, em 2016, houve 62.517 homicídios no Brasil, superando o patamar de 30 mortes por 100 mil habitantes. Segundo o Atlas, o total de mortes violentas no Brasil é maior que o da Síria. Já os dados do Monitor da Violência revelam que uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil; esses fatos contestam a imagem do brasileiro pacífico ou essa imagem sempre foi distorcida?
 
Maria Helena: Acho que devemos levar muito a sério esses números, porque são fatos que expressam uma sociedade muito violenta, principalmente no que diz respeito às mulheres. Essa insistência em dizer que somos pacíficos pode ser uma forma de encobrir todo esse mar de sangue expresso nos homicídios e feminicídios que a sociedade brasileira produz a cada ano. Lutar contra esse estado de coisas, isso sim, é buscar uma sociedade pacífica. A vida não pode ser descartada, como se não tivesse valor. Esses dados comprovam nossa preocupação, que ficou imensa com as novas medidas assumidas pelo governo brasileiro, que libera, praticamente de forma geral e irrestrita, a posse de armas e, obviamente, seu uso.
 
Informe ENSP: O Dihs dispõe de alguma linha de pesquisa sobre feminicídio?
 
Maria Helena: O Dihs é um departamento que organiza os Direitos Humanos em áreas temáticas. Uma delas é a área Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade, que, dentre outras questões, pesquisa o feminicídio. Dentro dessa área temática, desenvolvemos várias atividades, como o curso de Especialização em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade, que forma, anualmente, uma média de 20 profissionais capacitados na discussão da igualdade de gênero. Além da organização interna do Dihs, contamos com a parceria de algumas entidades, como o Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia (Nupegre), da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), onde Adriana Ramos de Mello é a presidenta, e eu a vice-presidenta. No ano de 2018, realizamos um seminário por intermédio do Centro de Estudos Giuliano de Oliveira Suassuna do Dihs/ENSP sobre feminicídio, em que tivemos a Adriana discutindo amplamente essa questão. 
 
 
Informe ENSP: Como a sociedade brasileira deve enfrentar casos de violência contra a mulher?
 
Maria Helena: Construindo espaços onde a denúncia possa quebrar essa perversa relação agressão X silêncio. Obviamente, essa denunciante precisará encontrar um espaço de acolhimento e de estratégias de intervenção nos focos da violência. Não podemos continuar com crenças obscuras, tais como “entre marido e mulher não se põe a colher”. A violência só deixará de existir se ela parar de ser retroalimentada pelo silêncio e descaso de todos nós. É necessário que todos abracem o combate à violência, e não apenas a mulher que sofre violência. 
 
 
Informe ENSP: Segundo o Atlas da Violência, 71,1% dos homicídios no Brasil foram causados por arma de fogo. Especialistas analisam que, sem o Estatuto do Desarmamento de 2003, esse número aumentaria 12%. Considerando a violência contra as mulheres (40% delas morreram em casa por arma de fogo, em 2016), qual sua visão sobre o Decreto 9.685, que facilitou a posse de armas?
 
Maria Helena: Infelizmente, estamos vivendo um período bastante difícil em todos os sentidos da construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Esse decreto vem selar o  total descompasso com a construção de políticas contra a violência. Nós vemos com muita preocupação, pois, de acordo com o Dossiê Mulher de 2018, 50 % dos crimes de assassinatos de mulheres são praticados por arma de fogo. 
 
 
Entrevista: Feliz Ano Velho, Brasil! 2019 estreou com mais de 100 casos de feminicídio
 
Adriana Mello
 
Informe ENSP: De acordo com o pesquisador Jefferson Nascimento, da Universidade de São Paulo (USP), só na primeira semana de janeiro de 2019, ocorreram 21 casos de feminicídio e 11 tentativas de assassinato. Como analisa essa violência contra a mulher?
 
Adriana Mello: A violência contra a mulher é uma das formas de violação dos direitos humanos mais recorrente no Brasil e, desde a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, em 2006, e da Lei do Feminicídio, em 2015, vem recebendo mais atenção do Estado. No entanto, muitas ações ainda precisam ser concretizadas, como o investimento em educação de gênero e direitos humanos. O número de mortes de mulheres sempre foi alto no Brasil, por isso ocupamos a quinta posição em feminicídios no mundo. Precisamos mudar essa realidade com investimento em educação e a prevenção à violência, em todos os âmbitos.
 
 
Informe ENSP: “A educação para a igualdade de gênero nas escolas é essencial para a prevenção à violência contra a mulher”, afirma a subprocuradora-geral da República, Luiza Cristina Frischeisen. Concorda com essa afirmação?
 
Adriana Mello: Com certeza, a educação é fundamental para a prevenção à violência contra a mulher. O artigo 8º da Lei Maria da Penha prevê, no inciso IX :  “O destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.” Infelizmente, no Brasil, só houve investimento na repressão à violência, esquecendo que a Lei Maria da Penha prevê grande parte de mecanismos de prevenção e assistência à mulher que ainda estão pendentes.
 
Informe ENSP: Dados do Atlas da Violência 2018 mostram que, em 2016, houve 62.517 homicídios no Brasil, superando o patamar de 30 mortes por 100 mil habitantes. Segundo o Atlas, o total de mortes violentas no Brasil é maior que o da Síria. Já os dados do Monitor da Violência revelam que uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil; esses fatos contestam a imagem do brasileiro pacífico ou essa imagem sempre foi distorcida?
 
Adriana Mello: Sim, o Brasil é um país de extremos. Temos muitas desigualdades sociais e econômicas. Não seria diferente em relação às mulheres. Ocupamos a incômoda 90ª posição em 144 países no mundo em termos de desigualdade de gênero, no ranking do Fórum Econômico Mundial, que analisa a igualdade entre homens e mulheres. O Brasil ainda enfrenta questões muito sérias como o machismo e o sexismo, tanto no âmbito público como no privado. As mulheres ainda estão sub-representadas nos Poderes Legislativo e Executivo. Poucas são as mulheres eleitas também. Já no Poder Judiciário, esse porcentual está um pouco melhor, porque existe o concurso público. As mulheres estão sofrendo com a violência doméstica, com o alto índice de violência sexual e o assédio sexual nos ambiente de trabalho e nos transportes públicos. Temos que fazer uma grande ruptura na sociedade brasileira para que as mulheres, efetivamente, sejam respeitadas e senhoras do seu próprio destino. O direito de ir e vir, de vestir o que quiser e sem ser molestada nas ruas ainda está distante da realidade brasileira.
 
Informe ENSP: O que a motivou escrever um livro sobre feminicídio?
 
Adriana Mello: Trabalho com o tema violência doméstica há 18 anos, e sempre me incomodou muito a resposta da Justiça para casos de violência extrema, como o feminicídio. Além disso, há falta de atenção da polícia nas investigações desses crimes, que geralmente eram feitas sem nenhuma perspectiva de gênero. Então, comecei a estudar o tema, em 2010, durante o mestrado, e conclui com o doutorado, em 2015, sobre feminicídio, que resultou na publicação do livro.
 
Informe ENSP: A quem se deve o esforço da conquista da qualificação do crime contra a mulher, uma das mazelas sociais brasileiras, o feminicídio?
 
Adriana Mello: Houve um esforço concentrado de várias ações: do Movimento Feminista; da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência Contra a Mulher, no Congresso; da sociedade civil e da luta de acadêmicas da área, todas fundamentais para a edição da Lei nº 13.104/2015. 
 
Informe ENSP: Após a implementação da Lei Maria da Penha, nº 11.340, para coibir violência contra a mulher, grande parte da sociedade ficou com a percepção de que a legislação foi ruim, porque aumentou o número de casos, quando, na verdade, houve mais visibilidade ao tema, corroborando com mais denúncias de mulheres. Esse senso comum se repete, agora, com a aprovação da legislação do feminicídio?
 
Adriana Mello: A legislação é um instrumento importante para coibir a violência contra a mulher e, com certeza, deu mais visibilidade ao tema. Os crimes contra as mulheres, no âmbito doméstico, sempre ocorreram no Brasil, mas as mulheres não tinham a quem recorrer, não havia um órgão da justiça especializado e capacitado para atender às mulheres. Atualmente, existem vários juizados especializados no Brasil. Ainda em número insuficiente, mas já é uma grande conquista. Várias delegacias de polícia foram criadas, assim como as defensorias públicas das mulheres e promotorias de Justiça nos juizados. Núcleos de gênero foram criados em todos os âmbitos, e, hoje, temos a primeira pós-graduação em gênero e direito na Emerj.
 
Informe ENSP: Como a sociedade brasileira deve enfrentar os casos de violência contra a mulher?
 
Adriana Mello: Temos legislações suficientes no Brasil para combater a violência contra a mulher, mas precisamos dar efetividade a essas leis com a criação de mais centros de atendimento à mulher, alteração dos currículos de ensino para a inclusão do tema equidade de gênero e a promoção dos direitos humanos das mulheres, criação de oportunidades de trabalho e qualificação para as mulheres, investimento na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos. Em relação à segurança pública, precisamos que as delegacias de polícia estejam bem equipadas e estruturadas para que as investigações dos crimes decorrentes de violência doméstica e feminicídio sejam rápidas e eficazes e  com policiais capacitados/as. No que tange ao acesso à Justiça, vários obstáculos são enfrentados pelas mulheres como a falta de juizados especializados nas regiões mais afastadas dos centros urbanos, falta de juízes/as sensíveis à questão de gênero. Por isso, foi editada a Recomendação nº 33, da ONU, que o Brasil ainda precisa dar cumprimento e efetividade. Nessa Recomendação, está disposto que é necessário assegurar “a criação, manutenção e desenvolvimento de cortes, tribunais e outras entidades, conforme necessário, que garantam o direito das mulheres de acesso à Justiça sem discriminação em todo o território do Estado parte, inclusive em áreas remotas, rurais e isoladas, considerando o estabelecimento de tribunais itinerantes, especialmente para atender mulheres". Além disso, o Brasil precisa adotar medidas, incluindo programas de conscientização e capacitação para todos os agentes do Sistema de Justiça e estudantes de Direito, a fim de eliminar os estereótipos de gênero e incorporar a perspectiva de gênero em todos os aspectos do Sistema de Justiça. Essa ainda é uma agenda pendente no Brasil.
 

 


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