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Entrevista: 'Não há saída com mais armas', afirma Cecília Minayo

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Publicado em:23/11/2018
Os malefícios do uso cotidiano de armas de fogo já foram constatados cientificamente. Não se trata de questão de opinião. No Brasil, mais de 70% dos homicídios são cometidos por pessoas que portam arma. Esse é apenas um dos muitos dados de pesquisas que apresentam evidências cientificas de que as armas de fogo são geradoras de violência - não uma forma de preveni-la. No entanto, voltou à agenda, desde a campanha eleitoral à presidência da República, a discussão a respeito da flexibilização do porte e da posse de armas pela população. "Arma é morte!”, resume a pesquisadora Maria Cecília Minayo, coordenadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP/Fiocruz), em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz.

"Quem tem uma arma de fogo está muito mais propenso a morrer por causa dela do que a atingir alguém”, explica Minayo, uma das organizadoras do Manifesto dos Pesquisadores contra a Revogação do Estatuto do Desarmamento, com 57 signatários, de 17 instituições, divulgado em 2016, contra a aprovação por uma comissão da Câmara dos Deputados do PL 3.722/12. O projeto visava reduzir a idade mínima para aquisição, de 25 para 21 anos e autorizava pessoas que respondem a inquérito policial ou processo criminal a possuir e portar. "Essa é uma pauta que vai e volta. Se voltar, haverá muita gente gritando. Não vai ser fácil para eles".

Confira, abaixo, a entrevista na íntegra.

CEE-Fiocruz: A senhora é uma das organizadoras e signatária do manifesto contra a revogação do Estatudo do Desarmamento, de 2016. Como avalia a possibilidade trazida agora novamente à tona de flexibilização do posse e do porte de armas de fogo, sob a alegação de que se trata de medida de proteção?

Entrevista: 'Não há saída com mais armas', afirma Cecília MinayoCecília Minayo:
Esse tipo de argumento é o mesmo que vem da bancada pró-armas do Congresso americano: que arma é proteção, que temos que ter uma arma em casa, que isso é um direito,  que o ladrão sabendo que eu tenho uma arma não vai me assaltar. Quando foi aprovado o Estatuto do Desarmamento, em  2003, escrevi um artigo para o boletim da Abrasco [Desarmar, amar e argumentar como ética de vida [defendendo que “tratar violências e acidentes como doença é impropriedade e reducionismo”, mas que “as discussões e as ações relacionadas aos sentidos e aos efeitos da violência cabem muito bem dentro do conceito de promoção e de visão ampliada de saúde”] e recebi críticas, que apontavam que eu era ingênua, que eu não entendia de armas, e coisas assim. Na verdade, não entendo mesmo nada de armas: eu tenho pavor de armas. E aquilo que escrevi naquela época eu repetiria hoje. O caso dos Estados Unidos, é emblemático. Com a chamada Segunda Emenda à Constituição [do século XVIII, que protege o direito da população de manter e portar armas], a pessoa apresenta alguns documentos e passa a ter direito. A cada chacina, pode contar que na família daquele que cometeu o crime havia quatro, cinco armas de fogo. Cientistas, médicos pediatras e outros especialistas em saúde pública daquele país vêm desde então buscando mostrar o que que significa ter uma arma em casa.

CEE-Fiocruz: E o que significa?

Cecília Minayo:
Que você está muito mais propenso a morrer por causa dela do que a atingir alguém. Há um perigo 24 vezes maior de se provocar um acidente tendo-se uma arma em casa do que não se tendo. A partir dos estudos que desenvolvemos, verificamos que a pessoa que tem grande chance de acabar usando, uma criança pode usar, você pode matar um vizinho. Porque o uso pode se dar de forma repentina, se a pessoa acha que está em perigo. No Brasil, mais de 70% dos homicídios são cometidos por aqueles que portam arma de fogo. Em alguns grupos sociais, como o dos jovens, chega-se a mais de 80%. Há também o aumento dos casos de suicídio por arma de fogo. Então, arma é morte.

CEE-Fiocruz: O raciocínio dos defensores de armas - 'se os bandidos estão armados, tenho que me armar também' – deixa a cargo dos indivíduos zelar pela própria proteção?

Cecília Minayo:
Pedir a cada cidadão que seja responsável por sua arma é voltar à Idade Média. O Estado Absolutista entendeu que o uso de armas, o uso da força, da violência era função do Estado, e retirou da população esse poder, transferindo-o para um grupo preparado. Podemos criticar se a polícia mata ou não mata, mas é dela a função de Estado de ter armas e proteger a população. Isso não é atribuição de qualquer pessoa da sociedade civil. Os que acham que têm que se armar para enfrentar bandidos - para usar a expressão popular - estão armados estão partindo de uma situação ilegal! O papel do Estado é tomar essas armas dos bandidos, dos traficantes. E não armar o outro lado! Isso não se justifica.

CEE-Fiocruz: É comum ouvirmos que estamos em guerra; isso aparece, inclusive, estampado em manchetes de jornal. Esse entendimento não contribui para promover a violência? Nós estamos em guerra?

Cecília Minayo:
Nós não estamos em guerra. Nós estamos vivendo em uma sociedade muito conflagrada. Temos, hoje, um Estado fraquíssimo – e quando eu falo em Estado fraco, não é porque precisa contar com mais armas de fogo... Fico lembrando da expressão de Freud, que diz que nós precisamos de pai. Pai é autoridade, e nós estamos vivendo um momento de perda de autoridade, por corrupção, por desleixo, por vários motivos. Não há uma força, não vemos naqueles a quem demos o poder com nosso voto, de nos proteger, seja no nível federal, seja no estado, dizer: “vamos por aqui”. O resultado é que muitas áreas das cidades são mantidas sob a mira de armas. De tudo que eu conheço dessa realidade, afirmo: nosso problema maior não está nas drogas, mas nas armas.

CEE-FiOCRUZ: E é esse cenário que se costuma confudir com guerra? Afinal, um estado de guerra justifica qualquer coisa.

Cecília Minayo:
Estamos enfrentando também uma crise social muito grande com muito desemprego, com a informalidade batendo na porta. Quando eu falo em informalidade é aquela barraquinha debaixo da passarela, a construção de uma casa em local de risco. Não há ordenamento, porque não há autoridade. A sensação é de insegurança. Mas esse não é um estado de guerra; é um estado de anomia, de descompensação da sociedade. Temos problemas sociais a resolver. Não é com mais armas que faremos isso. O morador de uma favela conflagrada não quer que o vizinho morra, mas gostaria de ter uma proteção social maior. Então, parece que estamos em uma tempestade perfeita, querendo resolver problemas complexos de forma simples demais, armando a população, sem pensar nas causas do cenário em que vivemos, e trazendo para o indivíduo a responsabilidade de resolver. Não há saída com mais armas!

CEE-Fiocruz: Como esclarecer à população quanto a isso, que não é pelas armas que conseguirá a desejada proteção?

Cecília Minayo:
Vamos fazer uma pequena comparação: vamos pensar nos países da Europa e nos Estados Unidos, considerados, ainda, a nação mais poderosa do mundo.  Os dados de mortalidade por violência nos Estados Unidos são mais de dez vezes maiores do que os dos países europeus. Você viu, por acaso, algum presidente da França, da Espanha, da Inglaterra querendo armar a população de seus países para defendê-la contra os imigrantes, por exemplo? Não! Você vai ver isso em uma sociedade que culturalmente cultiva o uso das armas. Não posso imaginar que uma pessoa deseje ter um instrumento em sua mão para matar o outro. Existe um livro que eu tomo como bíblia, de Jean Claude Chesnais, de 1981, em que ele mostra como eram altíssimas as taxas de homicídio na Europa, e como foram caindo, fruto da civilização, da escola formal, em que a pessoa aprende usar a palavra e não arma, fruto da melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, da convivência na sociedade. Nos países da Europa, as taxas de mortalidade por violência estão entre 0,5 a 1 por cem mil. É quase nada. O caminho é a civilização, a educação, é melhorar as condições de vida, é melhorar as desigualdades. É um caminho longo? É!

No final do século 19, havia países na Europa em que a taxa de homicídios eram de mais de 60 por cem mil. Hoje isso está nesses 0,5, 0,3. E o vemos nos Estados Unidos? Taxas muito mais elevadas, uma média de 10 por cem mil, acima das taxas da Organização Mundial da Saúde. E as mortes por violência que ocorrem nos Estados Unidos estão ligadas ao uso de armas. Vimos recentemente o episódio na Califórnia, Los Angeles, em que um homem entrou em uma boate matou onze pessoas e depois de matou. Esse é um fenômeno que identificamos também, homicídio seguido de suicído: pessoas desajustadas com armas. Como vamos saber se em determinado momento estamos ajustados ou não? A ideia de armar população vai contra todo pensamento da civilização ocidental. Essa imitação barata do que acontece no Estados Unidos só vai aumentar a mortalidade.

CEE-Fiocruz: A senhora mencionou, certa vez, que se trata de um ciclo vicioso: a arma provoca violência, gera sentimento de insegurança e, assim, o desejo de se ter uma arma. Ou seja, a arma é produtora de violência não uma precaução.

Cecília Minayo: Sim. As crianças pegam, levam para a escola... No Brasil, duas crianças são feridas todos os dias graças ao acesso às armas dos pais.

CEE-Fiocruz: Há poucas semanas, a imprensa divulgou três estudos realizados nos Estados Unidos pela Sociedade Americana de Pediatria, mostrando que ter arma em casa aumenta o número de mortes entre crianças.

Cecília Minayo: A Associação Americana de Pediatria há mais de 30 anos se bate contra o uso de armas, porque sabe do risco; representa socializar a criança já na violência. Levam a criança para ver o pai atirar, ensinam como se faz, dão uma arma a ela. Diz-se que o lobby das armas foi o que mais deu dinheiro ao (Donald) Trump. E percebemos que a fala dele nesses episódios de violência não é contundente. Ele sabe que tem culpa no cartório.

CEE-Fiocruz: No Brasil também tivemos notícia do aumento das ações da fabricante de armas? (Ver aqui). 

Cecília Minayo: Mas é claro! E há também o interesse das produtoras de armas de outros países que exportam para cá, de forma clandestina ou legal. Quanto mais armas venderem, melhor.

CEE-Fiocruz: Quais os efeitos do Estatuto do Desarmamento, de 2003?

Cecília Minayo: Um estudo do pesquisador Daniel Cerqueira, do Ipea [ver aqui] mostra como a curva do uso de armas estava ascendente antes do Estatuto e como depois disso, estabilizou-se. Entre 1995 e 2003, a taxa de homicídios cresceu 21,4%. De 2003 a 2012, o crescimento foi de 0,3%. Na análise, ele diz, ainda, que, de 2004 a 2012, o Estatuto do Desarmamento foi responsável por poupar 121 mil vidas. O cálculo foi feito com base na proporção com que os índices subiam antes da legislação. Outro ponto importante do Estatuto do Desarmamento foi elevar a idade mínima para aquisição de armas a 25 anos, o que contribui para dificultar a compra e venda de armas no segmento que mais morre e mais mata em todo o país: os jovens. É necessário que o Estatuto de Desarmamento continue a ser Política de Estado e compromisso presente na agenda de toda a sociedade.

CEE-Fiocruz: Embora a conclusão seja por ‘armas, não!’, há um movimento na direção a ‘armas, sim!’. Como a senhora vê este momento

Cecília Minayo: O que acontece com essa pauta? Ela vai e volta. Na época em que parecia que a revogação do Estatuto do Desarmamento ia entrar na pauta, fizemos reunião em Brasília, produzimos o Manifesto contra a revogação e fomos para o Congresso Nacional. Se a Mesa botar isso na pauta novamente, haverá muita gente gritando. Não sei se vamos conseguir, mas não vai ser fácil para eles. Arma mata! Para mim, o slogan é esse. Há estudos suficientes para nos permitir afirmar que: armas não.

*Por Eliane Bardanachvili, jornalista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. 

Fonte: Centro de Estudos Estratégicos (CEE-Fiocruz)
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