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'Escrito e desfeito', artigo de Ligia Bahia

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Publicado em:28/08/2018
Direitos de saúde são intrinsecamente polêmicos. Para começar, não é possível assegurar saúde perfeita a ninguém. Contingências biológicas e da vida tornam todos vulneráveis a doenças, independentemente do quanto se possa gastar com tratamento. Em segundo lugar, o direito a um bom nível de saúde não é a mesma coisa que uma boa assistência à saúde.

Portanto, um sistema voltado à melhoria das condições de vida e ao aumento da longevidade deve conectar políticas de controle de riscos, como má nutrição, moradia inadequada, violências e ausência de saneamento, a consultas, internações e exames. Os conflitos começam na identificação de causas que afetam a saúde. Agrotóxicos e refrigerantes estão ou não associados ao aumento de incidência de câncer e obesidade? O aborto inseguro causa mortes evitáveis?

A Corte da Califórnia julgou que a exposição a agrotóxico causou linfoma. A decisão teve consequências imediatas. O valor das ações da Monsanto-Bayer despencou, e a venda do produto foi suspensa. O “New York Times” divulga estratégias de empresas de alimentos e bebidas para organizar a “venda de dúvidas” (o “jogo sujo” da indústria do tabaco dos anos 1950). O investimento da Coca-Cola em grupos de pesquisa para disseminar mensagens que atribuem a obesidade apenas ao desequilíbrio entre ingestão calórica e exercícios fundamentou a proibição de propaganda e cobrança de impostos aos fabricantes. Estudos científicos reunidos pela Organização Mundial da Saúde, evidenciando que 15% das mortes maternas decorrem de abortos inseguros, contribuíram para rever a proibição na Irlanda.

No Brasil, o ministro da Agricultura, que apoia o uso irrestrito de pesticidas, declarou que o glifosato “é seguro” e solicitou a revisão da liminar que cancela o registro do produto. Sair do Mapa da Fome foi um feito, mas não significou integração a padrões alimentares adequados. Atualmente, o país está às voltas com uma epidemia de obesidade e diabetes sem paralelo.Várias empresas de refrigerantes estão instaladas na Zona Franca de Manaus; em vez de pagarem mais impostos, recebem subsídios.

O Programa de Alimentação Escolar articula-se com a agricultura familiar, mas não conseguimos proteger, inclusive crianças, da propaganda intensa de comidas e bebidas com elevadas quantidade de açúcar, sal e gordura. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, 20% das mulheres até 40 anos interromperam a gravidez. Mas a discussão sobre aborto seguro no Congresso Nacional, apesar de poucos e honrosos esforços, segue interditada e está sendo conduzida pelo Poder Judiciário.

A capacidade instalada e o uso de serviços também suscitam controvérsias. Supondo que há consenso sobre a necessidade de alguma assistência pública, fica faltando definir o que farão as unidades assistenciais, quem nelas trabalha e quem será usuário. Onde serão? Quantos consultórios, leitos, profissionais, especialidades, equipamentos e medicamentos? Como será o acesso? Macron vai ampliar coberturas de óculos e lentes, próteses dentárias e auditivas para 100% da população.

Angela Merkel enfatizou a garantia de cuidados médicos e de enfermagem de qualidade, independentemente de renda e área residencial. O Brasil também foi signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, na qual saúde é direito fundamental e progressivo. Mas, 70 anos depois, a emenda constitucional do teto de gastos públicos revirou pelo avesso o direito.

Documento da Confederação Nacional da Indústria - a mesma que mantém pesquisas sistemáticas sinalizando a prioridade da saúde - para os candidatos a presidente passou longe do SUS, da maioria da população. Restringiu-se aos planos privados.

Às vésperas das eleições, o direito à saúde não está na agenda das autoridades governamentais e empresariais, como se fosse um assunto exclusivo para ingênuos ou esquerdistas fanáticos. Enquanto isso, países industrializados, governados por conservadores ou progressistas, mais ou menos atingidos pela recessão econômica, expandem seus sistemas públicos.

Ligia Bahia é membro da Comissão de Epidemiologia da Abrasco.

'Escrito e desfeito', artigo de Ligia Bahia

 


Fonte: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
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