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Entrevista: pesquisador da ENSP fala sobre diagnóstico e tratamento da febre chikungunya no Brasil

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Publicado em:24/08/2018
Carlos Augusto Ferreira de Andrade, pesquisador e docente da ENSP, membro das Sociedades de Reumatologia do Rio de Janeiro e do Brasil, publicou, junto com outros pesquisadores, um artigo na Revista Brasileira de Reumatologia com recomendações para diagnóstico e tratamento da febre chikungunya no Brasil. Confira a entrevista em que ele explica sobre a pesquisa realizada em quatro estados do Brasil com pacientes diagnosticados com febre chikungunya e manifestações articulares crônicas. 
 
Informe ENSP: Como foi o processo de elaboração dessa pesquisa?
 
Entrevista: pesquisador da ENSP fala sobre diagnóstico e tratamento da febre chikungunya no BrasilCarlos Augusto Ferreira de Andrade: O objetivo deste trabalho foi elaborar recomendações para diagnóstico e tratamento da febre chikungunya no Brasil. Para isso, foi feita revisão da literatura nas bases de dados Medline, SciELO e PubMed, para dar apoio às decisões tomadas para definir as recomendações. Para a definição do grau de concordância, foi feita uma metodologia Delphi em duas reuniões presenciais e várias rodadas de votação on-line. Foram geradas 25 recomendações, divididas em três grupos temáticos: diagnóstico clínico, laboratorial e por imagem; situações especiais e tratamento.
 
Visando conhecer o comportamento da febre chikungunya no Brasil, bem como obter dados para embasar futuras decisões terapêuticas, foi iniciado, em abril/2016, um estudo de coorte multicêntrico – Coorte Chikbrasil –, que tem incluído pacientes brasileiros com infecção pelo CHIKV e manifestações articulares.
 
Inicialmente, seis centros em quatro estados do Brasil (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Sergipe) participaram desse estudo, e os pacientes  foram incluídos se apresentassem diagnóstico clínico-epidemiológico de febre chikungunya com manifestações articulares crônicas. Até o momento, 431 pacientes já foram incluídos, e seus dados têm sido coletados e analisados periodicamente (análises publicadas em julho de 2018 nos anais do EULAR: Annual European Congress of Rheumatology).
 
Informe ENSP: Que recomendações a pesquisa definiu como primordiais para diagnóstico e tratamento da febre chikungunya?
 
Carlos Augusto Ferreira de Andrade: Ressalto que, apesar do elevado grau de concordância entre os pesquisadores, a grande maioria das recomendações apresenta uma qualidade de evidência baixa ou muito baixa devido à escassez de estudos prospectivos bem desenhados sobre o tema:
1) Em situações de epidemia, diante de um quadro agudo de febre, artralgia/artrite intensa, com ou sem exantema, a possibilidade de febre chikungunya deve ser fortemente considerada. No entanto, outras doenças febris agudas devem entrar no diagnóstico diferencial, principalmente diante de casos graves ou atípicos;
2)  Em pacientes com suspeita clínica de febre chikungunya na fase aguda, a avaliação laboratorial (hemograma, enzimas hepáticas, creatinina, glicemia de jejum, VSH/PCR) deve ser decidida caso a caso, a depender das comorbidades e sinais de gravidade;
3)  Para os casos agudos de febre chikungunya, a sorologia (Elisa) para CHIKV (IgM e IgG) só deve ser feita nas formas atípicas ou diante da necessidade de diagnóstico diferencial; deve ser solicitada a partir do décimo dia do início dos sintomas. Nas formas crônicas, a solicitação da sorologia é recomendada para confirmação diagnóstica, mas não para o início do tratamento;
4)  Na fase aguda e subaguda da febre chikungunya, a maioria dos pacientes não necessita de exames de imagens. Na fase crônica, a radiografia simples deve ser solicitada na primeira consulta com o reumatologista, como avaliação estrutural inicial ou de dano preexistente;
5)  Recomendamos atenção em pacientes com diagnóstico prévio de artrite reumatoide, espondiloartrites ou lúpus eritematoso sistêmico, visto que pode ocorrer reativação ou exacerbação da doença de base;
6)  Na fase aguda da febre chikungunya, devem ser usados analgésicos comuns e/ou opioides fracos (em casos de dor intensa ou refratária), devem ser evitados AINEs e salicilatos. Os corticosteroides (CE) não são recomendados nessa fase para as manifestações musculoesqueléticas;
7)  Na fase crônica da febre chikungunya, é recomendado o uso de analgésicos para alívio sintomático. Os opioides fracos (codeína e tramadol) podem ser usados nos sintomas álgicos refratários ou intensos;
8)  Em pacientes com febre chikungunya que evoluem para a fase crônica e apresentam quadro articular inflamatório na dificuldade da retirada do CE, sugerimos preferencialmente metotrexato, nas doses de 10 a 25 mg/semana.
 
Informe ENSP: Qual a história epidemiológica da doença?
 
Carlos Augusto Ferreira de Andrade: O vírus chikungunya (CHIKV), que pertence à família Togaviridae, gênero Alphavirus, foi isolado pela primeira vez em humanos em 1952, durante o primeiro surto em ciclo urbano reconhecido na era moderna científica, quando uma epidemia atingiu a costa de Muawiya, Makondo e Rondo, hoje Tanzânia. A origem do nome vem do makonde, um dos dialetos falados no sudeste do país, e significa “curvar-se para frente ou contorcer-se”, em referência à postura adotada pelo paciente devido às dores articulares que ocorrem durante a infecção.
 
Embora haja ampla gama de espécies de mosquitos Aedes que transmitem a doença na África, no Brasil, os principais vetores são o Aedes aegypti e o Aedes albopictus, cujas fêmeas têm a capacidade de infectar seres humanos por meio da picada.
 
Desde a primeira epidemia de febre chikungunya descrita na Tanzânia, na década de 1950, diversas epidemias menores ocorreram periodicamente até 2004, quando um grande surto foi descrito no Quênia e espalhou-se para numerosas ilhas do Oceano Índico, da Índia e do sudeste da Ásia.
 
Até 2013, as Américas haviam registrado apenas casos importados, a maioria deles nos Estados Unidos, quando, em outubro desse mesmo ano, foram notificados os primeiros casos na Ilha de Saint Martin, no Caribe. Até o fim de 2015, cerca de 1,6 milhão de pessoas tinham sido infectados pelo CHIKV, o que resultou em 71 mortes.
 
No Brasil, os primeiros relatos autóctones foram confirmados quase que simultaneamente no Oiapoque (AP) e em Feira de Santana (BA) em setembro de 2014. Em 2015, foram registrados no país 38.332 casos prováveis, dos quais 13.236 foram confirmados. Em 2016, até a semana epidemiológica (SE) 37 (até 17 de setembro de 2016), já haviam sido registrados 236.287 casos prováveis de infecção pelo CHIKV, 116.523 confirmados sorologicamente.
 
Informe ENSP: Como ocorrem as manifestações clínicas da doença?
 
Carlos Augusto Ferreira de Andrade: O período médio de incubação do CHIKV é de 3 a 7 dias, variando entre 1 e 12. A doença pode evoluir em três fases: aguda, com duração de 7 a 14 dias; subaguda, com duração de até três meses; e crônica, com persistência dos sintomas por mais de três meses.
 
A infecção aguda é sintomática em 80 a 97% dos pacientes. Os sintomas mais comuns são febre de início súbito e artralgia e/ou artrite (praticamente em 100% dos casos), comumente de padrão simétrico e poliarticular. As queixas articulares acometem sobretudo mãos, punhos, tornozelos e pés, na maioria das vezes são de caráter incapacitante. Outras manifestações menos frequentes podem incluir astenia, mialgia (60–93%), cefaleia (40–81%), náuseas/vômitos, diarreia, fotofobia, dor retro-orbital, conjuntivite, dor axial, exantema macular/maculopapular (34-50%), com ou sem prurido cutâneo, edema de face e extremidades e linfadenopatia cervical ou generalizada.
 
Na fase subaguda, predominam os sintomas articulares, ocorrem em até 50% dos pacientes infectados pelo CHIKV. Caracteriza-se pela persistência da artralgia/artrite, bursite, tenossinovite, associadas à rigidez matinal e astenia, com evolução contínua ou intermitente.
 
A prevalência de manifestações articulares crônicas, após a infecção por CHIKV, varia de 14,4 a 87,2%. Essa ampla faixa de variação porcentual pode ser explicada, em parte, por questões metodológicas: variável número amostral, tempo de acompanhamento diferente, medidas usadas para avaliar artropatia crônica e método de coleta dos dados.
 
Informe ENSP: Por quanto tempo indivíduos acometidos por febre chikungunya podem desenvolver manifestações articulares crônicas?
 
Carlos Augusto Ferreira de Andrade: Dados de estudos observacionais estimaram que, na América Latina, 47,6% dos indivíduos acometidos por febre chikungunya irão desenvolver manifestações articulares crônicas. Uma metanálise recente avaliou a prevalência de doença articular inflamatória crônica (DAIC) pós-chikungunya (pós-chik), em 18 estudos selecionados, com 5.702 pacientes. O tempo médio de acompanhamento foi de 17,5 meses, e a prevalência da DAIC pós-chik variou de 25,3% a 40,2%, e dependeu do tipo de estratificação dos estudos.
 
O padrão de comprometimento articular crônico pode ocorrer na forma de queixas persistentes (20-40%) ou recidivantes (60-80%) e inclui a presença de oligo ou poliartralgia de intensidade variável, geralmente simétrica, predomina nos punhos, mãos, tornozelos e joelhos, em associação com rigidez matinal e edema articular. Mesmo pacientes que apresentam melhoria significativa inicial podem cursar com recidivas em até 72% dos casos, com intervalos que variam de uma semana a anos, com sintomas variáveis e com comprometimento das mesmas articulações acometidas previamente.
 
Apesar de a persistência das queixas musculoesqueléticas ser a principal característica da febre chikungunya, pouco foi estudado sobre os fatores que se associam com cronificação e pior prognóstico. Os resultados das séries de casos publicadas demonstram que alguns fatores estão mais associados à evolução para forma crônica como sexo feminino, idade acima de 40 anos, envolvimento articular proeminente na fase aguda (edema e rigidez articulares, poliartrite, tenossinovite), diagnóstico de doença articular prévia, como osteoartrite (OA), e presença de comorbidades, como diabetes mellitus (DM). Por outro lado, a presença de dor articular sem edema ou rigidez foi associada a maior probabilidade de recuperação.
 
Informe ENSP:  Que critérios são recomendados para acompanhamento dos casos?
 
Carlos Augusto Ferreira de Andrade: O diagnóstico da febre chikungunya é tipicamente clínico, uma vez que a associação de febre aguda com artralgia e/ou artrite intensa de instalação aguda é altamente sugestiva, com elevada sensibilidade e valor preditivo positivo, em áreas onde a doença é endêmica e onde epidemias ocorram.
 
Atualmente, no Brasil, a recomendação do Ministério da Saúde é usar os critérios clínico-epidemiológicos para definição de caso suspeito de febre chikungunya. Critérios semelhantes também foram propostos na última reunião de experts feita na Nicarágua, em 2015. Alguns casos podem evoluir de forma atípica, caracterizada pelo aparecimento de manifestações clínicas menos frequentes ou por apresentar sinais de gravidade.
 
Informe ENSP: Outras complicações podem acometer os pacientes com febre chikungunya?
 
Carlos Augusto Ferreira de Andrade: A frequência dos quadros graves é de 0,3%, e estão associados à idade avançada (> 65 anos) e à presença de comorbidades. Existem relatos da ocorrência de sepse e choque séptico em pacientes com febre chikungunya em terapia intensiva, não foi identificado outro possível agente etiológico que justificasse o quadro.
 
O uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) antes da internação, hipertensão
arterial sistêmica (HAS) e doenças cardiovasculares foi fator independente associado ao aumento da mortalidade.
 
As hemorragias são pouco frequentes, têm maior risco ligado à coinfecção com a dengue, e não estão ligadas a alterações de coagulação ou trombocitopenia grave. Similar a outras doenças virais, tais como a hepatite C, a febre chikungunya tem sido associada com alta prevalência de crioglobulinemia mista.
 
O uso desses sintomas pode ser útil para definir casos de febre chikungunya quando o CHIKV é o arbovírus predominante em circulação diante da dificuldade para feitura do teste sorológico. Existem evidências que indicam o desenvolvimento de doenças reumáticas crônicas pós-infecção pelo CHIKV.
 
Informe ENSP: Mas já foi comprovada essa associação da febre chikungunya com as doenças reumáticas?
 
Carlos Augusto Ferreira de Andrade: A patogênese da artropatia ocasionada pela infecção pelo CHIKV ainda não está claramente definida, mas estudos feitos com outros vírus artritogênicos demonstram que, possivelmente, a artrite, nesses casos, é decorrente da habilidade do vírus de se reproduzir e mediar dano tissular na articulação, esse dano é dependente da resposta imune do hospedeiro.
 
As séries de casos publicadas demonstram que alguns pacientes, durante a fase crônica, preencheram critérios para artrite reumatoide e espondiloartrites (EpA).  Existem também relatos de exacerbação de psoríase cutânea e deflagração dessa doença após surto de febre chikungunya.
 
Qualquer quadro poliarticular inflamatório que persiste por mais de três meses após a fase aguda da febre chikungunya deve sugerir o diagnóstico potencial de DAIC pós-chik. A rigidez matinal foi considerada a manifestação com o menor poder diagnóstico, devido à sua alta prevalência no período pós-chik, enquanto sinovite e tenossinovite foram altamente indicativos de DAIC, o que pode ser confirmado por ultrassonografia (USG), para diferenciar do edema de partes moles, também característico da doença. Esses critérios são bastante inespecíficos e não foram validados em outras populações; não é possível precisar sua acurácia na prática clínica.
 
Desse modo, recomendamos cautela no caso de seu uso, pois facilmente um paciente com outras doenças inflamatórias crônicas pode ser classificado equivocadamente como febre chikungunya.
 
 
O artigo Recomendações da Sociedade Brasileira de Reumatologia para diagnóstico e tratamento da febre chikungunya, publicado em 28/6/2017, está disponível no site da biblioteca virtual eletrônica Scielo, desmembrado em duas partes:
 
 

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