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Emerson Merhy: Um brincante de mundos outros que convida e instiga a Saúde Coletiva a dançar

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Publicado em:31/07/2018
*Por Bruno C. Dias

Não-signos e não-humanos; máquinas e cápsulas que atravessam e instauram outros em nós, que emergem, pulsantes, a possibilidade de uma vida não-neoliberal e de uma outra Saúde Coletiva, que suporta a diferença e a traz a produção do conhecimento. Emerson Merhy não é ‘emersoniano’, nem nenhum ‘ista’ das tantas correntes que tão bem domina e com as quais convidou para dançar na palestra ‘Saúde Coletiva e o pós-estruturalismo’, realizada na sexta-feira, 28, no 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão 2018).

A abertura coube a Gastão Wagner, presidente da Associação, que ressaltou a intenção da Comissão Científica do Congresso em fazer do Abrascão um espaço para ampliação dos olhares sobre o campo. “Falar da trajetória do Emerson é falar da minha própria história”, saudou Gastão.
 
Emerson Merhy: Um brincante de mundos outros que convida e instiga a Saúde Coletiva a dançar

“Esse título é mais um dispositivo. Essa ideia de pensar a Saúde Coletiva e o pós-estruturalismo não me capturam, até porque tenho cada vez mais dificuldade em dizer: o que é mesmo Saúde Coletiva? O que é mesmo pós-estruturalismo? Acho isso bom”. Ao iniciar a sessão, a primeira ideia que Merhy teve foi produzir um texto canônico, disciplinar. “Aí escrevi, escrevi, escrevi, mas nem vou abrir, vou deixar fechado mesmo. Me esquivo desse lugar de filósofo, de intelectual. Se vocês quisessem essa presença teriam de ter chamado o Roberto Machado”, brincou o médico de formação e professor da Universidade Federal Rio de Janeiro (UFRJ), atualmente no programa de pós-graduação do Instituto de Psicologia (IP/UFRJ).

A interferência da micropolítica e da ideia de pensamento como criação foram os caminhos escolhidos pelo professor que discorreu um feixe de atravessamentos que passou por Marx, Gramsci, Deleuze, Davi Kopenawa, Eduardo Viveiros de Castro e tantos outros. “São linhas de atravessamentos de intensidades diferentes, provocando diferentes encontros e que bagunçaram leituras já feitas, mas que também me compõe, como Marx e Gramsci. E há outras que a gente realmente abandona, como Stálin. É, já fui estalinista, na época da guerrilha” disse o multifacetado Merhy, que depois completou: “quando conheci o conceito de multidão fiquei profundamente instigado, mexido, e resolvi dele tirar proveito. Ao abraçar a multidão, tirei um peso psicanalítico sobre mim.”

Juntamente com a ideia de multidão, conceitos deleuzianos como corpo sem órgãos, diferença e agenciamento também provocaram rupturas em Merhy, pois “me encantam ao mesmo tempo em que não entendo um tanto de coisa, o que passou a ser uma postura formativa para mim.”

Pensar a diferença, para ele, é fazer furos no campo da representação, assim como a ideia de heterogênese, que entende os processos de subjetivação não como nascidos de territórios únicos, mas sim a partir de linhas de força de pensamentos diferenciados, e “que nos chamam ao delírio que, quando produzido no coletivo, perdem negatividade e ganham força de criação”, disparou Merhy.

O delírio passa pelo entendimento de que não é apenas o representativo como dado externo – ou seja, o outro, o outro mundo, a outra natureza – que instaura os encontros, mas sim mundos outros, encontros outros, e que podem ser não-signos, não-humanos e também os dispositivos de cuidado, como o comprimido de alopurinol para controle de ácido úrico que Merhy toma todas as manhãs. “Antes de vir para cá me peguei pensando com essa verdadeira máquina, esse objeto-sujeito me constitui. O comprimido de alopurinol é um sujeito em mim, eu sou um dependente dessa relação, pois não o tomaria se não fosse assim, se não mexesse comigo. Esse deslocamento adquire contornos da heterogênese apontando para outros lugares, provocando a ideia de que dispositivos podem ser não-signos”.

As noções de antropologia reversa, de Roy Wagner; e de antropologia simétrica, de Bruno Latour, também entraram no baile para reforçar a oposição à visão normativa e europeizante de uma metalinguagem sobre o outro, uma produção que afirma ‘que ele não sabe de si mesmo’ que, para Merhy, é fruto da ferida narcísica e de tudo que marca o que é dito moderno e também o pós-moderno.

“A antropologia, assim como as demais Ciências Sociais, tem a tendência de constituir uma narrativa interpretativa sobre o outro. A cautela está em não construir ‘metalinguisticamente’ definições sobre o que são os outros”, explicou ele, utilizando outra noção de Latour, a de objeto-sujeito, que quebra dogmas, como o antropocentrismo, e se aproxima das perspectivas amazônicas. “Na leitura de visões indígenas– natureza, plantas, animais e pessoas – somos todos humanos em forma de corpos distintos”, ressaltando que, enquanto no mundo ocidental a identidade se dá pelos corpos, as perspectivas indígenas a identidade vem da alma.

Dessa ideia, Merhy trouxe outro antropólogo, Pierre Clastres, que, ao trabalhar os conceitos na obra “Sociedade contra o Estado”, apresenta outro ordenamento do conceito de representação, trazendo a ideia de chefe incompetente, que não tem o poder delegado e não delega poder sobre os outros, conduzindo o plano da sociabilidade a uma outra construção do que é o político, colocando o conjunto dessas noções ‘entre parênteses’ , entre a sociedade que existe e que não existe.

A produção desses ‘coletivos de produção social’ não roubam a potência da noção de soberania, mas sim produzem dinâmicas de relações não-soberanas. “São elementos que trazem para nós a desorganização de categorias que fazem abrir a nossa cabeça, a visão do que é esquerda e que atravessam nossos corpinhos sensíveis. Abandonar a ideia do discurso sobre os outros, essa metalinguagem que quer governar os vivos é uma forma de produzir deslizes do campo normativo, dessa construção identitária e que, na historia da Saúde, segue se propondo a ser uma ciência do Estado”, disparou Merhy.

Para o professor, se a Saúde Coletiva quiser sobreviver decentemente e prudentemente aos tempos produtivistas e neoliberais, ela precisa aprender tempos e sociabilidade outros, e mais do que conviver, precisa saber suportar. “Acho que a Saúde Coletiva deveria radicalizar isso. Saber suportar, saber ouvir e acolher o que é diferente, e não interditar nossas publicações. Precisamos abraçar e não negar o que se produz o que não entra nos critérios de citação e pontuação da Capes. A Madel já denunciava isso há muito tempo. Viva Madel”, finalizou Merhy. O sol invadiu auditório-tenda Vitor Valla pelas laterais, abertas para dar vazão ao público ávido pela contradança.

*Bruno C. Dias é jornalista da Abrasco. 

Fonte: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
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