Rio de Janeiro sob intervenção
*Por Bruno Dominguez
O Senado aprovou no dia 20 de fevereiro a intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, proposta dias antes pelo presidente Michel Temer sob o argumento de "pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública". A medida atribui a um interventor, o general do Exército Walter Souza Braga Netto, a responsabilidade de comando da Secretaria Estadual de Segurança, das Policias Civil e Militar, do Corpo de Bombeiros e do Sistema Prisional do estado até 31 de dezembro de 2018. O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, externou publicamente a intenção de expedir mandados coletivos de prisão e captura de suspeitos. "Em lugar de você dizer, por exemplo, rua tal, número tal, você vai dizer, digamos uma rua inteira, uma área, um bairro", explicou. Já o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, afirmou em reunião que os militares precisavam de "garantias" para não enfrentar "uma nova Comissão da Verdade" - que, entre 2012 e 2014, apurou as violações de direitos humanos ocorridas durante a Ditadura de 1964. Para debater sobre a intervenção militar, a ENSP sediou, em 9 de março, o debate Intervenção militar: até onde a vista alcança?, organizado pelo Sindicato dos Servidores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública (Asfoc-SN). A atividade contou com a participação da professora e especialista em segurança pública Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense.
Confira, no vídeo abaixo, a apresentação completa da professora Jacqueline Muniz.
Direitos humanos em alerta
Em nota técnica, o Ministério Público Federal manifestou "perplexidade" com a declaração do general. Para os procuradores, a fala é de "extrema gravidade" pela possibilidade de estimular violação dos direitos humanos por parte dos que atuarão no Rio, cuja população "historicamente suporta a violência em geral e a violência estatal em particular".
O MP também avaliou que a expedição de mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atenta contra inúmeras garantias individuais e configura ato discriminatório, na medida em que o governo faz supor que "há uma categoria de sujeitos 'naturalmente' perigosos e/ou suspeitos, em razão de sua condição econômica e do lugar onde moram".
Previdência sai da pauta
Enquanto a intervenção vigorar, nenhuma alteração na Constituição poderá ser feita. Assim, o governo enterrou a possibilidade de aprovar a Reforma da Previdência este ano - para a qual o Planalto não conseguiu angariar os 308 votos mínimos. Segundo a oposição, a intervenção foi calculada para criar uma cortina de fumaça, já que o governo perderia caso o texto fosse votado no prazo programado, no final de fevereiro.
Moradores fichados
Já nos primeiros dias da intervenção, militares do Exército com celulares pessoais registraram o documento de identidade e o rosto de todas as pessoas que passaram por postos montados nas comunidades de Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia, na zona oeste. A operação teve como base um decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), assinado em 2017. A Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ) classificou o procedimento como grave infração às garantias constitucionais. "A ação afrontou os direitos constitucionais de ir e vir e da liberdade de expressão, ao cercear moradores e equipes da imprensa".
Onda de violência
Para justificar o decreto da intervenção militar, o governo federal afirmou que tem o objetivo de "restabelecer a ordem", dada suposta escalada da violência no estado em razão da atuação de grupos do "crime organizado", em especial durante o feriado de carnaval. Dados do Instituto de Segurança do Rio (ISP) demonstram, porém, que não houve uma onda de violência atípica no período e que, em dezembro de 2017, houve evolução positiva em diversas variáveis com relação a dezembro de 2016. A letalidade violenta teve queda de 10,9% em dezembro de 2017 ante o mesmo mês de 2016; o homicídio doloso teve redução de 5,2%.
Somente em 2017, 1.124 pessoas foram mortas pela polícia no estado do Rio de Janeiro em supostos autos de resistências, casos em que o policial alega que atirou em legítima defesa, segundo o ISP. Os bairros de Acari, Costa Barros, Irajá e adjacências, na capital, e os municípios de São Gonçalo e Duque de Caxias concentraram essas mortes. Em relação a morte de policiais em serviço, foram registradas 35.
Denúncia internacional
A organização não governamental de direitos humanos Justiça Global enviou em 24 de fevereiro informe à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA) denunciando a intervenção militar no Rio de Janeiro. O documento aponta diversas irregularidades no decreto que instituiu a intervenção e sinaliza sua incompatibilidade com os tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário.
"A ruptura institucional instaurada pela medida de intervenção insere-se em um contexto mais amplo de afrouxamento das garantias constitucionais, dos princípios democráticos e das políticas sociais no país, levado a cabo por um governo com déficit de apoio popular e de legitimidade política. A gravidade desta medida ameaça, assim, os direitos e garantias individuais de toda a população do Rio de Janeiro, sobretudo as populações negras e pobres, moradoras de favelas e periferias urbanas", diz a denúncia.
*Bruno Dominguez é jornalista da Revista Radis.
Fonte: Radis 186