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Segurança pública é garantia de acesso a direitos

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Publicado em:26/10/2016

*Por Luiza Gomes e Tatiane Vargas

Segurança pública é garantia de acesso a direitosO Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP), em parceria com a Coordenadoria de Cooperação Social da Fiocruz e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/ENSP), realizou, nos dias 18 e 19 de outubro, o seminário Cooperação e construção de conhecimento em territórios marcados pela violência. O encontro contou com a participação da professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteux, que ressaltou, em sua fala, ser a segurança pública a garantia de acesso a direitos; porém, atualmente, é vista como exclusão de direitos. Durante o evento, também foi lançado o livro ‘Saúde e Segurança Pública: desafios em territórios marcados pela violência’, organizado por Leonardo Brasil Bueno, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e membros da Coordenadoria de Cooperação Social da Fiocruz. A publicação é uma contribuição para o aprofundamento de reflexões que orientem o debate a respeito de saúde e segurança pública na instituição, em diálogo com o Estado e a sociedade civil.

O coordenador da Cooperação Social na Fiocruz, Leonídio Madureira, e o diretor de Recursos Humanos (Direh/Fiocruz), Juliano Lima, formaram a mesa de abertura do encontro. Conforme destacou Leonídio, a Fiocruz parte de um conceito ampliado de saúde, que vai além do paradigma saúde-doença. “Vivemos, hoje em dia, um contexto de violação de direitos, principalmente dos grupos mais vulnerabilizados, como a população do território de Manguinhos, por exemplo. Então, falar em saúde hoje é falar em um contexto de violação de direitos. Mas sabemos que é possível ter uma política de segurança pública que preserve a vida e garanta direitos a toda a sociedade”, destacou ele.

Juliano Lima reforçou que é fundamental promover essa reflexão, pois o tema da violência está colocado na ordem do dia no Brasil e no mundo. “Em territórios vulnerabilizados, a violência se dá num impacto muito maior que em outros locais. A Fiocruz é uma instituição de elevada reputação científica, e nos propomos a construir conhecimento, porém com envolvimento e participação do nosso entorno. Isso, por si só, já é uma inovação. Estamos sempre buscando pensar nosso trabalho inserido no contexto em que vivemos, envolvendo o trabalhador nessa discussão e pensando verdadeiramente nosso papel”, defendeu o diretor da Direh.

O território de Manguinhos e suas vulnerabilidades

Dando início ao seminário, foi exibido um vídeo produzido por moradores de Manguinhos a partir da Educação de Jovens e Adultos (EJA), do olhar de quem vive na comunidade. Em seguida, Leonardo Brasil Bueno, apresentou a pesquisa "Militarização do território e condições de vida de moradores de favela: reflexões a partir da experiência de Manguinhos, Rio de Janeiro", que buscou enfatizar as tensões e os impactos no cotidiano de moradores de favela em decorrência da continuidade do processo de militarização do território das favelas do Complexo de Manguinhos.

Relacionando as consequências da militarização no território, Leonardo apresentou uma tabela, construída em 2012, de aulas perdidas na EJA devido a confrontos armados na região, entre outros atos de violência. Segundo ele, o perfil de mortalidade hoje é sobretudo de jovens entre 14 e 21 anos, negros e moradores de periferias. Leonardo apontou, ainda, a existência de uma relação direta entre militarização e adoecimento, e raramente essa relação de adoecimento é relacionada aos confrontos armados. “Ainda que entre 2012 e 2013 exista redução dos conflitos armados e homicídios, essa tendência não ditou a lógica da ocupação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no território de Manguinhos. A continuidade do processo de militarização do território continua a ter um impacto negativo intenso para o desenvolvimento da Educação de Jovens e Adultos da Escola Politécnica, em parceria com a Rede CCAP, assim como para o trabalho em Cooperação Social e o apoio a ações territorializadas”, afirmou Leonardo.

Com forte e longa militância na área jurídica, Luciana Boiteux, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) citou a política de drogas e sua interface com a segurança pública destacando o papel central da Fiocruz nesse território, inclusive fisicamente. Segundo ela, a política de drogas atual é pensada numa lógica de militarização, que sempre enxerga o outro como inimigo. “O Estado sempre chega nesses territórios com repressão; saúde e segurança pública não é o que vemos nesses territórios. E segurança pública é garantia de acesso a direitos. Porém, atualmente, é vista como exclusão de direitos”, lamentou Luciana.

A professora destacou ainda a relação entre segurança pública e outras políticas sociais. Segundo ela, a formação da polícia militar, por exemplo, deve ser repensada para uma lógica que acompanhe a perspectiva de direitos. “Com base no Mapa da Violência, vemos os altos índices de homicídios, e o Estado tem o dever de intervir sobre isso. A militarização nos territórios vulneráveis tem apenas um alvo: o jovem negro. Essa lógica de repressão e violência no combate ao tráfico não resolve nada. A culpa não pode ser de um policial, mas de que tipo de polícia nós estamos usando”, advertiu ela.

Luciana citou também os efeitos da atuação repressiva do Estado e sua relação com o estresse pós-traumático para os moradores de comunidades. Em sua opinião, para mudar a política repressiva atual, é necessário ter registros confiáveis e disponíveis a fim de mudar essa lógica perversa de redução de acesso a direitos. “Existe, hoje, enorme falta de acesso a tratamentos e a políticas sociais; é mais fácil que a demanda venha por repressão, e isso reforce cada vez mais a militarização. Ou seja, estamos falando de uma exclusão social muito clara e objetiva”.

Por fim, a professora apontou alguns efeitos da PEC 241 nas políticas sociais demostrando como a PEC vai influenciar na redução de políticas públicas. “Com a redução das políticas sociais, o controle das populações que vivem em territórios marcados pela violência vai ser sempre a militarização. Precisamos construir mecanismos que fujam dessa realidade”, concluiu Luciana.

Encerrando a atividade, houve lançamento do livro Saúde e Segurança Pública: desafios em territórios marcados pela violência, organizado por Leonardo Brasil Bueno e colaboradores. A publicação é uma contribuição para o aprofundamento de reflexões que orientem o debate a respeito da saúde e segurança pública na instituição em diálogo com o Estado e a sociedade civil.

Ações Institucionais

No segundo dia de evento, 19 de outubro, o debate teve como foco as ações institucionais desenvolvidas em cooperação por unidades e departamentos da Fiocruz nos territórios militarizados onde a Fundação está presente. Compuseram a mesa Alessandro Batista, coordenador do serviço de visitação do Museu da Vida, Eliane Vianna, coordenadora do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Farias da Escola Nacional de Saúde Pública (CSEGSF/ENSP), e Leonídio Madureira, coordenador da Cooperação Social da Presidência.

Como preâmbulo das falas de abertura, foi exibido o vídeo “Manguinhos contra a violência”, produzido por alunos do EJA Manguinhos sobre o ato cultural “Eu só quero ser feliz – Por garantia de direitos na favela onde eu nasci”, que ocupou a Avenida Leopoldo Bulhões com diversas manifestações artísticas dos coletivos locais, em 18 de junho, contra as violações de direitos e a política de segurança pública do Estado para favelas.

Alessandro Batista apresentou a cronologia das iniciativas do Museu da Vida, desde a sua criação, em 1999, e o contexto da criação da linha de trabalho de Ações Territorializadas – também sob sua coordenação. O núcleo organiza oficinas, intervenções teatrais, exposições, e atividades culturais em geral em territórios socialmente vulnerabilizados circundantes à Fiocruz.

Ele conta que a frente de Ações Territorializadas do Museu da Vida começou a se formar a partir do engajamento de profissionais do Serviço de Visitação no projeto intitulado “Manguinhos: Território em Transe”, apoiado pelo edital da Coordenadoria de Cooperação Social, em 2011, que realizou uma pesquisa oral sobre a história de Manguinhos com moradores e, mais tarde, foi transformada em exposição itinerante.

Construção coletiva

De acordo com Alessandro, um dos diferenciais de uma ação cultural territorializada é que ela segue a metodologia de uma tecnologia social. “A gente não simplesmente leva a exposição, primeiro identificamos potenciais parceiros presentes naquele território, apresenta para eles as possibilidades do nosso trabalho (oficinas, exposições, etc), e é este diálogo que vai definir os contornos dessas atividades, reconstruindo as ações para se relacionarem com conteúdo programático de escolas, com calendário da saúde”, exemplificou.

Em sua fala, Leonídio Madureira retomou alguns momentos históricos do órgão quando este ainda atendia pelo nome de Coordenação de Projetos Sociais e da sua mudança para Coordenadoria de Cooperação Social. À época, um grupo de trabalhadores da Fiocruz foi convidado  a pensar sobre qual seria o lugar dos projetos sociais na Fundação. O diagnóstico feito por este grupo apontou para um trabalho que extravasasse o escopo metodológico e político que definiria um setor de responsabilidade socioambiental, e representasse maior alinhamento com a missão institucional da Fiocruz, segundo Leonídio.

“Entendemos que este era um espaço importante a ser ocupado, e que deveria se relacionar com o que se apontava desde a Reforma Sanitária, nos processos conferenciais de saúde, de contribuir para a melhorar qualidade de vida das pessoas que vivem em situação de empobrecimento e sob diversas formas de vulnerabilidades”, contou. “Em um segundo momento, identificamos que existe um lugar aonde essas pessoas estão, nas favelas, nos quilombos, periferias e comunidades tradicionais, e que era preciso atuar para ampliar suas capacidades de intervenção, proposição e controle social de políticas públicas, em especial daquelas ligadas à saúde”

Ele narrou que foram identificadas metodologias  e estratégias de intervenção, a partir do lugar de uma instituição pública de Estado, vinculada ao Ministério da Saúde do Governo Federal, que tornassem esse trabalho essencialmente cooperativo. Entre elas, Leonídio destaca a articulação com organizações presentes no território e a necessidade estratégica de construir e fortalecer espaços coletivos, como o Fórum Social de Manguinhos, o Conselho Gestor Intersetorial, e o Conselho Comunitário de Manguinhos. Destacou ainda a formação de redes internas e externas à instituição.

Eliane Vianna, do Centro de Saúde, também destacou a importância de ações empreendidas por unidades e departamentos se conservarem dentro de um alinhamento institucional para que não terminem com o tempo. “Algumas se transformam pelas necessidades, mas tantas outras acabam se perdendo porque o profissional se aposenta, porque esse jogo de disputas e interesses também faz com que a proposta original seja descaracterizada. O maior desafio é a perenidade dos projetos e que se preservem seus objetivos originais”, argumentou.

Trabalhadora do Centro de Saúde desde 1999, ela ressaltou o protagonismo do Centro de Saúde na articulação com o território de Manguinhos. “São 50 anos de articulação com território a partir de uma necessidade dos profissionais e que o diretor da época viu, não só para buscar interação na pesquisa e ensino mas para atender necessidades locais”, lembrou. Iniciativas como o Bazar da Solidariedade, o Conselho Gestor de Saúde, e a Rede Manguinhos no Controle do Aedes – integrado pelo CSEGSF -, foram lembradas como movimentações profícuas por parte do departamento.

Contribuições do público

Catia Nascimento, do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) e moradora de Manguinhos, citou o fato de ser indispensável o protagonismo dos moradores para conquistas sociais. André Lima, do Conselho Comunitário de Manguinhos, frisou que o combustível para a construção do Sistema Único de Saúde foi, justamente, uma luta política. Flora Almeida, da Rede CCAP, grifou a importância de promover ações nos territórios de favelas que consolidem a memória de luta local, exemplificando a atuação do Museu da Maré e do Ecomuseu de Manguinhos.

José Beserra, morador de Manguinhos há 53 anos, apontou que era necessário conceber a violência como elemento constituinte da organização social forjada pelo capitalismo. A psicopedagoga Norma Souza fez um informe sobre o Projeto Marias, o qual coordena, que recebeu da Asfoc-SN a medalha Jorge Careli de direitos humanos pela luta pela inclusão social das pessoas com deficiência. Elenice Pessoa, membro do CGI, valorizou a iniciativa de formação da Comissão contra a Violência em Manguinhos, ano passado, que reuniu pessoas vinculadas a diferentes frentes de luta para um objetivo comum.

*Luiza Gomes é jornalista da Coordenadoria de Cooperação Social da Fiocruz.
*Tatiane Vargas é jornalista da Coordenação de Comunicação Institucional da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). 



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