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Voltando ao normal: uma crítica à redução dos espaços de normalidade no mundo

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Publicado em:22/09/2016
Voltando ao normal: uma crítica à redução dos espaços de normalidade no mundoOs pesquisadores e professores Paulo Amarante e Fernando de Freitas apresentam suas considerações sobre o livro 'Voltando ao normal', de Allen Frances, editado em 2014 e que acaba de ser lançado no Brasil. Frances esteve no Rio de Janeiro em 14 e 15/9/2016 para divulgar a obra, na palestra A clínica contemporânea e a medicalização da vida. A partir do que vivenciou como autoridade em diagnóstico psiquiátrico, ele faz no livro uma crítica de como a Psiquiatria vem reduzindo cada vez mais os espaços da normalidade na vida contemporânea.

Leia abaixo a resenha. 
 
Voltando ao normal: uma crítica à redução dos espaços de normalidade no mundo
Fernando F. P. de Freitas e Paulo Amarante *
 
Voltando ao Normal, livro escrito por Allen Frances, que chega agora ao público brasileiro, certamente será muito bem recebido por parte de nossa comunidade acadêmica, profissionais de saúde, pacientes psiquiátricos e pela sociedade em geral. Frances, clínico, educador e pesquisador, é autoridade líder em diagnóstico psiquiátrico. Ele presidiu a força-tarefa do DSM-IV [a quarta e maior revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, realizada em 1993]; integrou a equipe que preparou o DSM-III-R; e escreveu a versão final da seção Transtornos da Personalidade no DSM-III – participações que estão em foco nas críticas que formula na nova obra. É autor de várias centenas de artigos e de mais de uma dezena de livros.
 
O título em inglês do livro que aqui chega parece ser mais sugestivo e provocante  – Saving normal: An insider's revolt against out-of-control psychiatric diagnosis, DSM-5, Big Pharma, and themedicalization of ordinary life (Salvando o normal: revolta de um insider contra a falta de controle do diagnóstico psiquiátrico, o DSM-5, a indústria farmacêutica e a medicalização de nossa vida cotidiana). Ao nosso ver, com esse subtítulo, fica mais explícita a intenção do autor de denunciar, a partir do próprio olhar e daquilo que vivenciou, um dos flagelos da nossa civilização contemporânea: a associação da Psiquiatria com os interesses mercadológicos da indústria de psicofármacos. Mantivemos o termo insider no original por sua especificidade, já que qualquer tentativa de tradução, como a de um observador de dentro do métier, ou algo assim, poderia ser insuficiente.
 
Em linguagem acessível ao público em geral, Frances oferece ao leitor passagens de sua história pessoal e profissional, apresentando críticas contundentes de como a Psiquiatria vem reduzindo cada vez mais os espaços da normalidade na nossa vida contemporânea. Como um insider, a crítica não vem de alguém que possa ser considerado um antipsiquiatra, mas de quem conhece o universo sobre o qual está falando. O doutor Frances critica a Associação Americana de Psiquiatria (APA), condena duramente sua competência para patrocinar um Manual de Diagnóstico da importância do DSM, denuncia seus conflitos de interesse financeiro e lamenta que a nova versão do DSM (o DSM-5) tenha sido uma produção apressada e até mesmo muito mal feita.
 
Em vários momentos, ele próprio reconhece haver sido responsável (embora involuntariamente) por abrir as portas à ampliação desmesurada dos diagnósticos psiquiátricos, criticada por ele no livro. É o caso do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), categoria de diagnóstico que tem condenado grandes contingentes de crianças nos Estados Unidos e no mundo inteiro a tratamento, e, o que é mais alarmante, cada vez mais nos primeiros anos de vida. O Brasil é o segundo país no ranking de prescrição de medicamentos para crianças com esse diagnóstico; só perde para os EUA.
 
Frances nos sugere que é fundamental para a própria Psiquiatria combater os exageros. De imediato, a própria APA, que tem se desviado das suas funções sociais por políticas equivocadas que levam a conflitos de interesses, em particular, devido a determinadas alianças com a indústria farmacêutica. É verdade que aquele leitor que tem conhecimento de como as versões do DSM-III e IV foram construídas fica na dúvida quanto a ser possível separar os interesses corporativos da Psiquiatria e da indústria farmacêutica, na medida em que não faltam evidências na literatura científica de o quanto essas duas corporações dependem visceralmente uma da outra. 
 
Por um lado, a APA e as associações nacionais de psiquiatria (no caso brasileiro, a ABP), os psiquiatras, departamentos de psiquiatria das Universidades e parte significativa de suas linhas de pesquisa são atores sociais que dependem de financiamento para as suas atividades. Por outro lado, os grandes laboratórios igualmente dependem, para expansão dos seus negócios, de que novas categorias de diagnóstico surjam e de que mais gente seja diagnosticada nas categorias já existentes, com prescrição das drogas produzidas para tratar dos supostos transtornos categorizados. Em comum, entre a Psiquiatria e a indústria farmacêutica: expansão de mercado.
 
A versão 5 do DSM, última revisão realizada, causou reação nunca vista, com movimentos como o Stop DSM e o No Gracias, entre muitas outras manifestações, como a do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NMHI), que decidiu não financiar pesquisas que utilizassem a versão do manual como base de pesquisas.
 
Uma questão que nos parece não ser enfrentada pelo doutor Frances refere-se aos medicamentos psiquiátricos, na sua opinião, importantes para muitos pacientes, devendo haver prescrição e acompanhamento criteriosos. O problema seria a da prescrição criteriosa? Evidências científicas acumulam-se sugerindo que muitas das drogas psiquiátricas causam mais danos do que benefícios, em médio e longo prazos. Salvando o normal é um livro que tem também o objetivo de salvar a Psiquiatria, para que não se dilua no erro de que, se tudo é anormal, é possível prescindir dos experts, do saber do especialista. Um dos horrores da Psiquiatria é que seu território está sendo tomado por importantes concorrentes: pediatras, cardiologistas, neurologistas, clínicos generalistas, médicos de família etc., que, cada vez mais, prescrevem e tratam de problemas mentais, emocionais, psicossomáticos – ou o nome que se queira dar.
 
Questões como essas, que fazem parte do nosso cotidiano, certamente ganham intensidade em busca de respostas ao se ler o livro Salvando o normal.
 
* Fernando F. P. de Freitas é professor/pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/Ensp/Fiocruz), da Fiocruz, e professor adjunto do Instituto de Psicologia da Uerj; Paulo Amarante é presidente Honoris Causa da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme),  vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e  pesquisador do (Laps/Ensp/Fiocruz).
 

Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

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