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Marcha dos agentes comunitários e discussão sobre papel do sanitarista marcam 1° OcupaENSP

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Publicado em:02/06/2016
 
Pequenos caixões de papel para representar perdas reais, enormes. Na portaria da ENSP, durante a primeira ocupação promovida pelo Fórum dos Estudantes da Escola, o SUS, a previdência e as lutas das minorias foram enterrados simbolicamente. Como guardião desse cemitério de direitos, o rosto do presidente interino Michel Temer, estampado em um pano de chão onde se lia a palavra golpista. Os panos, obra do artista plástico Roosevelt Avelino Trindade, os cartazes, confeccionados pelos alunos da ENSP, as palavras de ordem, os debates e, principalmente, o desejo de resistência foram a tônica do evento. O OcupaENSP contou ainda com intervenções culturais e com uma marcha dos Agentes Comunitários de Saúde. Eles querem a revogação das portarias que retiram a obrigatoriedade deles na composição das equipes da estratégia de saúde da família. 

Marcha dos agentes comunitários e discussão sobre papel do sanitarista marcam 1° OcupaENSP
 
Logo pela manhã, o salão internacional recebeu a psicanalista Cecília Boal e a historiadora Rejane Hoeveler como facilitadoras do debate “Precisamos falar sobre a democracia”. Como o próprio nome sugeria, a intenção era refletir sobre os caminhos e os descaminhos da participação popular nos mecanismos decisórios e sobre como o atual processo que se vive no Brasil está relacionado a um panorama maior, mundial. Primeira a falar, Cecília Boal destacou as lutas que vêm sendo travadas nas ocupações das escolas e também em prédios do governo, como a sede do Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro. 
 
- Estou encantada com todos os ocupas. Não é o governo Dilma que nós estamos defendendo, mas a nós mesmos, a nossa dignidade. 
Em seguida, Cecília falou sobre a trajetória de Augusto Boal, dramaturgo morto em 2009 de quem é viúva. O Teatro do Oprimido, que consagrou Boal internacionalmente, nasceu de uma intensa luta política e da vontade de não se entregar.
 
- Durante os anos de 1960, Boal fez parte do Teatro de Arena, que era um teatro realmente militante. Eles iam, por exemplo, para Pernambuco para trabalhar com o pessoal das Ligas Camponesas, de Francisco Julião. Foi por isso e por sua ligação direta com Carlos Mariguela que Boal foi sequestrado na saída de um ensaio e passou quatro meses desaparecido. Fomos para o exílio e, como ele achava que o mais importante era um militante não aceitar a derrota, criou o Teatro do Oprimido. Quando Boal perdeu seu país, sua língua e seu teatro, desenvolveu esse método que o fez conhecido no mundo inteiro.
 
Mesmo diante da importância da obra de Augusto Boal, Cecília tem encontrado dificuldades para a manutenção de seu acervo. Essa dificuldade se dá, em parte, porque Cecília cultiva uma característica um pouco fora de moda nos tempos atuais: coerência. 
 
- Eu já recebi propostas da New York University para cuidar do acervo do Boal. A New York University era uma parceira do Boal, com a qual ele trabalhava todos os anos; não estou aqui falando mal dessa universidade americana,  mas acho um absurdo que ela cuide do acervo, como acho um absurdo o Itaú Cultural pagar o tratamento desse acervo. O Boal não teria gostado de ter um banco privado, que está enchendo o bolso e está participando de todos os golpes, tratando do acervo do Teatro do Oprimido. 
 
Apesar da luta diária pela preservação dessa memória tão importante, Cecília não quer ver sua voz confundida com a daqueles que se arvoram em falar mal do Brasil. 
 
- Outro dia, peguei um avião, sentei ao lado de dois brasileiros, universitários. Uma jovem advogada quer morar na Austrália porque já não gosta do Brasil. Outro rapaz, que iria trabalhar no Chile, era um engenheiro jovem, de Belo Horizonte. Perguntei se conhecia Guimarães Rosa. Não conhece. Não é fantástico? Pessoas que passaram pela universidade não conhecem Guimarães Rosa? O que que se ensina aqui? Quem não valoriza a sua história, não se reconhece, é mais passível de ser invadido. 

Marcha dos agentes comunitários e discussão sobre papel do sanitarista marcam 1° OcupaENSP
 
Foi justamente essa invasão, que hoje se dá não com tanques ou navios, o centro da fala de Rejane Hoeveler. A historiadora lembrou que América Latina é um continente marcado por golpes e por uma direita violenta.
 
- É um continente caracterizado por uma propriedade concentrada e que sempre tratou os divergentes, os movimentos sociais, os subalternos, como caso de polícia. 
 
Em seguida, Rejane traçou um panorama das transformações dos regimes democráticos nos países capitalistas nos últimos 40 anos. De acordo com a historiadora, o fenômeno da Troika (cooperação entre o Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia para negociar os programas de crédito da zona do euro), a ascensão de Donald Trump na corrida eleitoral americana e o impeachment da presidente eleita Dilma Rouseff no Brasil estão relacionados. A análise de Rejane começa em 1975, quando Estados Unidos, Japão e a Europa Ocidental produziram um documento em que analisavam as consequências da efervescência dos movimentos sociais dos anos 1960 na crise de governabilidade dos anos 1970. 
 
- Esse relatório foi escrito, basicamente, por um cientista político chamado Samuel Huntington, que esteve no Brasil muitas vezes. Intitulado “Crise da Democracia”, o prognóstico era de uma grande ameaça que vinha dos movimentos daqueles chamados partidos irresponsáveis, que se confrontavam com a ordem estabelecida. Estamos falando de maio de 1968, do movimento negro, feminista, LGBT, ocupações, greves. Essa crise da democracia era a impossibilidade de garantir a dominação capitalista nos mesmos moldes dos regimes democráticos construídos no pós-guerra, do welfare state. 
 
Segundo Rejane, essa lógica é que faz com que a explicação dada para as crises econômicas continue sendo a mesma: excesso de direitos. 
 
- Não dá para não lembrar do FMI dizendo que a crise na Europa se deu porque os trabalhadores tinham direitos demais. Nos últimos 40 anos, viveu-se um avanço tremendo das expropriações, não só fundiárias, mas de direitos. É um processo avassalador e na América Latina mais ainda, porque além de sustentar uma burguesia truculenta, temos que mandar parte de nossas riquezas para os países centrais. O que tem a ver a Troika com os golpes constitucionais contra Fernando Lugo no Paraguai ou Manuel Zelaya, em Hunduras? É que os golpes contemporâneos não são mais com militares nas ruas. Eles são feitos por dentro dos mecanismos constitucionais, democráticos. São golpes dentro dessa democracia já restrita e blindada que foi erguida nas últimas quatro décadas contra os movimentos sociais, contra qualquer possibilidade de enfrentamento. 
 
Papel do sanitarista no atual contexto político
 
Na parte da tarde, a agenda do OcupaENSP contou com um debate sobre o papel dos sanitaristas no atual contexto político. Como facilitadores das discussões, estiveram presentes Lígia Bahia, pesquisadora da UFRJ, e José Wellington Gomes, da ENSP. Lígia abriu sua fala mostrando uma reportagem do jornal Estado de São Paulo, de meados dos anos 1980, que fala da 8° Conferência Nacional de Saúde. Desclassificada como um seminário de menor importância, a conferência e os temas nela expostos foram rotulados como ideias esquerdistas e estatizantes de sanitaristas como Sergio Arouca e Ézio Cordeiro, ligados aos partidos comunistas. A conclusão do jornal era a de que a ideia de um sistema universal de saúde seria prejudicial ao Brasil. Arouca, na reportagem do Estadão, é encarado como um cientista de menor importância, que não tem em seu currículo feito maior do que ter ajudado a construir o sistema de saúde da Nicarágua.   

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- Esse é um passado em que os sanitaristas eram assim identificados, para nos darmos conta da polarização que estava aberta na sociedade. Não era uma luta fácil, destacou Lígia. 
 
Depois de mostrar como a direita via os militantes da reforma sanitária, a pesquisadora fez uma crítica ao que se tornou o sanitarista hoje. 
 
- Atualmente, eu diria que temos um novo momento. Temos todos esses conselhos, como o Conass e o Conasems,  sanitaristas que andam de terno e gravata. Há uma mudança entre antigos sanitaristas, muito identificados com as esquerdas, os partidos de esquerda e os novos, que são gestores, ocupam posição nos governos. São sanitaristas que mandam. E é diferente a utopia de você querer ser chefe e a de querer mudar o mundo. Temos que pensar sobre isso. 
 
Por fim, a pesquisadora falou da importância de se trazer a discussão da previdência para o atual debate. 
 
- Eu penso que o principal problema, de fato, da política social não é a saúde. É a previdência. Nós estamos aqui reunidos para falar da saúde, mas eu faço um apelo: não falemos só da saúde. A gente vai ter que identificar qual é o núcleo duro, onde eles querem destruir. Quanto à saúde, eles já estão bem: o Brasil já tem um sistema de cobertura universal, quem pode tem plano de saúde, quem não pode, tem o SUS, mas a previdência, não. Nós temos um sistema estatal de seguridade, e é isso que eles querem privatizar. É muito dinheiro. Faz com que os fundos de pensão que hoje estão sendo acusados de corrupção sejam uma brincadeira perto do que pode ser a capitalização do fundo da previdência social. É isso que está em pauta quando se transfere a previdência social para o Ministério da Fazenda. 
 
O pesquisador da ENSP José Wellington Gomes falou em seguida e iniciou sua exposição lembrando que os sanitaristas, muito antes da reforma sanitária, já interferiam na vida política nacional.
 
- Para ficarmos em um exemplo, eu lembro de Artur Neiva e Belisário Pena, lá no começo do século passado. O Artur Neiva, nos anos 1920, era amigo de Monteiro Lobato e foi por causa dele que o escritor mudou o personagem do Jeca Tatu, (O personagem, primeiramente, foi identificado como causa do subdesenvolvimento brasileiro, por sua preguiça, mas a partir do trabalho dos sanitaristas, foi possível o entendimento de sua condição como consequência do abandono por parte dos governos, da pobreza, etc.).
 
Em seguida, José Wellington lembrou da época em que, ao dizer que gostaria de trabalhar com saúde pública, confundiam o termo com "caridade pública".  
 
- No final dos anos de 1970 e início dos anos 1980, a gente percorria o Brasil para ajudar a implementar os cursos descentralizados de especialização em Saúde Pública. Não havia sequer conhecimento do que era isso, no Brasil. Nos cursos, saíamos em busca de parceiros nas secretarias estaduais e municipais, para promovessem autonomamente o conteúdo. Foi uma época de grande revolução cultural na saúde e, hoje, temos escolas de saúde pública em quase todos os estados brasileiros. 
 
Esse conhecimento sobre o que é o campo da saúde pública, de acordo com José Wellington, é essencial para combater o sofrimento que muitos profissionais passam ao ingressar no sistema de saúde. 
 
- Eu acho que uma grande fonte de sofrimento é a pessoa estar num canto, dentro de um sistema e não saber qual papel desempenha. Eu falo também a partir das residências, que para mim é o melhor campo para a formação dos sanitaristas, porque é uma potência, na medida em que se tem essa mistura entre a academia e os serviços. Isso é algo avassalador pra mim. Gosto muito disso. Ainda mais quando se tem a oportunidade de sujar as botas nas favelas. 
 
Encerrando sua fala, o pesquisador fez uma proposta para que se crie uma grande rede virtual dos profissionais do SUS, para mobilizar ações de resistência e troca de informações.
 
-  Temos que organizar uma rede que mantenha informações constantes sobre o SUS. Podemos começar pelos agentes de saúde, que muitos dizem ser a ponta mais fraca do sistema, mas que pode não ser. Isso depende da nossa capacidade de mobilização.
 
Ainda sobre o papel do sanitarista, Hermano Castro, diretor da ENSP, fez um breve comentário, durante o debate, para lembrar que parte das brechas que permitiram retrocessos nas conquistas da constituinte de 1988 já nasceram junto com a Constituição. 
 
- Cada passo na construção do SUS foi difícil. Circulávamos o Congresso Nacional, íamos para todo o país discutindo. Eu lembro que, na 8ª Conferência, o Sergio Arouca saiu de uma última reunião em que os donos dos hospitais brigaram para deixar espaços legais no projeto que se queria implementar. Ao longo desses anos, o SUS vem sendo atacado. Hoje, 60% do recurso público do SUS, bilhões que tanto precisamos, vão para a mão do serviço privado, para a OS, para os hospitais conveniados e ali vale tudo, como vocês já bem apontaram. Então, precisamos avançar muito mais no sistema de saúde. Dentro de um regime democrático é muito mais fácil, e eu acho que esse modelo que colocou no dia 17 [de abril, dia da votação do impeachment na câmara dos deputados] não é democrático. 
 
Marcha dos ACS encerra debate
 
O debate sobre o papel dos sanitaristas na atualidade teve como auge a chegada dos agentes comunitários de saúde que haviam feito uma marcha em Manguinhos. A reivindicação deles é a revogação das portarias que retiram a obrigatoriedade se se ter ACSs nas equipes de saúde da família. Eles entraram no Salão Internacional com cartazes e gritos de ordem em defesa de seu trabalho e ressaltando sua importância no sistema de saúde. Jorge Nadais, uma das lideranças dos ACS, agradeceu o apoio da ENSP em sua luta, que para ele é de todos os que defendem o Sistema Único de Saúde.

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- Essa não é uma defesa somente da nossa carreira, mas uma defesa do SUS. Essa portaria afeta todo um processo de construção de educação em saúde que é desenvolvido pelo agente comunitário. O ACS precisa, sim, ser capacitado; nós temos as nossas deficiências, precisamos de mais informação, qualificação, mas não podemos deixar que nossa carreira acabe. Não podemos deixar que o único elo de informação que existe entre o sistema de saúde e a população mais humilde seja extinto.  
 
Para encerrar, Jorge informou que, no próximo dia 8 de junho, irá a Brasília num grande ato com agentes de todo o país para pedir a revogação das portarias. Depois da pressão dos ACS e outros profissionais do SUS, elas foram suspensas, mas a luta agora é por sua revogação.
 

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