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Pelo direito de ser o que se é: seminário discute gênero e violência

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Publicado em:02/05/2016

Pelo direito de ser o que se é: seminário discute gênero e violênciaDe ressaca, estarrecidos, assustados. Esses foram os estados de espírito descritos por muitos dos participantes do seminário Diálogos Dissidentes: Pelo Direito de Ser, que aconteceu nos dias 18 e 19 de abril na ENSP. O motivo? O evento estava sendo realizado um dia depois da votação do processo de impeachment da presidente Dilma Rouseff na Câmara dos Deputados. Organizado pela Pós-Graduação em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos do Departamento de Direitos Humanos. Saúde e Diversidade Cultural (Dihs/ENSP), a proposta era debater questões relativas aos gêneros e às lutas das minorias. O que havia se passado no congresso nacional, na véspera, acabou invadindo quase todas as falas. No entendimento de palestrantes e demais presentes, os discursos dos deputados, em sua maioria, acabaram por comprovar a preponderância do pensamento conservador na política brasileira e do avanço desse conservadorismo sobre direitos conquistados ou por conquistar. Uma política feita por homens brancos, ricos e cristãos, numa sociedade muito mais plural e diversa do que supõe o entendimento de suas excelências.

“Pela minha família, voto sim!” A frase foi ouvida, talvez, mais de uma centena de vezes nas justificativas dos deputados para seus votos. Nas entrelinhas, o entendimento que grande parte deles têm de que família é formada exclusivamente por um homem, uma mulher e seus filhos. Na contramão dessa visão, a luta de pessoas como Rogério Koscheck, representante da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (Abrafh). “O que queremos é mostrar que somos comuns. Dizer para a sociedade, por meio de campanhas e ações, que não somos diferentes, mas iguais a despeito das pequenas diferenças que temos, e, portanto, todas as famílias, em qualquer composição, devem ser contempladas em seus direitos, disse Ricardo, na mesa que abriu o seminário”.

Ana Rocha, da Secretaria Especial de Políticas para as mulheres da cidade do Rio de Janeiro, aproveitou para lembrar que a onda conservadora não acontece apenas no Brasil. “Têm três anos seguidos que vou na Conferência da ONU sobre o status da mulher e, a cada ano, é uma surpresa. Um retrocesso que observei este ano é que a questão da família estava no singular. Perdemos nessa. Não deixaram entrar famílias no plural, porque isso significava essas novas formações familiares. Os conservadores não aceitam.”

Ainda na mesa de abertura, Vera Lucia Marques da Silva, coordenadora do Curso de Especialização em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos da ENSP, falou sobre a proposta do seminário. “O que se pretende é defender os direitos de cada um ser como é, como se percebe e ter os mesmos direitos que outros cidadãos”.

O diretor da Escola, Hermano Castro, voltou a lembrar do conservadorismo no congresso nacional. “O que eles defendem não é só um avanço do capital sobre as nossas riquezas, mas também sobre os direitos conquistados, porque não conseguem conviver com a diferença. Então, precisamos mais do que nunca ser otimistas e manter a chama acesa. Não se perde a luta de véspera, e mesmo quando se perde algumas batalhas, a chama deve permanecer acesa para a próxima.”

A secretária Ana Rocha proferiu a conferência que abriu o seminário. Com um histórico de lutas pelos direitos das mulheres, a psicóloga e jornalista falou sobre as origens da opressão contra a mulher nos primórdios da civilização. “No primitivo, havia sim divisão de papéis, por conta da maternidade, já que, por amamentar, a mulher não poderia caça; mas, mesmo tendo papéis diferentes, ela não era desvalorizada pela comunidade. Quando a diferença se transforma em submissão, opressão? Quando os povos nômades começam a se fixar e começa a haver acumulação de riqueza. Não se sabia como eram gerados os filhos e não existia a monogamia; então, para garantir a herança, que a riqueza acumulada ficasse com aquela família, o homem confinou a mulher a um espaço privado e passou a tratá-la como uma posse.”

Segundo Ana, essa estrutura milenar se reflete, ainda hoje, na forma como a mulher se insere na cadeia produtiva. “Como ficou a cargo da mulher o cuidado, existe o entendimento de que, uma vez que ela já cuida da casa e dos filhos de graça, o salário é um favor, seja como enfermeira, professora ou outra profissão relacionada ao cuidar.”

Depois da conferência de abertura, a primeira mesa do dia, Retrato da luta de mulheres, recebeu Elisabeth Fleury, do Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça Fiocruz. Ela falou sobre sua dissertação de mestrado, realizada com mulheres do sertão, e da percepção de que a violência não é mero sintoma, mas parte estruturante da sociedade machista. “A violência masculina coloca um patamar de manutenção dessa estrutura. O que mantém esse sistema de opressão do homem sobre a mulher é a violência. Ela não é exercida e não se perpetua por acaso.”

Na mesma mesa, Kelly Verdade, do Elas Fundo Social, trouxe de novo à baila a votação no Congresso, na véspera. “Eu trabalhei três anos em Brasília. Fazia tempo que eu não via tanta homofobia junto discursando com tanta liberdade.” Em seguida, Kelly falou de um trabalho que fez sobre mulheres na política, que a ajudou a compreender os mecanismos que fazem com que o machismo se perpetue no sistema político brasileiro. “Nosso sistema eleitoral, hoje, garante certos padrões de candidatura. É um hermetismo eficiente que desenha, desde 1988, uma câmara de deputados homens, brancos, que movimentam altos recursos em campanhas eleitorais, de interesse de elites econômicas, que são cristãos, heterossexuais, conservadores e ricos. No entanto, a sociedade brasileira tem outros contornos.”

Na parte da tarde, Sérgio Carrara, pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) abriu a mesa Violências contra pessoas LGBT. Carrara lembrou de uma pesquisa pioneira sobre o tema, feita no fim dos anos 1990, numa época em que se dispunha de poucos dados para trabalhar. “Partia-se, normalmente, de notícias da imprensa, que tem o seu valor como fonte, mas é muito limitado. Nós queríamos os dados da polícia e do Judiciário e demoramos quase um ano para chegar a eles, principalmente na Justiça, porque não havia nenhuma indexação que nos ajudasse a chegar aos casos. Isso fala, de algum modo, da invisibilidade dessa questão num certo contexto.”

O pesquisador lembrou que havia uma notável ineficiência nas investigações de execuções de travestis, por exemplo. “Têm casos muito chocantes. Um que me lembro é o de uma travesti assassinada em Copacabana. Um dos poucos casos em que se achou rapidamente o assassino, que era um policial civil. Ele contou a clássica história de que a travesti estava assaltando turistas, e, numa briga, a travesti segurou seu revolver, e ele atirou. No bairro, os vizinhos, se organizaram para defender o policial, já que a presença de travestis naquela área desvalorizava os imóveis. Apareceu uma carta de outra travesti dizendo que havia sido uma disputa por ponto de prostituição, que era controlado pelo policial. Isso aparece no corpo do processo.”

Ao estudar casos como esse, Sérgio se deu conta de que a população LGBT não está sujeita apenas à violência do dia a dia, mas à violência institucional. “A homofobia institucional funciona tanto na absolvição como na não investigação. É recente a motivação homofobia nos Registros de Ocorrência. Isso foi uma conquista do processo de implementação do Rio Homofobia e vai facilitar, esperemos, pesquisas futuras, porque num sistema informatizado, será mais fácil fazer cruzamentos entre os dados.”

A segunda a falar na mesa sobre violência contra gays e LBGTs foi a ativista e líder comunitária Musa. Ela contou algumas das dificuldades por que passa em seu dia a dia. Depois de 48 anos vivendo no bairro de Costa Barros, no Rio, ela se viu obrigada a mudar para Queimados, na Baixada Fluminense. Com medo da reação da nova vizinhança por ser travesti e negra, ela passou seis meses sem sair de casa. Um relato que mostra a imensa dificuldade de inserção social para quem enfrenta preconceitos. “Eu tinha medo de ser linchada, eles eram muito desconfiados com relação a mim. Tentaram levantar meu histórico e viram que não tinha nada. Aos poucos, fui conquistando os moradores, cortando o cabelo de uma senhora, de outra. Depois, fui trabalhar como porteira do prédio. No começo, não falavam comigo, mas eu insistia, dava bom dia, boa tarde, boa noite. A síndica ganhou confiança em mim, me ajudou a me eleger síndica. Depois, virei líder da comunidade de Queimados. Os moradores todos me obedecem. Fizemos um protesto e fechamos a Dutra toda, porque as casas tinham alagado. E, agora, sou líder também da comunidade do Chapadão, em Costa Barros, que dizem ser a comunidade mais violenta do Rio de Janeiro.”

Apesar de suas conquistas pessoais, Musa ainda vive o preconceito e o medo em seu dia a dia. “Ser um travesti negro é muito difícil. Você ser claro é mais fácil na sociedade. Num lugar como o Chapadão, o homossexual tem que andar na linha, senão morre. Eu sempre falo para os amigos para não andar de mãos dadas, não beijar na boca, porque senão matam”.

A última a falar na mesa foi Giowana Cambrone, da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas. Ela lembrou da importância de se pensar como a violência se manifesta de forma diferente com relação às diversas identidades. “Vivemos um estado que, em sua natureza, em sua origem, já se concebe como hétero-cis-normativo. São homens héteros, brancos, de uma elite, que formulam leis, pensam políticas públicas e, normalmente, excluem a população LGBT de uma proteção maior, como deveria ser. Nesse regime, a gente percebe principalmente que as pessoas trans têm um não lugar no estado, como se não fossem sujeitos de direitos.”

Ainda sobre violência, Giowana falou da necessidade de se chegar a um entendimento do que é a homofobia, para combatê-la de forma mais efetiva. “Acredito que há uma necessidade urgente de definição do que é homofobia. Temos uma tendência, principalmente a gente que milita, de apontar como homofobia tudo que afeta sexualidades hetero-discordantes, mas precisamos definir melhor o que é homofobia: se é uma violência contra gays e LGBTs ou é uma motivação. Na minha percepção, tal qual o machismo, que reduz a mulher a uma condição inferiorizante, e por isso ela pode ser vítima de violência, a homofobia reduz o sujeito que tem uma sexualidade hétero-discordante a uma condição que o coloca como vítima de determinados tipos de violências.”

O primeiro dia do seminário Diálogos Dissidentes: Pelo Direito de Ser foi encerrado com uma apresentação da rapper Lisa Castro, artista da Baixada Fluminense e militante negra. O segundo dia do evento contou com uma roda de conversa e uma mesa temática sobre direitos humanos. A cobertura completa desses debates será publicada na próxima edição do Informe ENSP.



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