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As lúcidas obsessões de Carlos Lessa

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Publicado em:11/03/2016

* Pedro Leal David

Uma constituição avançada em direitos humanos, mas que nunca saiu do papel. Um modelo de desenvolvimento urbano que rouba às pessoas as horas mais preciosas de suas vidas. Esses são alguns dos temas que o economista Carlos Lessa, convidado para proferir a aula magna do ano letivo da ENSP, realizada em 9 de março, abordou em sua fala, com a persistência de quem profere um alerta. Na opinião do professor, é preciso resgatar a Constituição de 1988 e trazê-la para o centro dos debates nacionais, e necessário que estejamos atentos para resistir aos avanços do capital sobre o tempo de não trabalho das pessoas. Aos 79 anos, o ex-reitor e professor emérito da UFRJ e ex-presidente do BNDES trouxe para a exposição, cujo tema era A Cidade e a Saúde, sua experiência e saber, mas, sobretudo, a disposição e coragem para dizer o que pensa.

Ao abrir o evento, a vice-diretora de Ensino da ENSP, Tatiana Wargas, ressaltou a importância de se ter Lessa na aula que marca o começo do ano letivo para os quatro programas de Pós-Graduação da Escola: Saúde Pública, Saúde Pública e Meio Ambiente, Epidemiologia em Saúde Pública e Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva. “A vinda de Lessa é um presente para nossos alunos. Queremos que o professor os ajude a desenvolver o pensamento crítico, tão importante nas discussões que teremos ao longo dos cursos.” Nísia Trindade, vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, lembrou da pertinência do tema da aula. “Pensar a cidade, pensar as desigualdades a ela associados é fundamental hoje.”
 

As lúcidas obsessões de Carlos Lessa

Já Hermano Castro, diretor da ENSP, relembrou a história de Lessa e sua importância como pensador da vida nacional. “Carlos Lessa tem uma trajetória de interferência na vida social do país, interferência essa que se deu em alguns momentos mais calmos, mas em outros de luta intensa”. O diretor também lembrou da importância de se discutir o tema das cidades. “Falar das cidades, hoje, é falar das mazelas sociais que temos vivido nos últimos anos. Além disso, vamos viver, este ano, um processo eleitoral em que as nossas cidades serão debatidas. Oitenta por cento da população brasileira vive nos espaços urbanos, e o que temos assistido é a lógica da cidade mercado, em que se pensa somente no capital, e não naquilo que é humano. Isso tem tido enorme impacto para a saúde.”

O professor Carlos Lessa começou a aula dando uma definição bem-humorada de si mesmo. “Sou um especialista em generalidades. Não estudo quase nada, mas não abro mão de dizer o que penso. Não ser um especialista me dá um grau de liberdade que eu vou tentar usar ao máximo aqui, hoje”. Ao falar das cidades, o expositor ressaltou a importância de estudá-las para se pensar o Brasil. “Mais do que os dados das regiões, seriam as comparações inter e intracidades que deveriam ser feitas para se pensar o país. Nós somos um país enorme, policêntrico, mas, ao mesmo tempo, integrado. Somos muito mais integrados que a Espanha, por exemplo. Necessitamos pensar o projeto nacional. É muito bom fazer isso aqui no Rio de Janeiro, por exemplo”.

Em seguida, o economista tocou no tema ao qual voltaria muitas vezes ao longo da aula: a importância das horas livres, de lazer, na vida das pessoas. “Qualidade de vida diz respeito às horas de que dispomos fora do trabalho. Em média, naquilo que eu chamo de orçamento individual de tempo, homens e mulheres dispõe de oito horas livres. Acontece que, nas cidades, a malha urbana corrói essas oito horas. Estamos encurtando o tempo de existir, e isso atinge praticamente todos os extratos sociais. A exceção são aqueles muito ricos, que podem usar helicóptero, mas tirando essa minoria, há uma democratização desse problema.”

O vilão, para o economista, seria o carro. Segundo o professor, cada novo automóvel colocado nas ruas exige o aumento de trinta metros quadrados das vias de circulação, o que, obviamente, não ocorre. “Se quisermos fazer com que a economia cresça apoiada na indústria metal mecânica, não vamos chegar a lugar nenhum. O carro é um objeto de desejo. Não se pode lutar contra um objeto de desejo, mas podemos substituí-lo por outro. Uma possibilidade é a casa própria. Isso se torna possível se houver um redesenho das cidades.”

Constituição de 1988 como foco

Tanto como a necessidade de se preservar o ‘tempo de existir’, ou seja, as oito horas livres das pessoas, a Constituição de 1988 foi assunto recorrente na aula magna. Para o professor, a carta deveria ser estudada, sempre, em nossas instituições de ensino. “Os eixos da nossa produção econômica não são referenciados a 1988. Se a Constituição preconiza o direito à saúde e à proteção no desemprego, então nossa atividade econômica é anticonstitucional. Nossa Constituição é extremamente avançada, mas não foi colocada em prática. Eu me lembro que Maílson da Nóbrega, ministro da Fazenda do Sarney, disse que o Brasil não era administrável com a Constituição de 1988.”

As lúcidas obsessões de Carlos LessaUma das razões que, segundo Lessa, fizeram com que a Constituição Cidadã, como é conhecida a carta de 1988, não saísse do papel foi o avanço da globalização. “Nem tucanos nem petistas conseguiram colocar o centro do debate no capítulo dos direitos humanos da Constituição, porque o avanço da globalização foi muito rápido. Por que foi apagada a lucidez do constituinte de 1988? Porque não interessa à lógica do desenvolvimento do capital a existência de projetos humanitários na periferia.”

A adesão a esse modelo, para o economista, não tem trazido bons frutos ao Brasil. “Vocês se lembram que o Collor disse que o carro brasileiro era uma carroça? Eu me pergunto: e o que a carroça tem de defeito? Hoje, com exceção da chinesa e da hindu, todas as montadoras mundiais estão presentes no Brasil, só que nosso país gasta muito mais com essa indústria, com a compra de peças etc., do que com a exportação de veículos. Ela é deficitária. E, agora, estamos regredindo para sermos um país exportador de minério e de soja e virá o petróleo.”

Sobre a atual crise política, o professor foi enfático ao afirmar que as discussões acaloradas que ora tomam conta das redes sociais e das ruas é vazia no tocante ao projeto de país que se deseja.

“Vivemos um momento de intensa balbúrdia, mas a pauta do debate não está construída. O que há de denominador comum a todos nós? Sermos brasileiros. E o que é ser brasileiro? Muitos intelectuais do passado se debruçaram sobre esse tema. Ainda que não tenham chegado a respostas, construíram a pauta, fizeram as perguntas. Precisamos resgatar esses grandes embates: Florestan Fernandes versus Gilberto Freire, entre outros. Se vocês querem construir a saúde do Brasil, vocês têm que consertar o Brasil”, concluiu.



As lúcidas obsessões de Carlos Lessa

1 comentários
JOSÉ WELLINGTON GOMES ARAÚJO
14/03/2016 12:46
Sim, não há nenhum projeto de Brasil nas ruas, mas o inverso disso. Um bandeira mais coerente seria a própria Constituição Cidadã.