Busca do site
menu

Precisamos falar sobre o aborto

ícone facebook
Publicado em:08/03/2016

Seguro, para quem tem dinheiro, legalizado para homens - ainda que metaforicamente proibido por lei, é praticado todos os dias. O aborto, tema de disputas políticas, jurídicas e religiosas, é um dos grandes tabus nacionais. Uma das perspectivas mais importantes para se discutir o assunto, a da saúde pública, muitas vezes, é ignorada. No Dia Internacional da Mulher, muitas delas e alguns homens aderiram a uma campanha, nas redes sociais, pela legalização do aborto. No Brasil, só existem três hipóteses legais para a interrupção voluntária da gravidez: em vítimas de estupro, em caso de risco de morte para a mãe e quando o feto é anencéfalo. A proibição, para todos as demais situações, é a perfeita tradução da hipocrisia nacional. Na prática, um milhão de abortos são realizados ilegalmente, por ano, no país. Ao fechar as portas da saúde para as mulheres que não desejam dar continuidade à sua gestação, os homens que fazem as leis abrem as janelas por onde entram o aborto inseguro, as sequelas físicas e emocionais e, em alguns casos, a morte. A Revista Radis de março trouxe uma grande reportagem sobre o tema. No texto, o aborto é discutido à luz pública, com dados comparativos sobre o que ocorre no Brasil e em países onde as leis são menos restritivas à prática. O Silêncio Ensurdecedor do Aborto é o título da reportagem, que pode ser conferida abaixo.

O silêncio ensurdecedor do aborto
Data de publicação: 01/03/2016
Um milhão de procedimentos realizados ilegalmente no país exigem maior debate na esfera da saúde pública
 

Precisamos falar sobre o aborto

Ela era quase uma menina. Ela saía da escola e ia para o trabalho, num call center. Ela sofreu violência sexual. Ela engravidou. Ela foi personagem do documentário “Clandestinas”. Ela nunca havia ouvido falar do serviço de aborto legal disponibilizado na rede pública de saúde para casos como o seu. Mas ela fez um aborto — de forma precária, tomando comprimido proibido, escondida no banheiro de casa; ela fez um aborto. A quinta causa de mortalidade materna no Brasil intimida pelas estatísticas mas também pelo silêncio sempre incômodo que atravessa o assunto. Legalizado em território nacional apenas para gravidez decorrente de estupro, risco de morte para a mãe e, mais recentemente, desde 2012, para os casos de diagnóstico de anencefalia do feto, o aborto ainda é um tabu.

Pelos registros preliminares do Ministério da Saúde, em 2015 foram realizados 1.439 procedimentos de interrupção de gestação. Mas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o dado real é dolorosamente maior, chegando a um milhão o número de abortos praticados anualmente no Brasil. “Ou seja, mesmo sendo proibido, as mulheres não deixam de recorrer ao procedimento”, admite a secretária de Políticas Públicas para Mulheres, Eleonora Menicucci, reconhecendo que, ao tratar o aborto como uma questão criminal, o país acaba empurrando para a marginalidade e para a insegurança mulheres que precisam recorrer a essa prática pelas mais diversas causas. “O aborto é uma questão de saúde pública”.

O procedimento é tão comum que, ao completar 40 anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto, aponta a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), um estudo minucioso realizado em 2010 pela organização Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero). Mas é crime. À exceção daqueles três casos apontados no início desta reportagem, praticar aborto no Brasil leva mulheres à cadeia, com punição de um a três anos, como determina o Código Penal. Mesmo com o consentimento da mulher grávida, quem a fizer abortar, por qualquer meio, também pode ser condenado a pena de três anos. “A legislação brasileira é uma das mais restritivas do mundo”, atesta Jacqueline Pitanguy, da Ong carioca Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia).

A socióloga explica que, a partir das décadas de 60 e 70, Europa, Estados Unidos, Ásia, alguns países da África e, mais recentemente, América Latina vêm modificando suas legislações, ampliando as circunstâncias em que é permitida a interrupção voluntária da gestação no sentido de reconhecer que a mulher tem direito à proteção e ao respeito à integridade física e emocional. Em entrevista à Radis, Jacqueline lembra que o aborto não é método de planejamento familiar. “Nenhuma mulher deseja fazer aborto. Trata-se de um último recurso. Mesmo assim, é algo a que ela deve ter acesso”, acrescenta. “Os seres humanos têm o direito de decidir primeiro se, e depois quando, como e com quem ter filho”.

Uruguai, final de 2012. O país aprovou a descriminalização do aborto por meio de lei que permite a interrupção de qualquer gravidez indesejada durante as 12 primeiras semanas de gestação. Em 2015, o Ministério da Saúde (MSP) uruguaio divulgou levantamento apontando que, desde então, o número de mulheres que desistiu de realizar o aborto no país havia crescido 30%. “Não é uma lei que promove o aborto, mas a reflexão. Isso demonstra que muitas mulheres que solicitam o aborto não têm certeza e que as consultas obrigatórias com a equipe interdisciplinar, formada por psicólogos e assistentes sociais, além do ginecologista, estão sendo efetivas”, disse na época a ginecologista e ex-diretora de Saúde Sexual e Reprodutiva no MSP, Leticia Rieppi.

Brasil, 2015. Ainda segundo a OMS, o aborto clandestino mata uma mulher a cada dois dias, e outras milhares sofrem consequências físicas e psicológicas de procedimentos realizados sem qualquer segurança. Para Jacqueline, da Cepia, isso aponta para outra dimensão do problema. Segundo ela, há uma relação inquestionável entre o aborto ilegal e a saúde das mulheres. “Quando o aborto é realizado em circunstâncias de segurança, é uma intervenção cirúrgica sem risco. Quando em condições insalubres, é responsável por um alto índice do morbimortalidade”, reflete, sugerindo que são as mulheres mais pobres e desprovidas de acesso à saúde ou de condições para interromper a gestação em condições seguras as que engrossam as estatísticas.

Vozes clandestinas

“Quem não tem como pagar / se vira como dá / agulha, remédio e chá / e continua por lá / sangrando no escuro, só”. Os versos da rapper BrisaFlow abrem o documentário “Clandestinas”, dirigido pela cineasta Fádhia Salomão em 2014. “Nossa proposta era colocar em cena mulheres, como eu e você, mostrando a cara e falando abertamente sobre o assunto, expondo suas histórias sem uma tarja no rosto”, conta à Radis. Ao lado da roteirista e coidealizadora do filme, Renata Teixeira, Fádhia entrevistou dezenas de mulheres que realizaram aborto por diferentes motivos. Acabaram descobrindo que a melhor maneira de preservar essas mulheres era colocando-as entre atrizes que também representam histórias de mulheres anônimas. O espectador não saberá quem é quem.
 

Precisamos falar sobre o aborto

Mas não importa. O que se vê ao longo de quase 30 minutos são relatos duros e sensíveis a um só tempo, de quem passou pela rede pública, de quem lançou mão de métodos agressivos, de quem se deparou com as dúvidas e os medos diante da situação, de quem superou o trauma, de quem ficou marcado para sempre. “Entrevistei todas da mesma maneira, atrizes e não atrizes, para que cada uma pudesse se apropriar daquelas histórias”, diz Fádhia, explicando que, quando o filme foi exibido, uma das atrizes sentiu necessidade de vir a público revelar que aquela história narrada não era dela, tamanha a repercussão de pessoas sensibilizadas ou revoltadas com seu relato.

Para a cineasta, que saiu da produção com a certeza de que “precisamos ter nossas escolhas respeitadas”, segundo suas próprias palavras, fica claro que, no Brasil, quem tem condições financeiras passa pelo procedimento em locais mais adequados de higiene, com profissionais mais capacitados. A jornalista Eliane Brum — que dirigiu o documentário “Uma história Severina” que narra a luta de uma mulher nordestina, pobre e analfabeta para interromper a gestação de um feto anencefálico — escreveu recentemente em El Pais Brasil que uma mulher de classe média ou alta paga entre 5 mil e 15 mil reais em uma clínica particular se optar por interromper a gravidez. “O aborto é um fato, mesmo sendo ilegal”, conclui Fádhia. “E essa ilegalidade é uma afronta à liberdade da mulher”.

Para a socióloga e assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) Jolúzia Batista, o Estado precisa reconhecer que as mulheres fazem escolhas o tempo inteiro. “Na maioria dos casos de aborto, elas decidem com seus companheiros, baseados em dinâmicas de vida, projetos de futuro”, disse à Radis. Segundo Jolúzia, o aborto legal para casos de estupro é uma conquista das mulheres — em 2014, de acordo com o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 47.646 estupros foram registrados no país; isso equivale a 130 estupros por dia, ou seja, no Brasil a cada 11 minutos um estupro é relatado na polícia. Mas ela considera que ainda é necessário avançar bastante. “Por conta do machismo, as mulheres estão submetidas a riscos de violência constantemente. Então por que não considerar os direitos humanos das mulheres e a possibilidade de escolha e decisão?”, indaga. “O aumento de permissivos para casos de aborto legal no Brasil é uma forma de reconhecer a cidadania plena das mulheres brasileiras”.

Aborto legal

Nas três situações em que o aborto é considerado legal no Brasil, a lei 12.845 — sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2013 — garante atendimento emergencial, integral e multidisciplinar em qualquer hospital do SUS, público e conveniado, bem como encaminhamento aos serviços de referência. Em outubro daquele ano, outras duas normas técnicas foram publicadas no Diário Oficial. A primeira delas, Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, descreve e sistematiza os procedimentos para atenção integral às mulheres nessa situação. A outra trata da Atenção Humanizada ao Abortamento. Em nota, o Ministério da Saúde afirma que o atendimento pode ser realizado em todos os estabelecimentos do SUS que possuam serviço de obstetrícia mas, apesar da solicitação de Radis, não informou quantos hospitais oferecem o serviço, na prática, ou como se dá o treinamento dos profissionais. A nota acrescenta que a rede pública conta com 606 serviços voltados à atenção às pessoas em situação de violência sexual.

Já a secretária de Políticas Públicas para Mulheres esclarece que, para que as mulheres tenham acesso ao aborto previsto em lei, deve haver disponibilidade de serviços de saúde com qualidade, que respeitem e atendam suas escolhas reprodutivas. “Atualmente, o Ministério da Saúde preconiza que todos os serviços hospitalares de ginecologia e obstetrícia se organizem para o atendimento Integral às mulheres em situação de violência sexual e a interrupção legal da gestação, e reforcem a importância desta ação para a redução da morbimortalidade materna e a garantia dos direitos das mulheres”, disse. Segundo Eleonora, existem no país 53 serviços de referência para interrupção de gravidez nos casos previstos em lei registrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Ela destaca que o atendimento deve ser ofertado a todas as mulheres que necessitam.

Recentemente, em outubro de 2015, o Ministério da Saúde publicou nova portaria com os critérios de habilitação de serviços da rede pública para dar suporte às vítimas de violência sexual. De acordo com a Portaria nº 1.662, as unidades habilitadas poderão realizar o registro de informações e coleta de vestígios da violência sexual para possíveis encaminhamentos legais. “A medida reduz a exposição da pessoa que sofreu a violência, evitando que as vítimas sejam submetidas a vários procedimentos”, afirma a nota do ministério. Os exames serão feitos em estabelecimentos hospitalares que contarão com equipes compostas por enfermeiros, médicos e especialistas em cirurgias, psicólogo clínico, hospitalar, social e do trabalho, assistentes sociais e farmacêuticos. Os profissionais serão capacitados para atender vítimas de agressão sexual por meio de força física (estupro), abuso sexual e casos relacionados a abuso sexual envolvendo crianças, dentro ou fora de casa. Segundo o ministério, já foram capacitados 379 profissionais em 52 hospitais em diferentes estados.

Avaliação dos serviços

A certa altura do documentário Clandestinas, o espectador assiste à história da clandestina nº 314.703 — é assim que ela se apresenta, com um cartaz, em cena. A moça recorreu ao SUS, após complicações de um aborto ilegal e recebeu uma recomendação para que mentisse a fim de conseguir atendimento. Em seu relato, ela explica que contou com o apoio das enfermeiras e plantonistas, que lhe sugeriram usar o argumento de que sofrera um aborto espontâneo. Caso contrário, o médico, que se posicionava claramente contra o aborto, poderia não lhe prestar atendimento adequado.

Para avaliar a atenção oferecida às mulheres nos hospitais de referência nas cinco regiões do Brasil, a Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres apoiou um estudo censitário sobre os serviços de aborto no Brasil. A pesquisa levou em consideração a organização institucional, a composição da equipe multiprofissional, o fluxo de atendimento e o perfil das mulheres atendidas. À Radis, a secretária Eleonora Menicucci antecipou parte dos resultados. Segundo ela, mulheres que abortaram tinham predominantemente entre 15 e 29 anos, eram solteiras e católicas. Além disso, os dados apontam que 94% dos abortos foi em razão de estupro — até 14 semanas (68%), com emprego da aspiração manual intrauterina (45%). Para os profissionais, as principais dificuldades no funcionamento dos serviços são a pequena disponibilidade de médicos para o aborto e a capacitação escassa da equipe. Eleonora acrescenta que os dados mostram que ainda há distanciamento entre a previsão legal e a realidade dos serviços. “A implementação de novos serviços e o fortalecimento dos existentes são ações necessárias para a garantia dos direitos reprodutivos das mulheres”, conclui.

Retrocessos

O argumento mais habitual entre os que condenam o aborto no Brasil está ligado à fé e aos dogmas religiosos. Apesar da controvérsia científica, a defesa de que há vida desde o momento da concepção ainda prevalece. “É ser humano, ainda em formação, mas é ser humano”, declarou à BBC Brasil o cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, a pretexto das discussões envolvendo a epidemia de zika e o aumento dos casos de microcefalia, que trouxeram o debate sobre o aborto para a cena (ver texto na pág. 24). “Ninguém pode decidir sobre a vida e a morte de um ser humano”, disse o cardeal, em resposta à Organização das Nações Unidas (ONU) que, em comunicado divulgado em fevereiro, defendeu a descriminalização do aborto.

Para Jolúzia, do Cfemea, ser contra o aborto é tutelar e controlar o corpo das mulheres a partir da imposição de preceitos morais e bioéticos que restringem o conceito de direitos sexuais e reprodutivos. “O direito de decidir é o cerne dessa luta que, nos últimos anos, sofreu um acirramento pelo avanço das forças conservadoras a partir das investidas do parlamento brasileiro”, argumenta. A socióloga se refere a matérias de teor polêmico que vêm tramitando na Câmara dos Deputados, a exemplo do Estatuto do Nascituro, que estabelece proteção do direito à vida do nascituro desde a concepção, e do projeto de lei 5.069, que, entre outras coisas, propõe a necessidade do exame de corpo de delito às vítimas de violência sexual e limita o atendimento ao aborto nesses casos.

Contra o avanço dessas propostas, em outubro de 2015, mulheres saíram às ruas em marchas organizadas por todo o país. Para a secretária de Políticas Públicas para Mulheres, o PL 5.069 fere direitos garantidos. “Atualmente, dispomos do atendimento imediato às mulheres em situação de violência, da profilaxia da gravidez e do fornecimento de informações sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis”, acrescenta. “Esses serviços englobam a administração da pílula do dia seguinte, o esclarecimento acerca do que é permitido por lei, de como proceder se essa for a decisão da vítima, ou, caso contrário, o acompanhamento pré-natal disponibilizado e informações sobre as alternativas após o nascimento, incluindo-se, aqui, a possibilidade de entrega da criança para a adoção”. De autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), se aprovado, o projeto suprime esses direitos.

Para Debora Diniz, antropóloga e pesquisadora da Anis, voz atuante no debate sobre aborto, projetos como esse implicam em um retrocesso a uma política de aborto legal que já é bastante fragilizada. Ela diz que o PL 5.069 parte de uma realidade imaginada: de que mulheres, sem medo da polícia ou da investigação dos médicos, mentem sobre histórias de estupro nunca acontecidas, para ter acesso ao aborto legal. “O que os deputados ignoram é que, de acordo com estudo desenvolvido por nós na Anis, 36% das mulheres que fizeram aborto legal no Brasil nos últimos anos são na verdade meninas e adolescentes estupradas antes dos 19 anos”, informa. Algumas delas, reforça a pesquisadora, eram especialmente miúdas, tinham menos de 10 anos quando abortaram. “Não é possível imaginá-las mentirosas. Porém é a elas que um projeto como esse negará amparo e cuidado, por ignorar que acesso ao aborto é uma necessidade de saúde”.

Autor:
Ana Claudia Peres


Seções Relacionadas:
Divulgação Científica Radis

Nenhum comentário para: Precisamos falar sobre o aborto