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'A dificuldade da prefeitura é descobrir que há pessoas e lugares que não têm preço'

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Publicado em:26/02/2016

Na semana em que se intensificou o assédio às terras da Vila Autódromo, o Informe ENSP conversou com Maraci Soares. Conhecida na Escola por ser uma das integrantes da Feira Agroecológica, em que tem uma barraquinha de sabonetes artesanais, Maraci é militante de toda uma vida em movimentos pelo direito à moradia.

Aos9 anos, seu barraco foi derrubado durante a construção do Riocentro. Desde os 14, ela luta pelo direito à moradia na cidade do Rio de Janeiro. Conheça mais da vida dessa líder comunitária que engrossa as fileiras de resistência na Vila Autódromo.

Informe ENSP: Maraci, a história da sua vida se confunde com a história da luta pelo direito de morar e a história da Vila Autódromo. Quando começou esse assédio àquelas terras, que culmina, agora, com a tentativa da prefeitura de remover completamente a comunidade, em razão dos Jogos Olímpicos?

'A dificuldade da prefeitura é descobrir que há pessoas e lugares que não têm preço'Maraci Soares: Deixe, primeiro, eu me apresentar. Eu sou Maraci Soares; sou do Quilombo do Camurim, faço um trabalho dentro do Quilombo de Vargem Grande e sou ligada a várias redes e movimentos que lutam pelo direito à moradia. Aquele espaço começou a ser assediado exatamente quando eu tinha 9 anos. Eu nasci na beira da Lagoa do Camuri, onde é a Vila Autódromo hoje, e ali nossa casa foi removida, nosso barraco. Era uma vila de pescadores e vários barracos. Ele foi removido dentro do que já era um projeto de exclusão, para a construção do Riocentro como um espaço de exposições. Meu avô já tinha terra lá no quilombo, então a gente migrou para o quilombo. E Vila Autódromo nasce desse povo que não aceitou morar em Santa Cruz, que é o lugar que deram como opção de moradia, na época - enfim, tudo como exatamente é feito hoje.

O povo que não aceitou ir para Santa Cruz e não tinha parentesco no Camurim resolveu ficar por ali mesmo. A obra do Riocentro foi feita a todo vapor e eles ocuparam aquela região e continuaram sobrevivendo da pesca, que era a nossa sobrevivência. Assim nasce Vila Autódromo. Mais pessoas vieram depois, todos nessa mesma trajetória, removidos de comunidades, etc. Várias coisas aconteceram para que Vila Autódromo permanecesse ali esses anos, até chegarmos ao momento em que o Rio de Janeiro ganha a concorrência como cidade que vai sediar as Olimpíadas. Quando foi anunciado que o Rio de Janeiro sediaria os jogos, foi feita uma pergunta ao prefeito: O que vai acontecer com o entorno? O prefeito respondeu que nada aconteceria, mas que Villa Autódromo talvez tivesse que sofrer uma mudança ou ser retirada dali.

De lá para cá, começou a perseguição.  Que não foi a primeira, diga-se. Eduardo Paes, quando subprefeito da Barra, já subia no trator e derrubava comunidades, como foi o caso de uma comunidade próxima ao Barra Shopping. Ele tem um assédio muito grande por aquelas terras, há muito tempo. E no caso de Villa Autódromo, como se tem divulgado todo dia, ele fechou acordos com empreiteiras e tem um tempo para entregar aquilo ali.

Informe ENSP: Mas formou-se um movimento de resistência...

Maraci Soares: Sim. Companheiros se uniram em defesa de Vila Autódromo, criaram um plano urbanístico de Villa Autódromo e provaram para a prefeitura que tudo poderia acontecer sem a comunidade ser removida. Só que o prefeito se negou a entender esse plano, que já foi apresentado para ele duas vezes, e agora será apresentado pela terceira, neste sábado, dia 27 de fevereiro. E, agora, tanto o governo, a prefeitura quanto a presidente terão que, de uma forma ou de outra, estar presentes ou mandar suas representações para Vila Autódromo, porque se conseguiu um fato histórico, que é uma pressão popular que ganhou proporções internacionais.

Por isso, essa pressão em cima de Vila Autódromo. O desejo da prefeitura é de que até sábado não exista mais nada lá. A semana toda eles intensificaram o cerco. Tropas de choque, todas as polícias que você possa imaginar, estão dentro de Vila Autódromo, desde segunda-feira, ameaçando, fazendo aquele papel sujo que eles fazem, de ficar acuando o morador, tratando o ser humano como se fosse um animal, colocando o trabalhador como se fosse o bandido, como se ele tivesse roubado a casa dele e agora tivesse que devolver. Eu já disse várias vezes e já vou declarar mais uma vez: a gente, como movimento, quer saber onde está o jurídico dessa cidade. Porque o que acontece em Vila Autódromo e em outras comunidades em que a gente acompanhou de perto as remoções é um absurdo. Eu faço frente contra as remoções na baixada de Jacarepaguá há trinta anos. Por conta dessa minha história, de minha casa ter sido removida aos 9, com 14 anos eu já estava pensando em moradia. Cresci com essa sequela e defender Vila Autódromo também é pessoal. Meu cordão umbilical é ligado ali. Villa Autódromo, para mim, é pessoal.

Informe ENSP: Quantas famílias ainda estão lá?

Maraci Soares: Falando por alto, acredito que umas 30 famílias. Cerca de 80% da comunidade já foi removida. A gente está pedindo socorro, porque teme por vidas. A vida dos companheiros que estão lá dentro, que são poucos. A gente está chamando quem puder, quem tiver um mínimo de comprometimento com essa causa. Conseguir que esse miolo que está lá não saia é uma questão de honra para o movimento nacional, pelo menos. Seria a primeira vez que a gente seria respeitada nos nossos direitos. Porque as violações em Vila Autódromo estão tomando uma proporção que a gente não sabe onde podem chegar, porque já se ultrapassou o limite do absurdo. Você ter assistentes sociais, pessoas que tem uma formação para defender a população, e outros profissionais ligados à prefeitura do Rio de Janeiro, fazerem o papel que fazem, é doído demais. A gente vem questionando, há alguns anos, e denunciando, porque, além daquele pai, daquela mãe estarem com toda essa pressão em cima, eles começam a pegar pela parte frágil. A estratégia da prefeitura é muito suja. Eles se profissionalizaram em destruir vidas. Todas essas pessoas que atuam dentro de remoções são profissionais em destruir vidas. Eles pegam a pessoa pelo seu lado fraco. Só para você ter uma ideia, já vi pessoas enfartando, e os caras não querem nem saber, e a porrada está comendo. Senhoras de cadeira de rodas, no meio. Em uma das remoções da comunidade da Restinga, a gente subiu em uma casa que tinha três andares, simplesmente porque tinham duas pessoas deficientes físicas e mais uma com problema psicológico lá. Embaixo, era uma loja. A gente estava lá em cima, e o trator começou a dar porrada na porta, lá embaixo. Até que o prédio começou a estremecer muito e resolvemos descer, porque eles iam jogar todo mundo no chão.

Informe ENSP: Essa luta hoje tem sido mostrada em veículos do mundo inteiro, mas foi um jornal da própria comunidade que começou a fazer as denúncias. Que jornal é esse?

Maraci Soares: A gente tem um jornal em Jacarepaguá que foi criado pelo movimento. O companheiro Almir Paulo é quem faz o jornal Abaixo Assinado, junto comigo e outros. Esse jornal nasceu para dar visibilidade às lutas dessas comunidades. Ele tem dez anos e é um diferencial, porque a mídia alternativa ainda não era moda quando criamos o Abaixo Assinado, e ele consegue atingir vários lugares. Através desse jornal, conseguimos respirar um pouco e nos sentimos menos ameaçados.

Informe ENSP: Com relação ao direito àquelas terras, foi dada, durante o governo de Leonel Brizola, a posse aos moradores, não foi?

Maraci Soares: Sim, o Almir foi secretário de assuntos fundiários no governo Brizola e junto com o governador ajudou a dar a titularidade de posse à Villa Autódromo, de cem anos prorrogáveis por mais cem, ou sei lá quantos anos. Todo morador de Vila Autódromo tem posse desse documento. E é mais um documento que não foi respeitado pela prefeitura da cidade. Todo morador de Vila Autódromo tem como provar como foi morar ali ou o que aconteceu depois, se pagou, como pagou. Então, todo morador tem o direito de morar em Vila Autódromo. Até mesmo para mim, que não tenho formação de advogada, nada disso, a gente entende que se você ocupa uma determinada área por dois, três anos, você passa a ter direito ao uso daquela terra. Imagine o morador que está lá há quarenta, cinquenta anos. Mas a real preocupação é essa: Eduardo Paes parece acima de Deus, do bem, do mal, e isso nos deixa intrigados. Qual é a superproteção que um homem que foi eleito pelo povo dessa cidade, para ser prefeito dessa cidade, tem, que hoje destrói essa mesma cidade, e ninguém vê e ninguém faz nada. Não sei o que está acontecendo.

Informe ENSP: E qual é a situação de Vila Autódromo nesse momento?

Maraci Soares: A Associação de moradores acabou de cair, foi derrubada. O que que acontece se eu derrubo a tua associação, que é onde você faz as suas estratégias com seus moradores? Eu estou te enfraquecendo. A Penha, que assume no lugar da Jane, dá continuidade de tocar essa luta de frente, mas a casa dela está com uma liminar e pode ser derrubada a qualquer momento. Ela, que é aquela pessoa que tomou uma porrada na cara, o que vai acontecer se derrubam a casa dela? Essa pessoa vai se fragilizar. Tem hora em que eu paro dentro da minha casa e penso o seguinte: é coisa de Deus, da força, da natureza, a resistência daquele povo. Eu já teria enlouquecido. Tanta violência, como que aquele povo tem suportado tanto? É muito amor àquela terra, não digo nem à casa, porque a casa eu sei que eles e qualquer um de nós pode construir em qualquer lugar, mas é honrar muito, é respeitar muito aquelas águas, aquela mata, aquela terra ali. É respeitar muito esse convívio de onde você cresceu e querer continuar ali. Tanto que esse miolo que faz a resistência de Vila Autódromo é formado por pessoas que não aceitaram nada, nem milhões, pelas casas delas, porque é tão valoroso para eles aquele lugar que não há dinheiro que compre. Isso tem que ser aceito: existem pessoas e lugares que não tem preço. A dificuldade da prefeitura é essa, de descobrir, de repente, que tem pessoas que não têm preço, tem coisa que não são compradas.

Eu tive oportunidade de falar com Eduardo Paes, porque, na hora que começou fortemente esse assédio, ele, obviamente, fez reuniões para nos receber. Eu participei só duas vezes dessas reuniões, porque não tenho estômago. Sou limitada, já estou partindo para 51 anos, minha paciência histórica já acabou há muito tempo. Nessas reuniões, o prefeito disse: vocês têm que pensar no legado. E eu respondi para ele: a gente está vendo o legado que os Jogos Pan-Americanos deixaram. Porque eu lembro, por exemplo, que, nas reuniões para se fazer o Maria Lenk, falava-se que o espaço seria, depois dos jogos, uma área onde as criancinhas de comunidade teriam aula de natação, etc. Virou um local para fazer shows e se ganhar mais dinheiro.


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