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'O medo naturaliza as violências'

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Publicado em:09/09/2015
'O medo naturaliza as violências'"A violência tem cor. Os cemitérios têm cor. Ser negro e morador de favela são pré-requisitos para morrer neste país". A fala de Mônica Cunha, fundadora do Movimento Moleque, projeto que atende adolescentes que cumprem medidas socioeducativas e seus familiares, durante a mesa de debate dos 61 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), no dia 3 de setembro, foi comprovada em mais um episódio brutal nessa terça-feira (8/9), quando um adolescente de 13 anos morreu durante uma operação policial na Favela de Manguinhos. Também presente na mesa, o deputado estadual Marcelo Freixo - quase uma semana antes do crime - afirmou que esse tipo de ação advém de uma desigualdade absolutamente violenta e de um processo de exclusão dos setores marginalizados da sociedade.
 
O debate Violência e Saúde fez parte de mais uma atividade de greve da Fundação Oswaldo Cruz, durante as celebrações de 61 anos da Escola Nacional de Saúde Pública. Em 2015, a ENSP elegeu como tema central Educação, saúde, dignidade e liberdade para o ser humano são defesas da ENSP. Diga não à violência!
 
Agraciado com a Medalha Jorge Careli de Direitos Humanos em 2006, o deputado estadual Marcelo Freixo propôs uma reflexão acerca de três elementos presentes no cotidiano da população fluminense: civilização, medo e barbárie. Enfatizou, no entanto, que esse debate está inserido nas discussões das relações de poder da sociedade, que, por sua vez, exclui e nega cidadania aos setores marginalizados, que não são vistos como sujeitos de direitos.
 
“Os jornais personificam o mercado. As reportagens dizem que o mercado está tenso, que acordou bem, que está preocupado. O mercado, portanto, passa a ser alguém com quem você convive. Mas uma sociedade que personifica o mercado, despersonifica quem está fora dele, quem não é aproveitado por ele. Para que esse processo aconteça, é essencial a produção do medo sobre esses setores, porque esse sentimento desumaniza, cria uma fronteira ética e divide o que é civilização do que é barbárie”, explicou.
 
'O medo naturaliza as violências'Para exemplificar essa relação, o palestrante mencionou o caso dos adolescentes da Zona Norte que foram revistados e retirados dos ônibus ilegalmente por estarem a caminho das praias da Zona Sul do Rio de Janeiro. “O discurso é: como esses garotos podem estar indo à praia sem dinheiro? Como seus pais deixam isso?”, questionou Freixo, dizendo que essa discussão passa automaticamente para um debate penal. E concluiu. “O medo é uma neblina. Eu não sei a cara que ele tem, mas sei a cor que ele personifica e de onde ele vem. Numa sociedade desigual e racista, em que a pobreza é criminalizada, o medo incide sobre os negros moradores das favelas e periferias. Daí, entende-se que a praia não é lugar para esses garotos. Cada vez mais se julga e se criminaliza num processo rápido. O medo naturaliza as violências”, disse.
 
O convidado fez mais uma provocação a respeito da conhecida afirmação de que 'o Brasil é o país da impunidade'. “O sistema prisional brasileiro tem hoje mais de 600 mil presos, além de possuir a maior taxa de crescimento da população carcerária nos últimos anos. Entre 1992 e 2013 houve crescimento de 319% de detentos. De 50 mil homicídios ocorridos no Brasil, 36 mil acometem jovens. Do total, 77% são negros. Há um racismo estrutural colocado, e essa condenação chega à família do detento. Como conviver com a ideia de que somos o país da impunidade?”, indagou.
 
A família também adoece
 
A fundadora do Movimento Moleque reforçou o sofrimento e a dor das famílias dos jovens que estão sendo presos e mortos pelo Estado. “As mães desses jovens estão sendo acometidas de várias doenças psíquicas, de depressão, síndrome do pânico, câncer. Na maioria das vezes temos outros filhos para criar e ficamos completamente sem chão, sem condições de dar atenção aos demais parentes. Ficamos sem emprego porque ninguém quer contratar uma pessoa doente, perdemos nossas relações afetivas porque não temos condições de nos relacionar... e não temos justiça com os nossos filhos assassinados e encarcerados”. 
 
Mônica criticou o Estado por não cumprir as medidas socioeducativas com os menores infratores. “Se as medidas socioeducativas, de fato, fossem cumpridas quando meu filho se tornou infrator aos 15 anos de idade, ele estaria aqui (seu filho, Rafael, morreu em 2006). Se essas ações fossem tomadas, saberíamos o momento em que o vínculo foi quebrado, pois eu não pari um filho ladrão. Eu entenderia a importância e a necessidade de voltar a conviver com meu filho para não perdê-lo para esse sistema ou para o cemitério”.
 
'O medo naturaliza as violências'Mônica Cunha falou sobre o papel do “Moleque” e disse ainda que muitas mães têm se aproximado do projeto para tentar resgatar a vida de seus filhos. “Temos um sistema que nos coloca que negro, pobre e favelado tem que morrer. Queremos provar que somos seres humanos. Se o direito é para todos, devemos estar incluídos! Não sou digna de pena porque meu filho foi assassinado. Sou guerreira e estou lutando para que outras mães não sofram por isso. E não fui uma péssima mãe. Fui e sou mãe com muito orgulho. Construí uma família linda, e não admito que o Estado a criminalize”. Ao terminar sua fala, Mônica convocou Ana Paula Oliveira, mãe de Jonathan Lima, assassinado por um PM em Manguinhos em maio de 2014, aos 19 anos. Junto com outras mães de Manguinhos, ela expressou a dor da perda de seu filho, clamou por direitos e por uma maior aproximação da Fiocruz com os moradores e vítimas de violência.
 
A violência na agenda da Fiocruz
 
O diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, Hermano Castro, afirmou que o país vive um momento difícil, mas que é dever da Escola lutar pela redução das desigualdades, da violência e buscar melhores condições de vida para o povo brasileiro. Destacou ainda que a escolha pelo tema dos 61 anos da ENSP se deu pelo fato de a violência ser uma das prioridades do campo da saúde.
 
“O aniversário de uma escola é sempre um momento de alegria, de confraternização. A alegria está presente, sim, mas ela fica comprometida no momento que buscamos melhorias para os trabalhadores, para a saúde, para as situações de violência. Essa é uma escola que sempre lutou pelos direitos humanos e pela saúde do país e das nações vizinhas. A ENSP tem um papel primordial nos avanços do campo da gestão, do planejamento, da promoção da saúde, do campo ambiental, da saúde do trabalhador.”
 
'O medo naturaliza as violências'
 
O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, também destacou o momento de tensão vivido no país, mas afirmou que é nesse tipo de situação que instituições como a Fiocruz são exigidas pela sua capacidade de inteligência e compromisso. Influenciado pelo tema da mesa, Violência e Saúde, Gadelha recordou a forma pela qual a instituição reagiu à morte de Jorge Careli. “Foi extremamente reveladora a trajetória assumida pela Fiocruz após a brutalidade do assassinato de Careli. Poderíamos ter ficado apenas no âmbito da indignação, da comoção, mas a Fiocruz não parou por aí. Deixamos claro que não seriamos passivos frente a uma violência que não era apenas individual. Isso se tornou um símbolo para que trabalhássemos os processos de violência colocados no país - que agora fazem parte de nossa missão e responsabilidade”.

Durante a atividade houve a exibição do documentário sobre o PAC em Manguinhos, no Alemão e na Rocinha, produzido pela TV Tagarela, pelo Laboratório Territorial de Manguinhos e pelo Instituto Raízes em Movimento

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