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PL nº 200/2015: um desserviço à sociedade brasileira

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Publicado em:10/07/2015
Em tramitação no Senado, o Projeto de Lei nº 200/2015 é apontado por especialistas como um retrocesso sem precedentes para a área de pesquisa clínica no Brasil. Além de extinguir o atual sistema de análise ética em pesquisas com seres humanos, o projeto também coloca em risco os direitos dos participantes e o controle social das pesquisas realizadas no país.
 
Em carta pública, o Conselho Nacional de Saúde e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, que formam o Sistema CEP/Conep, classificaram o PL 200/2015 como um desserviço à sociedade brasileira. Responsável por proteger os participantes das pesquisas em seus direitos e assegurar que as pesquisas sejam realizadas de acordo com princípios éticos no país, o próprio Sistema CEP/Conep estaria ameaçado com as mudanças propostas.
 
Em visita à ENSP para discutir as deficiências da PL e apresentar o projeto de Acreditação dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), o coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep/CNS), Jorge Alves de Almeida Venâncio, concedeu entrevista ao Informe ENSP. Nela, comenta os principais aspectos negativos do projeto e cita, por exemplo, o que aconteceu na Índia, quando um processo de desregulamentação das análises éticas provocou inúmeras mortes decorrentes da pesquisa clínica. Confira.
 
Informe ENSP: O Projeto de Lei (PL) nº 200/2015, proposto no Senado, põe em discussão inúmeras conquistas obtidas pelos participantes de pesquisa e pelo próprio Sistema Conep ao longo das últimas décadas. Quais aspectos o senhor apontaria como extremamente prejudiciais ao campo da pesquisa no país?
 
PL nº 200/2015: um desserviço à sociedade brasileiraJorge Venâncio: O Projeto de Lei traz inúmeros prejuízos. Em primeiro lugar, ele propõe uma redução drástica dos direitos dos participantes de pesquisa. Hoje em dia, todo o participante voluntariado de pesquisa clínica tem o direito de receber o tratamento a que se submeteu (se o procedimento testado se mostrou favorável) enquanto precisar. No entanto, o PL impõe duas condições para o direito ao tratamento continuar: a primeira é o risco de morte ou de agravamento clinicamente relevante da doença; o segundo trata da ausência de alternativa terapêutica satisfatória no país para a condição clínica do sujeito da pesquisa.
 
Além disso, é relevante destacar que o PL determina que ambas as situações devem estar presentes, de forma concomitante, para que o participante de pesquisa tenha direito ao acesso pós-estudo. Essa questão reduz o tratamento pós-estudo que hoje é praticado a menos 10% do que existe. Isso representa uma redução drástica do direito do participante.
 
A segunda questão é sobre o uso do placebo (fármaco, terapia ou procedimento inerte, e que apresenta efeitos terapêuticos devido aos efeitos psicológicos da crença do paciente de que está a ser tratado). O Brasil nunca aceitou ou aprovou esta situação, entendendo que o placebo pode ser usado em pesquisa apenas se não privar o participante do estudo de tratamento ou procedimento que seria normalmente realizado. O Conselho Nacional de Saúde determina que as pesquisas devem “ter plenamente justificadas, quando for o caso, a utilização de placebo, em termos de não maleficência e de necessidade metodológica, sendo que os benefícios, riscos, dificuldades e efetividade de um novo método terapêutico devem ser testados, comparando-o com os melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos atuais. Isso não exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudos nos quais não existam métodos provados de profilaxia, diagnóstico ou tratamento”.
 
No entanto, o PL quer colocar o placebo nos casos para os quais existem tratamento. Podem ocorrer situações de recrutarem indivíduos doentes em um ensaio clínico que, se tiverem a infelicidade de serem alocados no grupo controle, farão uso apenas de placebo e não receberão qualquer tratamento para sua doença, alegando-se tão simplesmente necessidade metodológica de mascaramento. 
 
O projeto alega que o placebo é utilizado quando não existe tratamento –  e até aí todos estão de acordo – ou quando existe o que chamam de necessidade metodológica justificada – o que não é definido por eles. Fabricar uma necessidade justificada é algo relativamente simples no ponto de vista de quem está pensando na estrutura de um projeto de pesquisa. Portanto, na prática, há a liberação geral do uso do placebo.
 
Gostaria de ressaltar mais três aspectos importantes que apontam nítido retrocesso: os Comitês de Ética em Pesquisa atuais são vinculados a instituições acadêmicas, serviços de saúde, órgãos dos Executivos municipal e estadual, portanto, são autônomos. Isso quer dizer que para se estruturar um Comitê de Ética em cada instituição, seu responsável deverá assumir um compromisso por escrito de que irá respeitar a autonomia do CEP. Este, por sua vez, terá um mandato que não pode ser interrompido. Na prática, a aprovação da PL revoga a autonomia dos CEP. No momento que alguma decisão do Comitê desagradar o diretor da instituição, ele poderá trocar toda a estrutura. Acaba-se com a independência dos CEP e não há restrição a esse tipo de comportamento.
 
Outro ponto da PL prevê a criação dos chamados Comitês de Ética Independentes (CEIs), assim definidos: “organização independente constituída por colegiado interdisciplinar, que inclui profissionais médicos, cientistas e membros não médicos e não cientistas, responsável por assegurar a proteção dos direitos, da segurança e do bem-estar dos sujeitos da pesquisa clínica, mediante a revisão ética dos protocolos de pesquisa.” (Art. 2º, inciso VII). 
 
O CEIs será vinculado a quem? Tal fato abre caminho para ligação a uma empresa, por exemplo. Isso não é claramente dito no projeto, mas também não é proibido. Então, se ele é independente e não é ligado a nenhuma instituição, será ligado a quem? É evidente, neste sentido, o interesse de que os CEIs sejam criados para estar vinculados a instituições patrocinadoras dos estudos clínicos, que financiariam os membros e a estrutura dos CEIs, configurando, obviamente, um inequívoco conflito de interesses.
 
Por último, ressalto um dos pontos centrais de questionamento. Hoje, todo Comitê de Ética em Pesquisa tem, em sua composição, os chamados “representantes dos usuários”, os quais acrescentam o ponto de vista dos participantes da pesquisa, defendendo os seus interesses. Embora o PL, no Art. 6º, inciso VII, diga que o controle social tem que ser respeitado, o Art. 7º, inciso I, que dispõe sobre a composição da equipe, omite a representação dos usuários na composição dos Comitês de Ética em Pesquisa. Ele traz a seguinte redação: “composição multidisciplinar, com número suficiente de membros, para que, no conjunto, tenha a qualificação e a experiência necessárias para revisar e avaliar os aspectos médicos, científicos e éticos da pesquisa proposta”. Não há, portanto, nenhuma exigência de manter a participação de usuários. A referência ao controle social é meramente retorica. 
 
Informe ENSP: Como o Projeto aborda o papel do Conep?
 
Jorge Venâncio: Ele desmonta o sistema de analise ética, deixa de reconhecer o papel do Conep como organizador do sistema atualmente. Pelo projeto, a análise ética passaria a ser feita individualmente pelos vários Comitês de Ética – seja os de pesquisa ou os independentes – sem nenhuma coordenação entre si. Isso pode trazer decisões contraditórias gigantescas. Além da falta de centralização, há um sistema regulatório que inclui a Anvisa na fiscalização administrativa dos Ceps, sem entrar no mérito da análise ética.
 
A Anvisa, por sua vez, já possui uma capacidade de tarefas gigantescas. Imagina passar a regular 700 Comitês de Ética?  Não me parece que seja algo para funcionar. Trata-se de um projeto sem cabimento, com uma possibilidade de interferência do poder econômico enorme. Sem autonomia dos CEP, não haverá uma regulação ética pra valer.
 
Informe ENSP: Durante a apresentação, o senhor falou sobre as mortes em pesquisa clínica que ocorreram na Índia. Como se deu o processo de desregulamentação ética por la?
 
Jorge Venâncio: A experiência que consideramos como exemplo de onde a PL está partindo é o que aconteceu na Índia. O país passou por um processo de desregulamentação no tocante à análise ética muito grande em 2005, e o resultado foi uma catástrofe. Reunimos reportagens do The Times of India, o maior jornal daquele país, que falam de 370 mortes em pesquisa clinica nos últimos dois anos (2013 e 2014). Em uma das manchetes, eles afirmam que somente 21 parentes receberam compensação. Dá para sentir o grau de comoção que isso causou na sociedade.
 
Outra matéria de cunho mais científico, divulgada pela Pharmaceutical Journal, de março, faz um balanço de 2005 a 2012 e fala em 26000 mortes na pesquisa clinica no país. O texto diz que 80 delas foram comprovadamente ocasionadas pelo medicamento do estudo. Isso gerou tamanha comoção que a Suprema Corte da Índia proibiu as pesquisas no país até que se tivesse uma regulamentação melhor. Me parece que o Brasil está buscando repetir essa experiência.
 
Informe ENSP: Qual é o atual estágio desse projeto?
 
Jorge Venâncio: O PL está em tramitação no Senado, com a previsão de passar por três comissões. Agora encontra-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. O relator já foi designado. Já temos a nossa posição. Divulgamos carta na qual afirmamos que Projeto de Lei nº 200/2015 é um desserviço à sociedade brasileira e estamos agendando um conjunto de audiências com os vários setores da sociedade para nos aglutinarmos e montarmos um campo na sociedade contra esse projeto, tanto na sociedade como no congresso.
 
A ideia é estimular ao máximo as manifestações na comunidade cientifica (a Fiocruz apoia a carta do Conep contra a PL), nos CEP, dos participantes de pesquisa - que possuem muitas associações. Teremos uma grande quantidade de manifestações. Acho que o caminho é esse. A sociedade tem que falar.
 
Informe ENSP: No final da reunião, o senhor falou da resolução referente ao processo de acreditação de Comitês de Ética em Pesquisa que compõem o Sistema CEP/Conep. Como funcionará a acreditação? 
 
Jorge Venâncio: O nosso princípio geral no processo de acreditação, que está em consulta à sociedade, traz a ideia de promover a descentralização do sistema. O objetivo é descentralizar a responsabilidade da Conep hoje para um conjunto de CEP, mas sem passar a ter critérios múltiplos de parecer – o que desorganizaria o sistema e dificultaria a pesquisa.
 
No mês de maio nós analisamos 250 protocolos na Conep. Os CEPs se candidatam para acreditação. Há um conjunto de critérios a serem cumpridos e qualificaremos a documentação. Teremos um período de pré-acreditação, no qual o CEP e a Conep farão os pareceres e iremos comparar os mais semelhantes e em melhor condição de assumir responsabilidade própria. Faremos uma avaliação permanente nos 12 meses da pré-acreditação para analisar como o Comitê está evoluindo. 
 
Um CEP acreditado pode se tornar um polo para atração de pesquisa. É um estímulo para que a instituição invista no seu CEP e possa desenvolvê-lo da melhor forma possível. Acredito que um CEP acreditado trará vantagem comparativa no momento de captar as pesquisas.

* Com informações da Agência Fiocruz de Notícias

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