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Medicina de contrastes: mesa debate renúncia fiscal, formação dos médicos e desigualdades

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Publicado em:26/06/2015
Um homem de quase quarenta anos chega a um hospital com uma dor atípica no tórax. Os primeiros exames descartam a possibilidade de infarto. Ainda assim, orientado pelos médicos, embarca num helicóptero-ambulância de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, para que sejam feitos novos exames. No mesmo dia, uma mulher com infarto do miocárdio da parede inferior, com 12 horas de evolução, encontra-se no corredor de um hospital público, onde recebe os primeiros cuidados. As duas situações foram narradas pelo clínico Luíz Vianna Sobrinho na abertura da segunda mesa-redonda sobre a ética na medicina, realizada na ENSP na sexta-feira, 19 de junho. A diferença fundamental entre os dois personagens, muitos já devem suspeitar, é que o primeiro é um empresário. A segunda, funcionária de uma igreja. O contraste, construído com casos reais, foi o pontapé inicial do debate intitulado A estruturação da ciência e do consumo na medicina - as 'escolhas de Sofias' do público ao privado, do qual participaram, também, a médica e doutora em saúde coletiva Maria de Fátima Andreazzi e Carlos Ocké-Reis, pesquisador  do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA.

Medicina de contrastes: mesa debate renúncia fiscal, formação dos médicos e desigualdades
 
- Toda atenção foi dada a esse homem, porque por ser empresário, ele é dono de uma grande carteira de clientes de uma seguradora de saúde, explicou Vianna, logo depois de expor as duas situações. 
 
São exemplos como esse que o levaram a escrever o livro “Medicina financeira: a ética estilhaçada”,  em que fala, a partir de sua experiência profissional, do surgimento de uma ética médica, hoje, voltada para as metas financeiras em detrimento dos pacientes.  
 
- O que eu proponho, é discutirmos essa situação em que se tem o hospital gerido como uma unidade financeira, a profusão de exames de alta tecnologia e a produção desses contrastes, que me causam espanto.
 
Ao entrar no debate, Maria de Fátima Andreazzi foi direto ao que julga ser um ponto central na discussão:
 
- Há uma subsunção dos aspectos importantes da vida aos interesses do grande capital e a contradição entre a medicina do servir e a medicina que se serve. É preciso dizer que, mesmo no passado, os pacientes mais pobres sempre foram utilizados na curva de aprendizagem dos médicos. Essa visão idílica da medicina de antigamente nasce do fato de que antes, por não haver um grande aparato de diagnóstico, era necessário que se criasse essa relação mais próxima entre médico e paciente. Mas a partir dos anos 90, a lógica do aspecto financeiro da acumulação de capital se exacerba e há um resgate da posição de classe dos médicos como pequenos-burqgueses, artesãos, vendedores de serviços. 
 
Essa mudança na visão e modo de agir dos médicos se revela ainda em outros aspectos da sociedade, segundo Fátima Andreazzi.
 
- Houve um tempo, até os anos 80, em que boa parte dos médicos se avalizava por meio das grandes instituições estatais em que trabalhavam. Hoje, com as instituições privadas, isso se dá de uma forma diferente. 
 
A professsora lembrou ainda de exemplos históricos que mostram como a medicina pode seguir outros caminhos quando não determinada pela lógica da acumulação de capital.
 
- Na URSS, se usava yoga para tratar hipertensão arterial. Os partos humanizados, tão em voga hoje, surgiram lá. Na medida em que não se tem interesses comerciais envolvidos, pode haver essa busca. Um outro exemplo que posso dar é a artemisinina, desenvolvida na China, durante a Revolução Cultural. O medicamento, considerado o melhor tratamento contra a malária, foi produzido num processo colaborativo, a ponto de se ter dificuldade de se saber quem foi a principal responsável por seu desenvolvimento. Depois de décadas, descobriu-se que foi uma mulher, que hoje é pobre e vive numa casa sem calefação. A patente do remédio foi doado pela China à OMS. 
 
Auxílio indefensável
 
O pesquisador do IPEA, Carlos Ocké-Reis, segundo a falar na mesa-redonda, expôs as contradições e problemas que enxerga no atual modelo da gestão da saúde no Brasil, principalmente no que se refere aos incentivos governamentais dados às operadoras de plano de saúde, por meio da renúncia fiscal. 

- É indefensável, sob qualquer ângulo, que o estado subsidie operadoras de plano de saúde.
 
Para Carlos, o dinheiro que pessoas físicas ou jurídicas abatem de seus impostos, por conta dos planos de saúde, representam um montante que poderia fazer diferença se aplicado no sistema público de saúde. 
 
- Existe uma relação estrutural entre o estado e o mercado de saúde. Como é um setor politicamente relevante, o estado o subsidia. Além do dinheiro da renúncia fiscal não ser utilizado na melhoria do sistema público, os planos privados sequer desafogam o setor, já que parte de sua clientela continua usando serviços como vacinação, urgência e emergência, hemodiálise, procedimentos alto custo e de complexidade tecnológica, etc.
 
Na manutenção desse modelo, que acaba por reduzir a capacidade do sistema fiscal de promover a equidade da renda, está a estrutura política, sobretudo a do financiamento de campanhas.
 
- Eu classifico como um grave erro dos governos petistas a captura das agências reguladoras por pessoas envolvidas diretamente com as operadoras de planos de saúde. Isso nasce desse modelo do financiamento privado de campanhas. 
 
Da superação do modelo
 
Da lógica da acumulação, passando pela formação e status social dos médicos, aos desacertos fiscais, são muitos os caminhos que se percorre quando se pretende oferecer uma visão crítica da medicina que se pratica, hoje, sob o julgo dos cifrões. Como lembrou Luíz Vianna Sobrinho ainda na primeira das três mesas redondas que discutiram os problemas levantados por seu livro, não é o alívio do sofrimento humano mas as metas financeiras que parecem ditar as regras nesse modelo que avança para se tornar hegemônico. 
 
Para Fátima Andreazzi, é preciso dimensionar a luta contra essa avanço e resgatar ideias e ações dos grandes sanitaristas.
 
- Nós tivemos a oportunidade de subir no ombro de gigantes, como Ézio Cordeiro e Sérgio Arouca. Agora, precisamos saber o que fazer para superar esse modelo. Isso só ocorrerá num contexto de mudanças mais gerais. 
 
Para não embarcar, ainda que alegoricamete, na lógica que retira do paciente seu papel principal de foco das ações e preocupações das práticas de saúde, esta reportagem termina relembrando os dois casos narrados lá em cima, no primeiro parágrafo. Tanto o empresário mineiro quanto a funcionária de igreja carioca tiveram alta e passam bem. Ele, embarcou num helicóptero, de volta a seu estado,  depois de algumas horas sendo examinado, no Rio. Ela, recuperada do princípio de infarto que sofrera, ainda que tendo passado horas numa maca no corredor de um hospital, ainda agradeceu a atenção e cuidados que recebeu daqueles que trataram dela, antes de voltar para casa. 

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