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Pular os muros, derrubar clichês

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Publicado em:14/05/2015

Duas pistas de uma avenida movimentada, de um lado, uma linha férrea e poucos quilômetros de ruas recobertas por casas simples, de outro. São esses os limites que separam a Fiocruz dos complexos de favelas da Maré e do Alemão, respectivamente. Isso, se falarmos exclusivamente de limites físicos. Quando se pensa em barreiras de outra natureza, como as socioculturais, a lista de obstáculos é muito maior e subjetiva. Ultrapassar essas fronteiras imaginárias, mas que determinam fortemente a vida de milhões de pessoas, tem sido o desejo de muitos pesquisadores, agentes culturais, ativistas, artistas. Uma tarefa urgente e complexa, que vem sendo cumprida com louvor pelo geógrafo e educador Jaílson de Souza e pelo músico Rafael Calazans. Os dois participaram, como palestrantes, do X Ciclo de Debates - Conversando sobre a Estratégia de Saúde da Família, promovido pela Residência Multiprofissional em Saúde da Família da ENSP.

Pular os muros, derrubar clichêsJaílson Souza, que esteve presente no ciclo em 6 de maio, falou sobre educação, desejo e cultura nas favelas e periferia. Fundador do Observatório de Favelas, organização que tem sede Maré mas atua nacionalmente na produção de ações que tentam superar as desigualdades sociais, doutor em educação pela PUC-RJ, Jaílson falou a partir do lugar privilegiado de quem conjuga uma sólida formação profissional e acadêmica à experiência pessoal de ter nascido e vivido boa parte da vida em favelas. Para o palestrante, as barreiras e dificuldades que se impõe aos moradores das áreas pobres da cidade ainda seguem de pé, sustentadas no preconceito. “Na favela, tem dez vezes mais universitários do que traficantes de drogas. Mas o que sai no jornal são sempre os traficantes. Recentemente, deram destaque para uma pesquisa que apontou que somente 3% dos moradores da favela frequentam museus. Só que esse percentual é o mesmo da sociedade brasileira como um todo. Por que não questionam que não se vai ao museu em Ipanema?”, disse.

Desmontar esse tipo de clichê é também o que faz Rafael Calazans, ou MC Calazans. Cantor de rap e integrante da organização Raízes em Movimento. Calazans, que veio ao ciclo de debates no dia 7 de maio, falou da importância dos movimentos sociais na formação da cidadania nas favelas. Seus questionamentos seguem a mesmas linhas dos de Jaílson. “Muitas vezes, as oportunidades para um morador de favela são ser, no máximo, um pedreiro com formação no Senai, ser manicure ou tocar algum instrumento e ser batuqueiro no Faustão. Por que as opções têm que ser sempre as mesmas?”, ressaltou.

Sobre falta de oportunidades e a difundida ideia de que ela necessariamente empurra o morador da favela para o crime, tanto Jaílson quanto Raphael, citaram uma mesma frase que costuma ser dita por um ativista social amigo dos dois: “na maior parte das vezes, o movimento social perde o menino não é para o tráfico, mas para o McDonald’s, a Renner, as Lojas Americanas”.

O pensamento pronto, como se pode ver, não tem espaço na fala dos palestrantes. Jaílson, por exemplo, crítica a ideia de que o racismo deva ser combatido com cadeia. “Será que alguém que faz uma declaração racista tem que ser preso? Cada vez mais a lógica que vigora é a do encarceramento. Vamos utilizar os mesmos instrumentos que a direita utiliza?”.

Pular os muros, derrubar clichêsRaphael, por sua vez, afirma que a discussão sobre a maioridade penal chega a ser secundária se comparada a um problema de dimensões mais complexas. “Eu ouvi de um moleque do Degase (departamento responsável pelas instituições de recuperação de menores infratores) que pagar cadeia é mole. O difícil é a cadeia da vida”.

O interlocutor de Raphael falava do ciclo vicioso de pobreza, falta de estrutura familiar e outras misérias cotidianas que o prende à criminalidade e a uma vida de pouca esperança. No combate a esse ciclo, as armas de Raphael, normalmente, têm sido as ideias, a música, a fala, mas recentemente, ele precisou usar de um artifício sui generis: o cartão de crédito. “Fui conversar com menino que tinha deixado a dança e entrado para o tráfico. A primeira coisa que ele me mostrou foi o par de tênis novos. Peguei dez moleques, fui no shopping e comprei tênis para todos eles. Estou até agora pagando”.

Essa clareza para a compreensão do que é urgente na solução de um de um problema não é, muitas vezes, a tônica das ações do poder público. Jaílson Souza deu um exemplo dessa dificuldade de compreensão. “Recentemente, foi feito um projeto de arquitetura numa favela. Esse projeto ignorou o que a laje representa: a laje é um bem que é deixado de herança, porque possibilita aos integrantes da família aumentarem o imóvel; é uma fonte de renda, porque pode ser construído nela um imóvel para alugar ou mesmo ser vendida e é, principalmente, uma área de lazer e convívio”.

A percepção de Jaílson é a de que não devem ser simplesmente transpostos para as favelas os mesmos padrões dos bairros de classe média. A visão de que elas são meramente um território habitado por pessoas carentes e marcado pela criminalidade é algo que seu trabalho ajuda a desconstruir. “Favela não tem que virar bairro. Lá, as regras de convívio social têm características próprias. É melhor ser idoso e cadeirante na favela, por exemplo. Ela tem muito a ensinar”.

Um dos poucos setores que tem aprendido com a favela, para Jaílson Souza, é a saúde. “A saúde se sofisticou e se abriu para as vivências dos moradores das favelas. O mesmo não acontece com a segurança pública ou a assistência social”.

Raphael Calazans parece concordar, quando pega carona num dos pensadores da saúde pública para falar sobre o diálogo da academia com os movimentos sociais. “Eu lembro do que dizia Victor Valla (pesquisador da ENSP morto em 2009), de que a crise de interpretação é nossa [da academia]”. No caminho da superação dessa crise, a abertura ao outro e o respeito pelas diferenças. O baile Funk, que para muitos é uma manifestação cultural de segunda classe, por exemplo, para Raphael é um instrumento potente de transformação social.

“O baile funk é o projeto social mais bem-sucedido do mundo. O menino chega sem identidade, sem nome, e ganha um nome. Passa a ser o MC fulano. O baile é bem-sucedido financeiramente e é um espaço onde convivem pessoas de todas as idades e tipos. Além disso, é um instrumento forte de comunicação. Uma coisa é colocar um cartaz num posto de saúde, outra é fazer um funk”.

Ao fim das duas palestras, diante das perguntas de uma plateia envolvida e encantada com o que ouviu, a certeza de que a Maré, com suas casas e sua vida, continuava de pé, do outro lado da Avenida Brasil, encarando de frente o castelo da Fiocruz. Aos fundos da ENSP, também se mantinham firmes os muitos mundos que compõe o Complexo do Alemão. O que parecia se mover, a bordo da fala de Jaílson Souza e do funk de MC Calazans, eram as ideias prontas que criam barreiras mentais e instauram as crises de compreensão do outro em todas as suas dimensões.


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