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Tese de mestrado analisa projeto de instalação de fábrica de antirretrovirais em Moçambique

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Publicado em:20/03/2015

* Danielle Monteiro

A instalação da fábrica de antirretrovirais e outros medicamentos em Maputo, fruto de parceria entre o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) e o governo de Moçambique, é citada entre os casos que justificam a inserção do Brasil no cenário internacional, além de ser pauta de discussões importantes como a questão da saúde na política externa brasileira e a efetividade da cooperação internacional brasileira em saúde.

O projeto recentemente ganhou mais um destaque, sendo tema de uma das dissertações do mestrado profissionalizante em Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). O autor da tese e representante de Farmanguinhos na Câmara Técnica de Cooperação Internacional, Rawlinson Rodrigues, contou ao Crisinforma como foi realizado o estudo e revelou os principais resultados obtidos.

Por que escolheu como tema para sua dissertação o projeto de instalação da fábrica de medicamentos em Moçambique? E qual foi o objetivo do estudo?

Tese de mestrado analisa projeto de instalação de fábrica de antirretrovirais em MoçambiqueRawlinson Rodrigues: A escolha desse tema decorreu basicamente pela inexistência de material mais específico que tivesse por base a experiência vivenciada pela equipe técnica envolvida com o projeto. A iniciativa tem sido costumeiramente abordada pela academia a partir de outros “olhares” ou abordagens que, do meu ponto de vista, retratam apenas uma parte do conjunto de elementos principais do projeto.

Os artigos que se referem ao projeto tentam, cada um a seu modo, retratar alguns dos elementos característicos dessa experiência executada por Farmanguinhos/Fiocruz, porém eu sinto que falta algo mais voltado para a sistematização das atuais informações desse processo e o próprio histórico dessas ações. Tal fato me levou a considerar a possibilidade de elaborar uma dissertação não conclusiva, mas de caráter mais explicativo e que pudesse instigar outras análises e estudos futuros acerca dos diversos elementos que compuseram o desenvolvimento do projeto. Baseado nesse contexto, o objetivo principal do estudo foi analisar o desenvolvimento do projeto, dando ênfase aos aspectos operacionais da transferência de tecnologia visando a instalação e funcionamento da fábrica denominada Sociedade Moçambicana de Medicamentos.

Quais foram as principais conclusões encontradas pelo estudo?

Rawlinson Rodrigues: Um dos elementos de maior questionamento apresentado em diversos artigos acadêmicos e que possuem grande relação com o desenvolvimento do projeto situa-se sobre a possibilidade ou viabilidade para a instalação de unidades públicas produtoras de medicamentos em outros países em desenvolvimento, principalmente para aqueles localizados em países africanos. Essa visão foi, de certa forma, desconstruída ou, pelo menos, vista de outra forma a partir da experiência com Moçambique. O projeto viabilizou a instalação de uma indústria farmacêutica pública em um país em desenvolvimento africano mediante determinadas condições técnicas e estruturais.

Desse modo, a presença em Moçambique de uma unidade produtora de medicamentos com infraestrutura completa e que foi concebida segundo os requisitos de Boas Práticas de Fabricação surge como o resultado mais expressivo desse processo e que foi confirmado pelo estudo. Tal verificação dialoga, inclusive, com os resultados de outros dois estudos de 2007 e 2012 realizados, respectivamente, pela União Africana e pela Organização das Nações Unidades para o Desenvolvimento Industrial (UINDO), que indicaram a existência de algum tipo de produção de medicamentos em aproximadamente 38 países africanos.

Uma segunda conclusão identificada relaciona-se ao fato de o Brasil ter aprimorado seu conhecimento sobre o processo de transferência de tecnologia entre atores públicos de países em desenvolvimento. A experiência brasileira tem sido marcada por processos de transferência de tecnologia seguindo uma lógica de absorção, porém, o caso de Moçambique reflete um processo diferente, por ser um processo de efetivo repasse e que possui diversos elementos complicadores que somente foram “desvendados” à medida que foi executado o projeto.

O estudo também indicou, em decorrência da experiência vivenciada em Moçambique, grandes possibilidades de ampliação de demandas estrangeiras para o Brasil, visando a realização de outras ações similares ao que ocorreu com Moçambique. Essas demandas, por conseguinte, podem seguir dois caminhos fundamentais: a maior inserção brasileira no cenário internacional a partir de atividades de cooperação e de iniciativas de grande representatividade e prestígio; e a gestão de um novo quadro de desafios a serem gerenciados em âmbito nacional, uma vez que a execução das atividades de cooperação internacional demanda não apenas recursos financeiros, mas também condições jurídicas legais das quais o Brasil ainda não dispõe.

O estudo apontou que o objetivo maior do projeto (ampliar o acesso universal e gratuito a medicamentos) não foi alcançado. A que isso pode ser creditado?

Rawlinson Rodrigues: Um dos motivos é devido à inexistência em Moçambique de políticas públicas em saúde mais estruturadas, coesas e fortes, principalmente no que se refere à política de medicamentos e assistência farmacêutica. O país conseguiu, em decorrência da própria fábrica, realizar alguns avanços significativos nesses campos, porém ainda falta desenvolver outras áreas que possuem impacto direto com a existência da fábrica.

O país enfrenta problemas sérios relacionados à baixa disponibilidade e variedade de medicamentos, à elevada quantidade de itens falsificados em circulação em decorrência da ineficiência da área de fiscalização e frequentes rupturas de estoque para o fornecimento de medicamentos. A cadeia da assistência farmacêutica ainda não está estruturada em Moçambique e deverá ser trabalhada com muito afinco pelo Ministério da Saúde de Moçambique e por outras instâncias moçambicanas de tal modo que possa viabilizar, pelo menos, a ampliação do acesso aos medicamentos.

Outro ponto relevante a ser considerado refere-se à possibilidade de a Sociedade Moçambicana de Medicamentos estar inserida em uma estratégia maior do Estado Moçambicano voltada tanto para a área de saúde quanto para o desenvolvimento industrial. Tal situação, contudo, ainda não foi concebida ou analisada com maior atenção pelo governo de Moçambique, fato que, por consequência, impactou significativamente as próprias operações de produção da fábrica e apoio ao sistema de saúde de Moçambique. Soma-se a isso o fato de o negócio farmacêutico público se configurar como um segmento totalmente novo em Moçambique e que demanda certo tempo de maturação enquanto indústria, atendimento de requisitos legais e elevados níveis de investimento inicial até sua efetiva autonomia e pleno funcionamento.

Quais foram os outros desafios enfrentados pelo projeto?

Rawlinson Rodrigues: Um dos desafios enfrentados pelo projeto esteve relacionado à incipiente capacidade de atuação da autoridade regulatória de Moçambique nas atividades diretamente ligadas à indústria farmacêutica, principalmente em termos de análise de pedidos para registro de medicamentos e inspeções voltadas à emissão de certificado de boas práticas de fabricação. No conjunto de dez pedidos apresentados entre 2010 e 2014 para fins de registro em Moçambique, foi verificado um tempo médio de oito meses entre a análise e efetiva emissão de registro de um medicamento em Moçambique, sendo que em alguns casos verificou-se um tempo aproximado de até 20 meses. Tais situações, por sua vez, estão diretamente relacionadas à necessidade de consolidação e fortalecimento das instituições públicas moçambicanas, fato que ainda demandará muito mais esforços internos até que se possa chegar a um melhor nível de atuação. No que diz respeito ao processo de transferência de tecnologia, o desafio residiu na quantidade de profissionais moçambicanos com condições técnicas para o desenvolvimento de todo o conjunto de atividades previstas no projeto e que são necessárias ao pleno funcionamento de uma indústria farmacêutica.

O Brasil também apresentou alguns desafios que impactaram significativamente a sua prática da cooperação internacional. É necessário ao Estado brasileiro construir um marco legal específico para a execução desses tipos de atividade junto a outros países. Apesar de a semente para esse projeto ter sido plantada em 2000, foi necessário ainda mais 22 meses para que se pudesse efetivar a liberação de recursos financeiros para a sua execução. A possibilidade de existência de um marco legal para a prática da cooperação internacional poderia, em princípio, ajudar a minimizar esse tempo e estabelecer novos padrões de execução de atividades similares.

Sua tese de dissertação apontou dois momentos críticos para a execução do projeto. Quais foram eles e por que foram decisórios?

Rawlinson Rodrigues: O primeiro momento esteve relacionado ao fato de Moçambique ter informado à parte brasileira, ainda em junho de 2010, sobre a impossibilidade de cumprir com a sua responsabilidade para a execução das obras de adequação da Sociedade Moçambicana de Medicamentos, em decorrência da indisponibilidade de recursos financeiros no orçamento do Estado moçambicano. Essa situação se estendeu por meses até que, em novembro de 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu negociar com a Fundação Vale Moçambique o aporte de recursos no montante de 4,5 milhões de dólares a título de contrapartida do governo de Moçambique. Esse caminho construído foi materializado em março de 2011, com o efetivo início das atividades de adequação da fábrica de medicamentos moçambicana, o qual, após 11 meses, foi concluído.

O segundo momento crítico decorreu do próprio início das atividades de adequação da Sociedade Moçambicana de Medicamentos, entre março de 2011 e fevereiro de 2012. Havia pouco conhecimento da empresa contratada para realizar o serviço quanto aos requisitos regulatórios brasileiros e internacionais para a construção de unidades produtoras de medicamentos e seu respectivo funcionamento. Desse modo, a contribuição da equipe técnica brasileira foi fundamental em razão de também estar prestando uma assessoria técnica especializada para a empresa executora das obras de adequação de tal forma que se pudesse atender aos requisitos brasileiros e internacionais colocados para indústrias farmacêuticas.

Entrevista: Danielle Monteiro – CCS/Fiocruz
Foto: Edson Silva – Farmanguinhos/Fiocruz


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1 comentários
CELIA MARIA DE ALMEIDA
25/03/2015 12:33
Gostaria de acrescentar alguma informações relevantes que não ficaram claras nessa matéria. 1) Rawlinson cursou o Mestrado Profissional em Saúde Global e Diplomacia da Saúde, da ENSP/Fiocruz, por mim coordenado, mas que contou com o apoio financeiro da própria ENSP, do CRIS/Fiocruz e da OPAS/Escritório de Representação do Brasil. 2) Sua dissertação, da qual sou orientadora, integra o projeto "Saúde e Relações Internacionais: Política Externa e Cooperação internacional em em saúde", financiado pela FAPERJ. 3) A dissertação já foi defendida e aprovada, porém ainda está em revisão e complementação final, segundo sugestões da banca examinadora. Portanto, sua divulgação ainda não está permitida, pois não foi autorizada, nem por mim, a orientadora, nem pela SECA/ENSP. Entretanto, brevemente estará disponivel para consulta por todos interessados. Att, Celia Almeida. Celia Almeida.