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Mulher na Saúde: pesquisadoras falam sobre desafios enfrentados no campo da saúde coletiva

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Publicado em:12/03/2015
Mulher na Saúde: pesquisadoras falam sobre desafios enfrentados no campo da saúde coletivaApesar do gênero gramatical, palavras como coragem, determinação, força e luta são vinculadas automaticamente ao mundo dos homens, enquanto outras, como sensibilidade, compreensão, cuidado e afeto enquadram-se no universo feminino. Mas será isso mesmo? Em alusão ao Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, a Abrasco perguntou a cinco pesquisadoras associadas, entre elas a pesquisadora da ENSP, Maria do Carmo Leal, quais sentidos, abordagens e desafios as mulheres vivenciam dentro do campo, buscando compor um painel que abarque do protagonismo feminino no setor ao atual estado das investigações sobre a mulher na esfera da Saúde Coletiva. Um desafio e tanto que não pretende ser nenhuma avaliação ou conclusão tida como encerrada. Muito pelo contrário, quer apenas iniciar a conversa e convidar todas as pessoas - mulheres e homens - para o debate.

Força feminina, direção masculina: A primeira constatação repercutida pelas entrevistadas é conhecida de todos que atuam na área. As mulheres são a principal força de trabalho da saúde. Representam 65% dos mais de 6 milhões de profissionais ocupados no macrossetor, tanto nas atividades diretas de assistência em hospitais, prontos-socorros, consultórios, clínicas, CAPS e demais espaços, quanto nas atividades indiretas, como produção e comercialização de produtos, equipamentos e fármacos, ensino e pesquisa, e saneamento básico. No total, são 3.9 milhões de mulheres. Em algumas carreiras, como Fonoaudiologia, Nutrição e Serviço Social, elas alcançam quase a totalidade, ultrapassando 90% de participação. Em outras, como Enfermagem e suas ramificações (graduadas, técnicas e auxiliares, incluindo a saúde bucal) e Psicologia, estão quase lá, com percentuais acima de 80%. Os dados têm como base o Censo do IBGE e foram compilados pela Estação de Pesquisa de Sinais de Mercado, do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais (EPSM/ NESCON/UFMG) .

“Silenciosa e quase imperceptivelmente, as mulheres tecem uma imensa rede de solidariedade que acolhe diariamente milhões de brasileiros, justamente nos momentos delicados de grande fragilidade e sofrimento. No entanto, encontram-se distanciadas em sua maioria dos cargos de chefia e na condução das políticas de saúde”, destaca Eli Iola Gurgel, integrante do NESCON, professora da Faculdade de Medicina da UFMG e vice-presidente da Abrasco.
 
Um dos motivos dessa velha e persistente desigualdade pode ser inferido a partir dos dados da mesma pesquisa. Das 14 ocupações reconhecidas como de interesse da área pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), as únicas que apresentam maior presença masculina são Medicina (56,7%) e Medicina Veterinária (55%), justamente as de maior retorno financeiro.

Enquanto isso, na ciência: No interior da academia, o cenário não é diferente. Levantamento do programa Mulher e Ciência, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq/MCTI), aponta que dentro da política de bolsas da Agência, a participação das mulheres diminui à medida em que se avança na carreira científica. Enquanto as mulheres bolsistas de iniciação científica representam 56% do universo total de auxílios concedidos pelo CNPq, a participação feminina cai para 36% quando listadas somente as pesquisadoras bolsistas de Produtividade em Pesquisa (PQ), modalidade esta considerada pela academia como critério de excelência. No ano do levantamento, 8.994 bolsas PQ foram concedidas a cientistas do sexo masculino, enquanto 4.970 auxílios foram destinados às do sexo feminino, quantidade próxima à metade. Além disso, o ingresso da mulher no sistema de bolsas PQ, de modo geral, é mais tardio. Enquanto a maioria de bolsas PQ do sexo masculino é concedida a homens de 45 a 54 anos, o patamar de maior freqüência de bolsas para as mulheres, nessa mesma modalidade, situa-se dos 50 aos 59 anos. Os dados são de 2013 e foram divulgados ano passado. Saiba mais aqui.

“Em uma área visivelmente feminina como a saúde, especialmente a Saúde Coletiva, os homens ainda são os mais destacados cientistas e ocupam a maioria  das posições de direção nas instituições de pesquisa e ensino”, reforça Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e integrante do Conselho da Abrasco. No entanto, Lígia percebe que são poucas as vozes que se levantam para denunciar a disparidade. “É frequente as cientistas brasileiras deporem contra a existência de preconceito e discriminação e os homens pesquisadores apontarem a presença feminina, inclusive em seus grupos de trabalho. Mas são ‘amostras’ compostas por um ‘universo pessoal’, sem qualquer representatividade. Nada menos cientifico”, conclui Lígia.

Corpo sob tutela: No campo da assistência e do cuidado à saúde, por séculos imperou a lógica de dominação, segregação e submissão imposta às mulheres pela sociedade, baseada no poder físico, tutelador e econômico dos homens e das instituições em todas as áreas do conhecimento e das práticas da vida cotidiana. Segundo Simone G. Diniz, professora do Departamento de Saúde Materno-infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), membro do Grupo de Trabalho Saúde e Gênero da Abrasco e representante da Associação no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), o cenário começou a mudar, mesmo que lentamente, no século XX. “A chamada segunda onda do feminismo abalou as práticas de assistência em saúde da mulher, questionando o conhecimento sexista, voltado para promover a subordinação das mulheres ao papel de mãe abnegada e esposa obediente e calma, através da medicalização intensiva dos processos fisiológicos femininos. A legalização do aborto e da contracepção, o questionamento da segurança das opções médicas e cirúrgicas de tratamentos, e a exigência de relações menos autoritárias foram resultados destas lutas.”

A pesquisadora destaca que, no Brasil, o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM, 1983) refletiu parte desse movimento e buscou apontar também para a equidade e a universalidade na assistência. Porém, a tutela das políticas públicas por setores conservadores, sejam eles religiosos e/ou profissionais, sempre entravou sua efetivação. “Atualmente, as políticas são focadas na área materno-infantil, tendo como carro-chefe a Rede Cegonha. É visível o desinvestimento em outros temas e pautas, mesmo os garantidos por lei”, completa Simone.

No início do século atual, percebe-se uma oxigenação dessas questões, com maior discussão de pautas como a humanização da assistência ao parto nos movimentos sociais e na sociedade civil. Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e editora associada da Revista Brasileira de Epidemiologia (RBE), da Abrasco, coordenou o inquérito Nascer no Brasil, que entrevistou quase 24 mil mulheres no período de fevereiro de 2011 a outubro de 2012. O estudo amplificou na academia, nos serviços, no Ministério da Saúde e na imprensa a discussão sobre a importância do parto normal e explicitou o abusivo número de cesáreas realizadas, principalmente, nos hospitais e maternidades vinculados à saúde suplementar.

“Desde que o parto, no Brasil, migrou do ambiente domiciliar para o hospitalar, as mulheres  perderam o protagonismo sobre essa espetacular experiência humana de parir e a transferiram para os profissionais de saúde. Com essa perda, ocorreu uma privação, para as mulheres e seus filhos, da oportunidade de vivenciarem naturalmente o processo da parturição e estabelecerem precocemente um encontro de amor e reconhecimento mútuo”, sentetiza Maria do Carmo, ressaltando a defesa do procedimento padrão do parto normal como uma retomada da autonomia da mulher em todos os domínios da vida cotidiana.

Para além da mulher, o feminino: A vida cotidiana tem sido o principal campo de batalha das mulheres. Pressionadas pelas exigências objetivas e subjetivas do capitalismo, com forte cobrança por performance e reconhecimento como profissionais, acadêmicas, parceiras e mães, o embrutecimento e a adoção de valores tidos historicamente como masculinos têm posto em xeque, no tecido social, valores outrora de seu domínio. Isso tem trazido reflexos em todos os campos, e não seria diferente na Saúde Coletiva.

Para Rosana Onocko-Campos, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp) e também integrante do Conselho da Abrasco, a Saúde Coletiva tornou-se um campo competitivo, fragmentado e fálico. A alternativa, para ela, é deixar de lado os dogmas impostos pela sociedade machista e capitalista e reencontrar – tanto homens como mulheres – com os valores do feminino. “Para Freud, o acesso ao feminino em cada um de nós era a chave da cura da neurose. Tentando resumir muito, curar-se significaria sair do lengalenga da repetição e da queixa e responsabilizar-se pelos próprios sintomas e desejos. Um mundo mais feminino poderia ser mais acolhedor e menos competitivo, sem perder por isso sua força e contundência, estando assim mais preocupado com a reprodução da vida e da cultura, e não só com a correria fragmentada do nosso dia a dia para chegar primeiro”, reforça Rosana.

Entre tantas visões e abordagens, as abrasquianas ouvidas foram unânimes em destacar, antes de tudo, que o 08 de março é um marco de luta e um resgate histórico que perdura no tempo e se mantém vivo nos corredores de hospitais, policlínicas, universidades, centros de pesquisa e demais espaços da sociedade. Uma luta que dispensa flores, descontos em lojas e mimos cor-de-rosa e afirma a importância da mulher como ser humano autônomo, independente e consciente do seu valor na sociedade contemporânea, conjugando força com afeto, coragem com compreensão. A todas às mulheres, parabéns por suas trajetórias de vida.

Fonte: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
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