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Sobre Alessandras e Indianaras

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Publicado em:09/03/2015

Pedro Leal David

 

É um artifício clássico da divulgação de pesquisas: divide-se um resultado encontrado por um determinado número de horas para saber a periodicidade de um acontecimento. É desse jeito, por exemplo, que o Grupo Gay da Bahia, um dos mais antigos movimentos a se organizar em torno dos direitos dos homossexuais e trans no Brasil, concluiu, em 2013, que a cada 28 horas a homofobia mata uma pessoa em nosso país. O modelo ajuda a dar visibilidade a essa situação alarmante, mas na letra fria de um artigo ou reportagem, pode soar como mera abstração. Só que a vida, como nos canta Caetano Veloso, é real e de viés. Foi essa realidade que invadiu uma das mesas do seminário “Diálogos entre a Academia e Movimentos Sociais”, promovido pelo Grupo Direitos Humanos e Saúde (Dihs/ENSP), no dia 2 de março. Quem estava com a palavra era a advogada e mestre em Saúde Pública pela ENSP Sandra Besso, que falava das dificuldades que os transgêneros encontram no mercado de trabalho. De repente, uma das palestrantes recebeu em seu celular a informação de que uma companheira de movimento LGBT havia sido assassinada em Curitiba. Passado o susto inicial, o evento seguiu seu rumo, sob o peso da notícia e dos duros testemunhos de quem sofre violência pelo simples fato de tentar ser o que é.

 

Sobre Alessandras e Indianaras

Indiana Siqueira, do grupo Transrevolução, do Rio de Janeiro, por exemplo, é uma loura de cabelos longos, pele queimada de sol e sem papas na língua. Quando subiu à mesa de debate com seus óculos escuros, contou um breve percalço porque passara a caminho da Fiocruz: “Puxei a campainha, mas o motorista do ônibus não quis parar. Só parou quando disse que ia pegar uma pedra e quebrar o ônibus todo. Eu taco mesmo, porque tenho a prerrogativa de ser CID 10”. A sigla e o número são uma referência à Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial da Saúde, que inclui a transexualidade na lista de transtornos mentais. As tintas fortes do discurso de Indianara, que criam um quadro que choca os desavisados, têm lastro. Durante sua fala, ela contou um pouco da luta pelos direitos de travestis e transexuais. “Foi em 92 que nasceu a primeira organização de travestis e trans, o grupo Astral, que começa a discutir a questão do nome social, aquele pelo qual a pessoa opta por ser chamada”. Na cidade de Santos, em São Paulo, uma das primeiras conquistas foi a inclusão desse nome no cadastro do SUS. Vitórias como essa são reconhecidas, mas sempre com ressalvas. “Brigamos a todo momento pelo nome civil. [Pelo direito de mudar de nome no registro civil] É muita arrogância dos cisgêneros acharem que sabem o que é melhor pra nós”, reclama Indianara, que ainda mostrou como os cisgêneros - termo usado para nomear pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado quando de seu nascimento - não só pensam que sabem o que é melhor para os transgêneros, como têm esse direito assegurado pela justiça: “Na hora de incluir o nome social em documentos, são necessárias testemunhas e elas não podem ser pessoas trans”.

A discussão em torno do nome social, que atravessou toda a manhã do seminário, também apareceu de maneira lateral à tarde, quando se falou das desigualdades de oportunidades para as pessoas trans no mercado de trabalho. Alessandra Ramos, uma das palestrantes, é coordenadora do Grupo Transrevolução. Ainda que sua fala se diferencie da de Indianara em termos formais (Alessandra é uma negra de fala calma, doce) a força de sua narrativa é a mesma: “Quando, depois de anos trabalhando em movimento social, fui para o mercado de trabalho, mandava currículo com meu nome civil e foto e nunca era chamada. Experimentei retirar a foto do currículo e consegui ser chamada para entrevistas, mas ainda tive que penar para conseguir um emprego. Isso porque tenho 20 anos de experiência profissional como tradutora de Libras para o Português, uma área que tem escassez de profissionais”. Mesmo depois de vencida a batalha pela vaga, Alessandra passou a lidar com a intolerância e o desrespeito. “Uma chefe minha dizia que eu tinha o demônio no corpo. Você imagina, eu já tenho todos os meus problemas, tenho que pagar aluguel e ainda tenho que ficar ensinando aos outros o que é respeito?”

A tarefa de professora de, digamos, bons modos, é árdua, mas Alessandra tem obtido bons resultados. Quem a escuta se sensibiliza com sua história de sua luta por ter direitos. O método de Indianara, ainda que diferente, também não falha. Quem a ouve, volta pra casa levando suas frases firmes. “Quando me vi na rua e a única opção era a prostituição, a maior parte da violência que sofri foi das mãos dos agentes do estado, na escola, na família. Fui presa na França e quando recebi a ordem para deixar a cadeia, quase pedi para ficar, pois ali eu tinha minha cela, minha televisão e me sentia protegida”. As duras experiências, além de talharem um discurso implacável, ergueram um senso ético raro de se encontrar em boa parte das figuras públicas que circulam por aí: “Sei até onde tenho que corromper para conseguir mudar meu registro civil, mas não faço isso porque seria injusto com as pessoas que eu represento. Minha briga de hoje é pelo direito da trans de amanhã”.

 



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