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Pesquisador defende o fim da propaganda de medicamentos

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Publicado em:16/05/2006

O livro que o jornalista Álvaro Nascimento lança na terça-feira (28/06), no Museu da República, é uma crítica à fragilidade do modelo regulatório neoliberal da propaganda de medicamentos, que fica clara logo no título: “Ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado - Isto é regulação?”. São 152 páginas pautadas na análise da atuação das empresas de produção e distribuição de produtos farmacêuticos, das agências de publicidade e das empresas de comunicação. Analisa também a aplicação da Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 102 da Anvisa, que desde o ano 2001 tem o objetivo de regular os abusos cometidos pela indústria farmacêutica, por agências de publicidade e pelos meios de comunicação. “Infelizmente, os resultados da pesquisa confirmam que a legislação continua incapaz de evitar abusos. A saída seria proibir a propaganda de medicamentos”, diz, categórico.

O livro é a reprodução revisada da dissertação de mestrado apresentada em 2003 pelo jornalista no Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob a orientação de Jane Dutra Sayd. E tem a chancela da Editora Sobravime, da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos. “A dissertação está sendo publicada na íntegra, com atualizações dos dados de 2003 a 2005”, explica Álvaro, também pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (DCS/ENSP).

Álvaro é um dos pioneiros na área de comunicação e informação da Fundação Oswaldo Cruz. Sua trajetória institucional começa em 1987, no Programa Radis (Reunião, Análise e Difusão de Informação sobre Saúde) da ENSP, e se estendeu à militância sindical, na Associação dos Servidores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc), além de outros setores. Personalidades que marcaram sua caminhada? Sergio Arouca e Davi Capistrano Filho. “São dois personagens que, pelo compromisso social, pelo engajamento político e pela ousadia, marcaram minha formação na área de saúde”, define o jornalista.
A seguir, a entrevista:

ENSP Notícias: Como surgiu a idéia de analisar peças publicitárias para verificar sua adequação à Regulação 102 da Anvisa?

Álvaro Nascimento: Acompanhei a formulação da RDC 102 da Anvisa no ano 2000. Dois anos depois, quando terminava as disciplinas do Mestrado, elaborei minha dissertação verificando como andava o seu cumprimento. Tenho muito interesse em assuntos ligados à Vigilância Sanitária desde que comecei a trabalhar como jornalista na área da saúde pública, principalmente na área de medicamentos. Como lido com informação e comunicação sempre me incomodou a questão do uso incorreto de medicamentos. Também me incomodava a forma e o conteúdo dos anúncios de medicamentos, que além de prometerem resultados impossíveis, acabam estimulando o uso irracional de um produto que, além de caro, é perigoso para a saúde, dependendo de quem o tome e em que circunstâncias. Analisei 100 peças publicitárias veiculadas nas principais redes de TV, rádios e jornais. Fiz uma tabela dividida em três colunas, por ordem alfabética: o medicamento, a mídia em que captei o anúncio, o laboratório produtor e as indicações sugeridas pelo laboratório. Incluo também o texto da publicidade (seja no jornal, no rádio, na TV) e depois coloco qual o artigo da RDC 102 que a propaganda fere. Nenhuma das peças analisadas deveria ter sido veiculada. Todas feriam a legislação em pelo menos um artigo. Há anúncios que ferem a lei em até 10 artigos.

ENSP Notícias: A que conclusões você chega?

Álvaro Nascimento: A conclusão é que o modelo regulatório atual é frágil e favorece apenas a indústria, as empresas de publicidade, de mídia e o comércio varejista de medicamentos. Há três grandes problemas: primeiro, a Anvisa só multa as indústrias depois que a RDC 102 está ferida e a propaganda está há mais de um mês no ar. Com isso, o mal já está feito, o consumo do medicamento já está consolidado. Segundo: as multas são irrisórias. Um exemplo: a Anvisa aplicou em 2003 um total de multas no valor de R$ 3,5 milhões à indústria farmacêutica. Entretanto, no mesmo ano, a indústria gastou algo em torno de R$ 3,4 bilhões com propaganda, cerca de 20% de seu faturamento total, de R$ 17 bilhões. No final, a punição acaba favorecendo o infrator. Ou seja, durante um ano de regulação a Anvisa aplicou em multas um valor equivalente a apenas 10 anúncios no horário nobre, já que apenas a veiculação de uma inserção publicitária no “Jornal Nacional”, por exempolo, custa de R$ 250 mil a R$ 380 mil. E mais: não há nada que impeça que o valor da multa seja incluído no preço do medicamento. No final, o consumidor é quem paga a multa. O último problema: a frase que acompanha os anúncios de medicamentos, “Ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado”, estimula o uso incorreto, porque te induz a somente procurar o médico após ter tomado o primeiro medicamento. A meu ver, a frase ideal seria: “Antes de tomar qualquer medicamento, consulte um médico”. O que é massacrado a cada anúncio é o seguinte: compre primeiro, tente sozinho, e caso os sintomas persistam, procure um médico.

ENSP Notícias: Então, os anúncios estimulam a automedicação?

Álvaro Nascimento: Na prática, a mensagem deseduca e presta inestimável serviço à indústria e ao comércio, e não à sociedade. Com isso, o Estado está permitindo e estimulando a automedicação e o consumo irracional de medicamentos. Para se ter idéia do problema, há dez anos o uso incorreto de medicamentos é o principal agente de intoxicação humana no Brasil, de acordo com o Sistema Nacional de Informações Toxicológicas (Sinitox), superando os casos de intoxicação por agrotóxicos e animais peçonhentos. Só em 2001 foram 12.404 casos de intoxicação por medicamentos. E este número já exclui as tentativas de suicídio, isto é, são pessoas que usaram o medicamento exclusivamente com o objetivo de melhorar sua saúde. Isso dá uma média de 34 casos oficialmente registrados por dia. Se levarmos em conta a subnotificação, vemos que este número pode ser ainda maior. Claro que a propaganda abusiva não é a única responsável pelas intoxicações por medicamentos, mas sem dúvida que ela é parte importante do problema.

ENSP Notícias: Quem são os mais afetados pelo uso de medicamentos sem receita médica?

Álvaro Nascimento: São pessoas que compram sem receita para curar diversos problemas e têm reações adversas. Muitas são diabéticas, hipertensas e idosas. Para se ter uma idéia, a cada 25 minutos o SUS registra um caso de intoxicação humana por medicamentos. Isto é, pessoas que tomam medicamentos e passam muito mal a ponto de terem que procurar atendimento médico no SUS. Este é um assunto grave parar a saúde pública, pois se o paciente chega a procurar atendimento médico, é porque ele está muito mal. Minha tese de doutorado caminha pela mesma área da vigilância. Minha pergunta é: “Propaganda de medicamentos: é possível regular?”. Eu acredito que não porque a RDC 102 é a quinta legislação em 30 anos que tenta impor limites a este setor.

ENSP Notícias: Qual seria o artigo da RDC 102 mais desrespeitado pela indústria farmacêutica?

Álvaro Nascimento: O artigo mais desrespeitado é o que estabelece a obrigatoriedade de informar na propaganda a principal contra-indicação do medicamento. Mesmo que tenha várias contra-indicações, a principal pelo menos deveria ser informada na propaganda. Os argumentos mais utilizados na propaganda de medicamentos ressaltam, principalmente, a eficácia, a segurança, o bem estar, a comodidade na administração, a rapidez da ação do medicamento, além do bom humor, da energia, do prazer e da felicidade que eles trazem, minimizando ao máximo, ou simplesmente excluindo, qualquer referência a riscos, possíveis interações medicamentosas ou contra-indicações. Estas, quando aparecem, em geral são exibidas em letras minúsculas, que surgem muito rapidamente, na maioria das vezes frisando apenas que aquele determinado medicamento “é contra-indicado para as pessoas com hipersensibilidade aos componentes da fórmula”, evitando-se determinar quais os grupos populacionais que não devem tomar o medicamento. Só para citar alguns exemplos, há medicamentos absolutamente impróprios para diabéticos, hipertensos, crianças, idosos com doenças crônicas e outros extratos da população. As informações sobre riscos, efeitos adversos, advertências e precauções são negadas ao consumidor. Não é exagero concluir que, do ponto de vista publicitário, veicular informações sobre riscos e possíveis agravos é visto, pelo marketing medicamentoso, como uma contrapropaganda do produto. Isso poderia ser revertido com o simples cumprimento da legislação, que obriga a citação da contra-indicação, que não foi feita em 94 das 100 publicidades que analisei.

ENSP Notícias: O seu trabalho já surtiu algum efeito?

Álvaro Nascimento: Depois de ser muito criticada, não só por mim mas também por diversos pesquisadores e entidades, a Anvisa anunciou, no fim do ano passado, uma nova consulta pública para revisão na RDC 102. A Anvisa sempre defendeu a RDC 102, mas muitos achavam que as propagandas continuavam ruins. Então me propus a fazer este estudo. E acabei comprovando que o atual modelo regulatório é extremamente frágil, que a frase utilizada ao final dos anúncios estimula o consumo irracional, que a multa é ineficaz e que o modelo regulatório não trouxe um real impacto à qualidade das propagandas veiculadas. Sem falar que quando recebem a multa, alguns laboratórios farmacêuticos entram com recurso na Justiça questionando a punição e não pagam. E o processo tramita durante vários anos. Aí a Anvisa aciona o seu corpo jurídico para dar conta das demandas da indústria, aumentando os custos da Agência. Espero agora conseguir interferir na discussão da nova resolução da Anvisa. Enquanto aguardamos o momento da consulta pública, decidi lançar o livro. O que acontece na área de propaganda de medicamentos sob regulação da Anvisa é a mesma coisa que acontece com outras agências reguladoras brasileiras, sejam de energia, de telecomunicações, de petróleo, de transportes. Há um capítulo do livro que trata da “Criação das agências reguladoras e o ambiente liberal durante o governo FHC”. As agências reguladoras estão mais preocupadas com a saúde financeira das empresas do que com o consumidor, quando deveria ser o contrário. Em qualquer país com sociedade mais organizada a agência reguladora serve para intermediar uma relação entre consumidor e a empresa, com o objetivo de garantir os direitos do cidadão. Mas no Brasil isso não acontece. E o consumidor é sempre o prejudicado.

ENSP Notícias: Qual seria a melhor atitude que a Anvisa poderia tomar em relação à propaganda de medicamentos?

Álvaro Nascimento: Proibir a propaganda. Medicamento é uma substância tão importante, e ao mesmo tempo tão perigosa, que não é passível de ser usada como instrumento de propaganda para o grande público. É igual propaganda de arma: não deveria haver discussão. Cheguei à conclusão de que devido ao histórico descumprimento das seguidas legislações por parte da indústria não é possível controlar essas propagandas. Fiz uma pesquisa que sustenta isso, mas não achava que 100% das propagandas seriam ilegais. Diante do vergonhoso descumprimento de uma legislação que foi democraticamente construída em consultas públicas, e que já está em vigor há quatro anos e que foi pactuada com todas as partes envolvidas, na minha opinião é chegada a hora de se debater, a bem da saúde pública, a proibição da propaganda de medicamentos. Quero lembrar que há países muito mais democráticos que o nosso onde não há publicidade não só de medicamentos, mas de cigarros e até de bebidas alcoólicas. Se é verdade que a nossa Constituição diz, em seu Artigo 220, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, também é verdade que nos parágrafos 3 e 4 do mesmo Artigo está explícito que “compete à Lei Federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão (...) bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” e que “a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais”. Portanto, o debate sobre esta questão está devidamente respaldado na Constituição e não tem nada a ver com censura, muito pelo contrário. Tem a ver com a criação de instrumentos de proteção da sociedade contra os abusos do poder econômico, instrumentos que existem em qualquer sociedade democrática.

(Fotos: Gutemberg Brito – SDE/ENSP)


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