Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

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A família contemporânea é tema do IV Ciclo de debates

Discutir questões ligadas à família e de que forma elas podem afetar a saúde das pessoas e o trabalho desenvolvido pelas equipes de saúde da família foi o objetivo da mesa 'Família: lugar de acolhimento ou ameaça?', realizada nesta segunda-feira (12/05), na ENSP. O evento, coordenado por Gláucia Burato, integrou o IV Ciclo de Debates 'Conversando sobre a Estratégia de Saúde da Família' e teve como debatedoras a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes (Unicamp) e a historiadora e antropóloga Adriana Barreto Vianna (Museu Nacional/UFRJ).

Ninguém contesta que a família, considerada como base da sociedade, é uma instituição cultural em forte e acelerado processo de mudança e que, nos dias de hoje, muito pouco tem em comum com família tradicional do início do século, por exemplo. A questão é identificar essas mudanças, tentar compreender que efeitos elas têm sobre a sociedade e de que forma podem orientar a construção de políticas sociais, inclusive as de saúde, mais adequadas à realidade e, portanto, mais efetivas.

Imaturidade dos pais reforça crise de autoridade

Para a socióloga e doutora em Ciência Política Maria Lygia Quartim de Moraes, professora de sociologia e pesquisadora do Pagu - Núcleo de Estudo de Gêneros da Unicamp, o primeiro ponto importante da discussão é entender que a família não é e nunca foi lugar apenas de acolhimento ou de ameaça, mas sim de acolhimento e ameaça, num fenômeno que reflete a própria ambivalência humana. "Freud já considerava que o todo ato humano resulta da manifestação, em diferentes intensidades e composições, das pulsões de vida e de morte", lembrou, destacando que na medida em que os seres humanos têm a violência como herança comum, cabe à sociedade controlar essa agressividade natural, transformando-a, sempre que possível, em ações positivas. "A sociedade ideal, portanto, seria aquela que dá conta dessa ambivalência", afirmou.

E se, no nível do ser humano, essa violência é algo natural, no caso da família, segundo Maria Lygia, ela é inerente à assimetria das relações que se estabelecem no âmbito familiar. "A família, composta por os adultos que cuidam de crianças, é fundada numa relação desigual, estruturalmente assimétrica. Isso também propicia a violência, ainda que simbólica", explicou. "O que causa espanto nas pessoas é que, ainda que legalmente nunca tenha havido tanto apoio e acolhimento para crianças e adolescentes, também ganham destaque nos meios de comunicação atos de muita violência perpetrados pelos familiares contra as crianças".

No nível da sociedade, caracterizada por uma crescente mesclagem das esferas pública e privada e pela despolitização, transformada em espetáculo pela mídia, vivemos, segundo a palestrante, uma enorme crise de falta de autoridade. "Muitos adultos se recusam a assumir sua tarefa de impor limites. A crítica ao autoritarismo, que vivenciamos por um largo período no país, acabou se transformando em falta de autoridade. Em casa, os pais se recusam a crescer e a assumir suas responsabilidades com os filhos", disse, enfatizando: "As crianças precisam de limites. Elas precisam se sentir frustradas em alguns momentos para aceitar os limites, para aprender a viver em sociedade. O que ocorre é que os pais confundem amor com permissividade e acreditam que devem 'seduzir' os filhos para serem amigos".

Citando Winnicott, Maria Lygia defendeu a idéia de que para se tornarem verdadeiros cidadãos, as crianças precisam ter o chamado 'espírito de gratidão', sentimento que depende de uma criação afetuosa. "Infelizmente, o cuidado com a criança e com o adolescente que está na constituição, nem sempre se reflete na realidade, pois ninguém pode ser obrigado a amar", destaca. Para ela, muitas crianças acabam sendo geradas e criadas por pais imaturos, sem disponibilidade afetiva para cuidar de uma criança. "Os pais não crescem, apenas se transformam em adolescentes tutelados, com dificuldades para aceitar limites e, portanto, para impor limites. Pais que tentam ser amigos e não pais", frisou.

Segundo Maria Lygia, hoje, temos um aparato jurídico legal generoso e igualitário, mas há um abismo com relação à realidade na qual vemos simultaneamente erotização precoce e imaturidade generalizada. "Ninguém quer crescer, todos querem continuar a ser adolescentes eternos. Ninguém quer amadurecer, porque amadurecer significa assumir responsabilidades", critica. Em sua opinião, a falta de responsabilidade também acaba gerando a cultura do 'vitimismo', na qual todos se sentem vítimas de alguma situação e ninguém é responsável pelo que acontece. "Num ciclo vicioso, a falta de responsabilidade cidadã acaba se refletindo na família e vice-versa", ressaltou, repetindo: "O grande problema que enfrentamos é a falta de autoridade, é a falta de adultos que assumam a função de dizer NÂO".

Acolhimento e violência: valores opostos, aspectos complementares

Mestra e doutora em Antropologia Social, Adriana de Rezende Barreto Vianna iniciou sua participação concordando que, apesar de serem pólos valorativos opostos, acolhimento e violência acabam sendo aspectos complementares quando se trata de autoridade.

Sobre a dificuldade de se materializar o que está previsto na legislação brasileira, no que diz respeito aos cuidados com a criança e o adolescente, ela destacou algumas questões que considera importantes. A primeira, segundo ela, está relacionada à própria idéia que temos de infância. "É muito difícil aceitarmos a idéia de que um ser ainda tão dependente é, de fato, um sujeito de direitos", disse.

Adriana lembrou que a menoridade na Constituição de 1916 era definida por vários aspectos, além da idade: "Não só as crianças, mas as mulheres casadas, os indígenas, entre outros, eram considerados, cada um por uma razão distinta, menores legais, ou seja, seres incapazes de serem autônomos".
Esses conceitos, segundo ela, evoluíram e todos os antigos menores legais acabaram conquistando seus direitos, foram mudando seu status social. "Para as crianças, no entanto, isso não é possível, pois elas continuam sendo crianças. Isso faz com que, a despeito de terem conquistado inúmeros direitos, ainda sejam vistos como sujeitos com limites", falou.

Por outro lado, segundo Adriana, somos levados a acreditar que aqueles que são legalmente sujeitos plenos não precisam de proteção, o que é uma inverdade. "Pelo estatuto do menor, a família tem obrigação de zelar pela criança e pelo adolescente como se os adultos, muitas vezes fragilizados, psíquica, afetiva, física e socialmente, também não precisassem de cuidados", explicou.

Sobre a família atual, Adriana enfatizou que houve uma conquista da sociedade e que legalmente já são aceitos vários tipos de família. "Essa pluralidade é uma vitória, uma vez que o modelo social mais tradicional - o modelo nuclear - não é mais sancionado pela lei como o único modelo possível".

Destacando a dificuldade que a antropologia tem para trabalhar com o conceito de família, Adriana explicou: "Na antropologia, família pode se referir à composição entre linhas de ascendência e linhas de aliança, no caso, o casamento. Num outro plano, a idéia de família está ligada a de co-habitação, de cuidado. Ou seja, família é quem cuida e isso pode ser bem diferente da situação anterior. Por fim, temos a família como expressão de importância de laços afetivos".

De acordo com ela, as mudanças legais tentaram dar conta de todas essas possibilidades e operaram, de fato, uma mudança no campo ideológico. No campo técnico e operacional, no entanto, a família nuclear ainda se sobrepõe e faz com que todas as outras formas sejam consideradas de 'segunda classe', como algo que surge quando não se pode ter o ideal, o que, muitas vezes, afeta o resultado de algumas importantes políticas públicas do setor.

Ela destacou ainda que o tema precisa ser pensado num marco político e econômico específico e que estamos vivendo um processo social na qual a família se transforma num lugar de consumo de bens sociais e onde as fragilidades dos seres humanos acabam sendo vistas como fracassos pessoais.

Dentre os temas abordados pelo público presente, é possível destacar: a complexidade da realidade, originando fragmentação das políticas públicas; a necessidade de se fortalecer a idéia da paternidade responsável, mesmo antes do parto; a necessidade de se fortalecer laços afetivos entre indivíduos que habitam a mesma casa; políticas universais ou políticas voltadas para grupos especiais que têm como foco a família; a necessidade de os programas e práticas de saúde pensarem efetivamente na família como contexto de saúde e doença.

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