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Rio, 25/04/2024

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Tese apresenta situação do Serviço Nacional de Saúde em Angola

Há sete anos, o médico angolano Miguel dos Santos de Oliveira ingressava na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) para cursar o mestrado em Saúde Pública. O tempo passou, e, em 2010, Miguel concluiu o doutorado em Saúde Pública, tendo como orientadora em ambos os trabalhos a pesquisadora da Escola Elizabeth Artmann.

No mestrado, Miguel estudou a gestão de profissionais médicos da província de Cabinda, e, no doutorado, a pesquisa se expandiu para as outras 18 províncias de Angola, resultando na tese O processo de descentralização do Serviço Nacional de Saúde de Angola. Fazendo uso de entrevistas, levantamento e comparação de dados em saúde do país, Miguel Oliveira conseguiu discutir uma proposta de regionalização dos Sistemas de Serviços de Saúde. Agora, o desafio para Angola é descentralizar e reconstruir seu próprio sistema de saúde, tendo como orientação os estudos realizados por Miguel ao longo de sete anos na ENSP.

Em seu retorno para o país, Miguel passa a integrar a esfera nacional do Ministério da Saúde e continua sua colaboração com a Escola, coorientando, ao lado de Elizabeth Artmann, dois alunos do mestrado em Saúde Pública ministrado pela ENSP em Angola. Em agosto, Miguel voltará ao Brasil para apresentar sua tese de doutorado no Centro de Estudos promovido pela Escola.

Em entrevista ao Informe ENSP, Miguel fala da realidade de saúde de Angola e das análises feitas em sua pesquisa.

Informe ENSP: Antes de abordar sua pesquisa, vamos falar de Angola. Qual é a população do país e como é sua divisão geográfica?

Miguel Oliveira:
Angola conta com 18 províncias, 163 municípios e 547 comunas. A população varia bastante conforme as fontes. É difícil precisar a população, porque Angola não tem censo demográfico nacional desde 1972. Então, as várias fontes apontam entre 16 milhões e 25 milhões. Para a tese, foi usada a fonte do Ministério da Saúde, que são 16 milhões de habitantes. No meu trabalho, visitei nove províncias, representando todas as quatro regiões geográficas do país. Como Angola esteve em guerra por muitos anos, algumas províncias não puderam ser visitadas por conta da dificuldade de transporte no momento do trabalho de campo.

Informe ENSP: Qual foi o objetivo da sua tese de doutorado?

Miguel Oliveira:
Minha ideia foi analisar o Serviço Nacional de Saúde de Angola, que é um subsistema público de saúde. O Sistema de Saúde de Angola engloba não só o componente público, mas também o privado e todos os demais intervenientes no processo de saúde. Estudei o Serviço Nacional de Saúde de Angola, o qual está passando por um processo de descentralização desde 1999. Esta abrange toda a administração pública no quadro de uma reforma global dos seus três níveis.

Informe ENSP: Quais são esses três níveis?

Miguel Oliveira:
A administração pública de Angola conta com o nível central, ou nacional, que equivale à esfera federal no Brasil. Temos também o nível provincial, semelhante à esfera estadual e ao nível municipal.

Informe ENSP: De que maneira você realizou a análise do Serviço Nacional de Saúde de Angola?

Miguel Oliveira:
Levantei dados estatísticos da série histórica, entrevistei e cruzei pontos de vista de informantes dos três níveis, entre médicos, enfermeiros, gestores e políticos. Optamos também por trabalhar com grupos focais, dos quais participaram profissionais de saúde e gestores dos três escalões.

O estudo abrange o período de 1999 até 2007, já que o processo de descentralização começou em 1999. A opção por parar em 2007 foi devido à facilidade de obtenção de dados. Os dados de 2008 não estavam disponíveis. Coincidentemente, foi nesse período que Angola adquiriu a paz, em 2002. Isso aconteceu depois de um período de guerra, que durou mais de trinta anos. Então, o trabalho abrange um período de três anos de guerra e cinco de paz, o que também permitiu a comparação de dados dessas duas fases.

Ao mesmo tempo em que se iniciou o processo de descentralização no país, também estava em curso o processo de pacificação. Assim, nas conclusões, não foi fácil definir as mudanças próprias do processo de descentralização e aquelas resultantes do processo de pacificação. Podemos dizer que a pacificação contribuiu positivamente para o processo de descentralização no país.

Informe ENSP: E como está essa descentralização atualmente?

Miguel Oliveira:
Angola ainda está no processo de desconcentração dos serviços. No caso do Serviço Nacional de Saúde, essa desconcentração chegou até os níveis provincial e municipal, trazendo com ela o crescimento da rede de serviços privados, sobretudo de farmácias com uma qualidade de serviços, em muitas dessas unidades, bastante questionada.

É importante lembrar que, por razões de ordem histórica e de contexto político, Angola, depois de sua independência, envergou para um regime comunista, quando vários serviços foram nacionalizados.

Entretanto, o estudo concluiu que várias mudanças ocorridas no Serviço Nacional da Saúde, com descentralização em curso, foram positivas. Dentre elas, o fato de o nível central ter mais disponibilidade para cuidar da regulamentação e da normatização em saúde. Se, no passado, a grande preocupação era a centralização da gestão de recursos financeiros, em 2006, as unidades sanitárias dos níveis provincial e municipal passaram a ter orçamentos próprios. Isso foi um ganho importante para o país. Com relação aos recursos humanos, no passado, os profissionais eram contratados para provimento de serviços. Hoje, temos concursos públicos, o que permite regular um pouco melhor o mercado. Outro ponto importante é que, atualmente, as pessoas podem optar onde trabalhar. Os gestores provinciais ou municipais passaram, assim, a desempenhar um papel importante no recrutamento de profissionais para sua província, município e região. Anteriormente, a contratação era precedida de encaminhamento.

Informe ENSP: Como se dava esse encaminhamento profissional?

Miguel Oliveira:
O encaminhamento ocorria quando a pessoa terminava sua formação, se apresentava ao Ministério da Saúde e recebia a orientação da localidade onde iria trabalhar, com vontade ou sem vontade. Hoje não é mais dessa forma: os recém-formados podem procurar onde trabalhar, e os gestores também podem buscar esse profissional por meio de concurso público.

Informe ENSP: De que forma são geridos os recursos para a saúde pública em Angola?

Miguel Oliveira:
Um aspecto fundamental nesse processo todo tem a ver com a alocação e gestão de recursos financeiros. Antes do início do processo de descentralização, o nível central geria todos os recursos; hoje já existe alguma desconcentração no nível provincial, sobretudo para os hospitais, que têm a possibilidade de cuidar de seus recursos. É sabido que quem gere seus recursos próprios tem muito mais possibilidades de tomar decisões e atender às várias preocupações da instituição ou da localidade. Infelizmente, esse processo ainda não atingiu o nível primário, como postos ou centros de saúde. Mas foi um avanço importante que vale destacar.

Antes do processo, o responsável pela saúde na província ou município era um delegado provincial ou municipal. O delegado da saúde na província era uma espécie de representante do ministro. Hoje isso mudou. Tanto na província como no município, os responsáveis pela saúde são os diretores provinciais e chefes de repartições municipais, dependentes administrativamente do responsável local pela governança. Eles nomeiam os responsáveis pela saúde em suas localidades e atendem às necessidades da saúde da população. Ou seja, o governador e o administrador municipal têm muito mais possibilidades de intervir e contribuir positivamente nas decisões que são tomadas por serem os responsáveis pela saúde. Isso foi uma mudança fundamental em termos de administração e de responsabilidade de quem administra a saúde no nível local.

Vale ressaltar que, em determinado momento da descentralização, a saúde no município foi incorporada numa seção de serviços sociais, que incluía esportes, assuntos sociais, cultura, entre outros setores. A partir de 2007, isso foi reorganizado com o surgimento da figura de chefe de repartição municipal da saúde. Pode-se dizer que, em função das fases percorridas, o processo atingiu a desconcentração. Ainda não se chegou à fase de eleições autárquicas, ou seja, quando se elege quem administra o município. O responsável pela administração do município ainda é nomeado pelo ministro da administração do território, sob proposta do governador da província.

Portanto, verifica-se hoje, no Serviço Nacional de Saúde, uma desconcentração integrada. O caminho, de acordo com o resultado do estudo, é o aprofundamento da descentralização, que deve resultar na criação de regiões sanitárias, uma das vias para a racionalização dos escassos recursos, principalmente em Angola, que conta com várias dificuldades não só sociais, mas também econômicas.

Informe ENSP: Além da dificuldade de acessibilidade, que outros problemas você enfrentou para realizar sua pesquisa?

Miguel Oliveira:
É necessário dizer que a maior dificuldade do trabalho foi o grande déficit de estatísticos confiáveis. Não há dados estatísticos publicados e confiáveis sobre o serviço de saúde de Angola, ou sobre a saúde em Angola. Isso nos motivou a optar pela triangulação de métodos, justamente para comparar informações e procurar dados mais consistentes para trabalhar. Alguns dados foram descartados porque não pareceram muito consistentes. A triangulação foi fundamental até para contribuir na validação e permitir a comparação de dados e diferentes visões dos mais diversos atores. Nesse sentido, o trabalho torna-se uma fonte de consulta de dados da saúde compilados e consolidados do período de 1999 a 2007.

Informe ENSP: Fale mais desse processo de triangulação de métodos que você utilizou.

Miguel Oliveira:
O que se fez foi adaptar, na análise, a Tríade de Donabedian e o Triângulo de Governo de Matus. Carlos Matus trabalha o triângulo de governo constituído por projeto e capacidade de governo e governabilidade. Já a Tríade de Avedis Donabedian envolve a estrutura, o processo e o resultado. Procura-se ver o que, em termos de estrutura, existe em Angola e o que foi feito em termos de processo, e perceber as mudanças registradas, isto é, os resultados alcançados, particularmente os avanços e os recuos.

Parece-nos que há ainda um grande esforço a ser feito, e isso é apresentado no trabalho em termos de estrutura e investimento no país, na redefinição do projeto de saúde, na capacidade do governo, seja em termos de formação não só médica, mas também de gestores e especialistas que não sejam apenas da área curativa. É necessário pensar também em profissionais que trabalham em promoção e prevenção da saúde, tudo isso para garantir a integralidade assistencial.

Informe ENSP: O que você pretende fazer daqui para frente, uma vez que concluiu seu doutorado?

Miguel Oliveira:
Considerando que o processo continua, eu pretendo, a partir dessa pesquisa avaliativa feita, se obter financiamento, fazer o pós-doutorado para avaliar se Angola conseguiu, de fato, estabelecer esse novo projeto de descentralização do Serviço Nacional de Angola e quais resultados foram alcançados. Hoje, parece que a ideia que existe é aprofundar o processo de descentralização, tendo sido também apontado pelo estudo essa grande motivação não só dos gestores, mas sobretudo dos profissionais.

Uma das grandes carências que existem no serviço de saúde é o grande déficit de leis regulamentos e normas. Então, o que o estudo propõe é que sejam redefinidos os caminhos e as bases desse processo, e, principalmente que se trabalhe de forma séria na normatização e na regulamentação do sistema, particularmente do Serviço Nacional da saúde.

A descentralização em curso se enquadra no âmbito global. Assim, é necessário que se pense mais setorialmente. É importante que se estabeleça um cronograma e metas. É imperativo redefinir tudo no sentido de facilitar o processo avaliativo a ser feito daqui a algum tempo. As ações de cada uma das etapas do processo de descentralização devem ser mais bem definidas, contribuindo assim para a reconstrução segura e harmoniosa do sistema de saúde de Angola.

Tudo isso exigirá um grande esforço, não só financeiro, mas de mobilização de todo tipo de recurso para que se trabalhe efetivamente numa ampla reforma do sistema de saúde. É importante clarificar aquilo que o próprio país pensa e quer fazer em relação ao seu sistema de saúde. Vale destacar, e deixar claro, que foi não estudado o sistema de saúde de Angola, mas, sim, o Serviço Nacional de Saúde, que é o seu subsistema público.

Portanto, vários dos aspectos mencionados poderiam ser estudados num trabalho de pós-doutorado.

Informe ENSP: Explique melhor como funciona o Serviço Nacional de Saúde. Como é o acesso da população a esse serviço?

Miguel Oliveira:
Teoricamente, pela legislação vigente, o Serviço Nacional de Saúde de Angola deve ser de acesso universal e gratuito para toda a população, independente da condição social e financeira. Entretanto, uma coisa é o que está previsto em termos de legislação, e outra é o que se consegue fazer. Verifica-se, hoje, o grande crescimento da rede privada, fazendo com que o sistema comece a ser segmentado, mais ou menos à semelhança daquilo que ocorre no Brasil e em outros países. Essa segmentação pode ser positiva, mas também traz uma série de inconvenientes. Uma delas pode ser a pouca atenção dos gestores ao subsistema público. Ou seja, com isso, o subsistema público pode ficar um tanto quanto esquecido.

Informe ENSP: Quais os problemas de saúde hoje em Angola?

Miguel Oliveira:
O nosso grande problema está na estrutura como um todo. O estudo concluiu que, com a descentralização, a governabilidade pode aumentar nos níveis locais, uma vez que os atores passarão a ter mais poderes e maior controle sobre as situações do cotidiano dos serviços. A capacidade de governo é algo que deve ser fortalecido, porque, quanto mais ambicioso o projeto, mais capacidade você tem de ter. Então, concluímos, em função das debilidades existentes, que é necessário fortalecer como um todo o triangulo de governo em Angola, isto para a uma efetiva e adequada descentralização do Serviço Nacional de Saúde.

Informe ENSP: Como você avalia a situação epidemiológica de Angola?

Miguel Oliveira:
Eu disse que a grande questão da pesquisa foi definir quais dados utilizar. De todo modo, segundo as várias fontes internacionais e nacionais, Angola ainda tem taxas elevadíssimas de mortalidade e morbidade, sobretudo por doenças endêmicas como a malária, a tuberculose, entre outras. Os indicadores de saúde não mudaram de forma significativa nos últimos anos. Ainda sofremos com altas taxas de mortalidade materna e infantil, além de mortalidades específicas. São taxas elevadíssimas que colocam Angola, em termos de IDH, abaixo da 145ª posição.

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